Top Girls
O Ciclo Caryl Churchill trazido pelo Teatro Nacional Dona Maria II junta duas peças desta que é uma das figuras incontornáveis da dramaturgia universal.
Cristina Carvalhal volta ao texto de Caryl Churchill em que já tinha trabalhado, mas como atriz interpretando o papel de Griselda e Angie com a encenação de Fernanda Lapa (1993), acrescentando assim uma nova etapa ao Top das Top Girls.
Caryl Churchill escreveu este texto nos inícios dos anos 80 dialogando com a recente a eleição de Margaret Thatcher para o cargo de Primeira-Ministra britânica, e por isso a passagem de medidas socialistas para mais capitalista-liberais e as políticas de emancipação feministas adensam a profundidade do texto.
Caryl inova também com a sobreposição de diálogos em que as personagens contam as suas histórias em falas cortadas, ideias que fogem, que são resgatadas e ainda umas que passam pelo labirinto cruzado dos diálogos.
O texto gira em torno de Marlene (Sandra Faleiro) e da ideia de construção de uma mulher contemporânea que tenha sucesso no mundo patriarcal. A primeira cena apresentada é um reflexo disso mesmo: Marlene que trabalha numa agência de emprego, que dá nome à peça, está a tentar encontrar o melhor local para empregar Jeanine como secretária /dactilógrafa, uma rapariga nova que quer viajar e casar. A crítica surge de imediato: Casa? Ter filhos? Não convém dizer este tipo de coisas aos empregadores. Uma entrevista de emprego fria, invasiva. O retrato de um mercado de trabalho patriarcal e demasiado rígido que vai formando também a própria Marlene…
No momento seguinte o espetáculo conduz-nos a um jantar celebrativo da promoção de Marlene a Diretora da Agência. Neste jantar que acontece no Havai, temos presente um conjunto de mulheres notáveis, mas que não vingaram na História, por lá está, serem mulheres. É aqui que a peça se torna esteticamente e tecnicamente mais interessante, a sobreposição de diálogos que, se parece confusa ou mal pensada (é uma das poucas regras deixadas por Caryl no texto), está muito bem elaborada e cada espectador reterá algo diferente, é possível ir seguindo uma história, ou o cruzamento delas, ou apenas observar aquilo que de mais natural se passa num jantar, um conjunto de vozes e sons que se cruzam. A cumplicidade e agilidade destas atrizes possibilitam simultaneamente estas três atitudes.
Esta reunião que dá voz a um grupo raramente referido na História encontram-se figuras como Papisa Joana (Alice Azevedo) que chefiou a igreja católica no século IX disfarçada de homem, Isabella Bird (Sílvia Filipe), viajante, escritora e fotógrafa do século XIX, Gret (Nádia Yracema), pintada por Brueghel O Velho, que liderou um exército de mulheres contra os demónios do Inferno, Nijo (Jnai Zhao) uma dama japonesa concubina do Imperador que se tornpou monge no século XIII e a paciente Griselda (Beatriz Brás), a demasiado tolerante e paciente personagem do conto X do Decameron de Boccaccio, e lá está Marlene.
Todas são servidas por Sara Carinhas que desempenha um papel muito interessante como empregada de mesa grávida – não tem falas ou assume um papel relevante para a cena, mas concentra em si uma aura indescritível que chama a atenção neste jantar cujas histórias de cada personagem vai sendo contada com momentos de graça, alguma tristeza e sofrimento.
O espetáculo segue após o jantar e são-nos dadas as perspetivas da vida pessoal e profissional e tudo o que é necessário abdicar para se ser bem-sucedida num mundo onde o alcance de poder e sucesso parecem estar destinados apenas aos que aceitam sofrer.
Cristina Carvalhal aproveita um lado mais fragmentário do texto (com a narrativa não linear) e o não uso de direções de cena para, como que num puzzle humano, possamos ir construindo todas as diferentes facetas de Marlene e de uma Top Girl contemporânea.
Após o jantar vemos Angie (Sara Carinhas), uma adolescente um pouco mais velha que Kit (Nádia Yracema) a conviverem no quintal, falam de sexo, chateiam-se, falam das mães e lutam. Uma cena que mais uma vez reforça a cumplicidade entre atrizes, trazendo-nos algo muito natural, já que qualquer um de nós se reverá naquelas atitudes de adolescente: as respostas agressivas à mãe e alguma teimosia bem retratadas em Angie, uma rapariga que quer matar a “mãe” – que quer assim mostrar-se forte e fazer escorrer sangue.
Nádia reforça o poder do sangue mostrando a mão ensanguentada da sua menstruação: “Eu tenho o meu próprio sangue”. Esta cena de embate entre a personalidade mais imatura da primeira e a maturidade da segunda, mas também de embate entre a força pela morte e a força natural, o poder e independência alcançados que podem ser mais do que apenas substituição pela luta, decapitação.
Aquela pequena Ação poderia ser um retrato sumário do espetáculo?
Não.
A energia desta cena é continuada e procedida pelas pouco mais de 2 horas em que estas 7 atrizes trazem à cena 16 personagens com profundidades diferentes, mas sempre o mesmo mote: O poder; o que é necessário fazer para se ser reconhecido, o que abdicar, o sofrimento. O feminismo deste espetáculo que procura o concreto e realístico junta-se a uma ideia de poder, de uma sociedade gasta, com séculos de desgaste em que os oprimidos são sempre o género e a etnia.
A dramaturgia torna agradável e impactantes a vida destas personagens, mas é o trabalho de cada atriz que gera uma profundidade muito interessante em cada uma das situações. Cristina Carvalhal leva a palco um conjunto de mulheres forte, muito bem articulado – traz-nos a diversidade de ser mulher, não mais o mero imaginário de género.
A necessidade de mudança, as questões, o feminismo, a igualdade, a luta e a solidariedade são levados para o palco de forma hábil.
Ainda bem que este espetáculo existe.
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Top Girls, está na sala estúdio do Teatro Nacional D.Maria II, em Lisboa até 5 de junho.
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