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Top Girls – Ciclo Caryl Churchill no TNDMI
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28 de Maio, 2021 0 Por Filipe Daniel
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Também o tempo torna tudo relativo.

Este artigo foi inicialmente publicado há mais de 2 anos - o que em 'tempo Internet' é muito. Pode estar desatualizado e pode ter incongruências estéticas. Se for o caso, aceita as nossas desculpas.

Top Girls

 

 

O Ciclo Caryl Churchill trazido pelo Teatro Nacional Dona Maria II junta duas peças desta que é uma das figuras incontornáveis da dramaturgia universal.

Cristina Carvalhal volta ao texto de Caryl Churchill em que já tinha trabalhado, mas como atriz interpretando o papel de Griselda e Angie com a encenação de Fernanda Lapa (1993), acrescentando assim uma nova etapa ao Top das Top Girls.

Caryl Churchill escreveu este texto nos inícios dos anos 80 dialogando com a recente a eleição de Margaret Thatcher para o cargo de Primeira-Ministra britânica, e por isso a passagem de medidas socialistas para mais capitalista-liberais e as políticas de emancipação feministas adensam a profundidade do texto.

Caryl inova também com a sobreposição de diálogos em que as personagens contam as suas histórias em falas cortadas, ideias que fogem, que são resgatadas e ainda umas que passam pelo labirinto cruzado dos diálogos.

 

Top Girls

Sandra Faleiro (Marlene), em Top Girls, Foto © Filipe Ferreira

 

O texto gira em torno de Marlene (Sandra Faleiro) e da ideia de construção de uma mulher contemporânea que tenha sucesso no mundo patriarcal. A primeira cena apresentada é um reflexo disso mesmo: Marlene que trabalha numa agência de emprego, que dá nome à peça, está a tentar encontrar o melhor local para empregar Jeanine como secretária /dactilógrafa, uma rapariga nova que quer viajar e casar. A crítica surge de imediato: Casa? Ter filhos? Não convém dizer este tipo de coisas aos empregadores. Uma entrevista de emprego fria, invasiva. O retrato de um mercado de trabalho patriarcal e demasiado rígido que vai formando também a própria Marlene…

No momento seguinte o espetáculo conduz-nos a um jantar celebrativo da promoção de Marlene a Diretora da Agência. Neste jantar que acontece no Havai, temos presente um conjunto de mulheres notáveis, mas que não vingaram na História, por lá está, serem mulheres. É aqui que a peça se torna esteticamente e tecnicamente mais interessante, a sobreposição de diálogos que, se parece confusa ou mal pensada (é uma das poucas regras deixadas por Caryl no texto), está muito bem elaborada e cada espectador reterá algo diferente, é possível ir seguindo uma história, ou o cruzamento delas, ou apenas observar aquilo que de mais natural se passa num jantar, um conjunto de vozes e sons que se cruzam. A cumplicidade e agilidade destas atrizes possibilitam simultaneamente estas três atitudes.

 

Top Girls

Nádia Yracema (Gret), Sara Carinhas (Empregada de mesa), Beatriz Brás (Griselda), Sílvia Filipe (Isabella Bird),
Jani Zhao (Nijo), Alice Azevedo (Papisa Joana), Sandra Faleiro (Marlene), em Top Girls, Foto © Filipe Ferreira

 

Esta reunião que dá voz a um grupo raramente referido na História encontram-se figuras como Papisa Joana (Alice Azevedo) que chefiou a igreja católica no século IX disfarçada de homem, Isabella Bird (Sílvia Filipe), viajante, escritora e fotógrafa do século XIX, Gret (Nádia Yracema), pintada por Brueghel O Velho, que liderou um exército de mulheres contra os demónios do Inferno, Nijo (Jnai Zhao) uma dama japonesa concubina do Imperador que se tornpou monge no século XIII e a paciente Griselda (Beatriz Brás), a demasiado tolerante e paciente personagem do conto X do Decameron de Boccaccio, e lá está Marlene.

Todas são servidas por Sara Carinhas que desempenha um papel muito interessante como empregada de mesa grávida – não tem falas ou assume um papel relevante para a cena, mas concentra em si uma aura indescritível que chama a atenção neste jantar cujas histórias de cada personagem vai sendo contada com momentos de graça, alguma tristeza e sofrimento.

 

Top Girls

Sandra Faleiro (Marlene) e Sílvia Filipe (Isabella Bird), em Top Girls, Foto © Filipe Ferreira

 

O espetáculo segue após o jantar e são-nos dadas as perspetivas da vida pessoal e profissional e tudo o que é necessário abdicar para se ser bem-sucedida num mundo onde o alcance de poder e sucesso parecem estar destinados apenas aos que aceitam sofrer.

Cristina Carvalhal aproveita um lado mais fragmentário do texto (com a narrativa não linear) e o não uso de direções de cena para, como que num puzzle humano, possamos ir construindo todas as diferentes facetas de Marlene e de uma Top Girl contemporânea.

Após o jantar vemos Angie (Sara Carinhas), uma adolescente um pouco mais velha que Kit (Nádia Yracema) a conviverem no quintal, falam de sexo, chateiam-se, falam das mães e lutam. Uma cena que mais uma vez reforça a cumplicidade entre atrizes, trazendo-nos algo muito natural, já que qualquer um de nós se reverá naquelas atitudes de adolescente: as respostas agressivas à mãe e alguma teimosia bem retratadas em Angie, uma rapariga que quer matar a “mãe” – que quer assim mostrar-se forte e fazer escorrer sangue.

Nádia reforça o poder do sangue mostrando a mão ensanguentada da sua menstruação: “Eu tenho o meu próprio sangue”. Esta cena de embate entre a personalidade mais imatura da primeira e a maturidade da segunda, mas também de embate entre a força pela morte e a força natural, o poder e independência alcançados que podem ser mais do que apenas substituição pela luta, decapitação.

Aquela pequena Ação poderia ser um retrato sumário do espetáculo?

Não.

 

Top Girls

Alice Azevedo (Papisa Joana), Sandra Faleiro (Marlene), Beatriz Brás (Griselda), Sílvia Filipe (Isabella Bird) e Jani Zhao (Nijo), em Top Girls, Foto © Filipe Ferreira

 

A energia desta cena é continuada e procedida pelas pouco mais de 2 horas em que estas 7 atrizes trazem à cena 16 personagens com profundidades diferentes, mas sempre o mesmo mote: O poder; o que é necessário fazer para se ser reconhecido, o que abdicar, o sofrimento. O feminismo deste espetáculo que procura o concreto e realístico junta-se a uma ideia de poder, de uma sociedade gasta, com séculos de desgaste em que os oprimidos são sempre o género e a etnia.

A dramaturgia torna agradável e impactantes a vida destas personagens, mas é o trabalho de cada atriz que gera uma profundidade muito interessante em cada uma das situações. Cristina Carvalhal leva a palco um conjunto de mulheres forte, muito bem articulado – traz-nos a diversidade de ser mulher, não mais o mero imaginário de género.

A necessidade de mudança, as questões, o feminismo, a igualdade, a luta e a solidariedade são levados para o palco de forma hábil.

Ainda bem que este espetáculo existe.

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Top Girls, está na sala estúdio do Teatro Nacional D.Maria II, em Lisboa até 5 de junho.


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Lisboa, 1999. Tenta encontrar respostas através do Palco. Vê o teatro como um aliado da história e filosofia para resolver (ou não) os problemas do mundo.

Jaime Roriz Advogados Artes & contextos