Um passeio pela filmografia de Fernando Vendrell ao longo de quatro filmes (II)
Depois de Fintar o Destino, decido driblar a ordem cronológica dos filmes de Vendrell e partir um pouco ao acaso pela sua obra, seguindo apenas o instinto, a vontade e o faro. A minha escolha recaiu sobre Pele (2006), um filme que cativa desde logo pela riqueza do guarda-roupa e pela beleza dos cenários, pela maquilhagem.
Há pormenores que podem parecer acessórios noutras obras, mas que aqui assumem um papel primordial, mercê do cuidado com que são tratados. Fernando Vendrell rodeia-se de um elenco de luxo (Fernanda Lapa, Maria Emília Correia, sempre assustadoramente confiantes e impecáveis na sua verosimilhança), entre muitos outros atores da geração seguinte, e igualmente convincentes, demonstrando uma enorme cumplicidade com as câmaras, (como Núria Madruga, no papel de Isabel, a amiga frívola e falsa, Manuel Wiborg, aliás Fernando, motorista másculo e sensual, e a jovem e belíssima Daniela Costa no papel de Olga, a protagonista).
Em vários momentos deste filme me vem à memória o magnífico drama Belle (de Amma Asante), no qual outra esplêndida jovem mestiça criada como uma dama aristocrata não consegue escapar aos flagrantes preconceitos diários, numa atmosfera ambígua, pautada por uma exigência social extrema, de acordo com as duras regras sociais da Inglaterra do século XVIII. Tal como no drama de Vendrell, esse é o rastilho que provocará profundas mudanças, sociais e políticas num caso, familiares e pessoais noutro.
A história desta longa-metragem passa-se pela década de 70, a avaliar pelos cenários e outras alusões mais subtis, numa família urbana da alta burguesia. Olga é uma jovem e brilhante finalista de Biologia, que parece ter um futuro promissor. Independente e avançada para a época, sonha com uma carreira académica e dedica-se a fundo aos estudos com esse propósito procurando manter-se entre os melhores. Dir-se-ia que tem tudo a seu favor: é bonita, empenhada, rica e inteligente; no entanto perpassam-lhe frequentemente pelo olhar resquícios de tristeza relacionados com o seu passado, que estão na génese dos momentos de rebeldia e inquietação que lhe turvarão a quietude dos dias previsíveis…. Vive com a madrasta Adelaide (Fernanda Lapa) que a trata com desvelo e atenção, na ausência do pai, um homem que se manteve longe durante décadas e que de repente reaparece na vida de ambas num estado de saúde debilitado, após uma longa estadia em Angola.
Conseguirá este pai distante recuperar os anos perdidos na vida de Olga?
Os seus dias de alegria despreocupada começam a ensombrar-se quando o olhar da sociedade e da academia a confrontam cinicamente com a sua origem racial; para além se ser mulher, Olga é mestiça, e se bem que tal pormenor possa passar despercebido à primeira vista, é o suficiente para lhe condicionar uma carreira universitária. A sua faceta contestatária começa a tomar forma nesse momento, que constitui claramente o instante de rutura com a sociedade em que cresceu como uma princesa, porém com uma espécie de «defeito». Digamos que uma princesa «de segunda», com um estigma que, se por um lado lhe confere uma aura de sensualidade conotada com um certo exotismo, que a faz sobressair, por outro a relega para segundo plano numa sociedade que se descobre como profundamente elitista, contraditória e hipócrita.
A menina fina revolta-se contra o seu meio familiar e social, as máscaras da vida burguesa, o vazio identitário em se vê mergulhada, e procura estratégias para ser aceite como um ser humano de pleno direito. Vive experiências novas e ousadas, flirta com o motorista sexy (Marco Wilborg) que a olha desde sempre com olhos de fome e devoção. Afasta-se dos percursos óbvios que lhe foram negados; veste ocasionalmente a pele da mulher fatal e manipuladora que brotou de si, «mete-se», imagine-se, «com gente do cabaret!».
Os caminhos dessa busca de si mesma são assim, ínvios, imprevisíveis e perigosos. Olga tropeça e reinventa-se num meio que desconhecia até então: o teatro e o music-hall. Encontra-se na sua própria pele e cria uma persona que será doravante o seu refúgio, o seu abrigo e o reflexo da sua essência.
É uma história fascinante, teatral, musical, bem urdida e brilhantemente representada, com diálogos incisivos a cargo de Fernando Vendrell e de Carla Baptista, a partir de uma ideia original de Henrique Galvão.
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Para Olga, mais do que uma questão de escolha, é de pele que se trata, de sensações palpáveis e epidérmicas, quando se torna protagonista da sua própria vida.
Escrevo crónicas, contos e poesia. Ensaio palavras entre linhas e opino sobre cinema, preferencialmente africano e lusófono. Semeio letras, coleciono sílabas e rumino ideias.