Um passeio pela filmografia de Fernando Vendrell ao longo de quatro filmes (IV)
O miúdo atravessa o rio na jangada do velho Jacopo, em direção a casa. Rio que tem duas margens: de um lado fica a dor, do outro é já Lisboa, nas palavras sábias e sofridas do jangadeiro. «Porque é que rio tem outro lado? Lisboa começa lá».
Através do olhar deste menino que se torna adulto durante umas férias, Fernando Vendrell dá-nos a sua visão de um Moçambique dos anos 50, numa época identificável mercê das várias pistas que nos vai fornecendo ao longo da história, nomeadamente o enquadramento político e administrativo da altura.
O menino é Rui Pedro, filho de um casal de colonos portugueses que cultiva uma relação amistosa com a população autóctone, sobretudo a sua mãe, Alice. Rui vive uma paixão platónica pela mais graciosa rapariga da terra, Ana, protegida dos seus pais, moça que não passa despercebida aos rapazes das redondezas. Mas como «A mulher não faz o que gosta, faz o que é preciso», como ela própria afirma com alguma amargura quando confrontada com a noção do livre arbítrio, Ana está noiva de Guinda, o mecânico local, um rapaz negro através do qual percebemos como era naquele tempo a condição de assimilado. Guinda simula convincentemente uma refeição de garfo e faca, lê sofrivelmente o português e está a par da história do Império em grandes linhas, embora algo desatualizado. Num ritual entre o humilhante e o caricato assistimos à elevação do estatuto de um homem pelo simples facto de se dispor a integrar uma cultura que lhe é estranha, cumprindo preceitos pré-estabelecidos que o fazem parecer um ser humano mais confiável e respeitável, do ponto de vista do regime colonial. Guinda assume-se como «casado tradicional e solteiro oficial», numa deliciosa mistura de culturas e de conceitos que faz perigar a sua nova condição de assimilado, resultado de uma assunção superficial de valores que lhe são alheios no dia-a-dia. Prova disso é a maneira como come entre os seus, como se inclina respeitosamente perante a sua própria cultura de origem, que vive intensamente e lhe corre nas veias. Ele é, no entanto, a fotografia desbotada do homem que tende a subvalorizar os seus costumes e tenta racionalmente aproximar-se do ideal padronizado de homem, de acordo com o momento histórico que lhe coube viver. Do ponto de vista didático, esta abordagem representa igualmente uma maneira explícita de clarificar o impacto nefasto de uma apreciação negativa e irreal da sua própria língua e cultura na autoestima de um indivíduo e de um povo; diferente da mestiçagem cultural assumida num clima de equidade, trata-se aqui de absorção de uma cultura por outra, que conduz ao desenraizamento e descaracterização local, numa tentativa de europeização das populações colonizadas. O versátil ator Alberto Magassela ajuda a conferir uma enorme autenticidade a esta que será, porventura, uma das figuras mais interessantes do filme que, embora tenha uma história central percetível e coerente, deriva em conflitos secundários relacionados com a época e a própria condição humana. Fernando Vendrell expõe sem julgar, nem precisa, pois o material de que dispomos é suficiente para refletirmos criticamente e com o devido distanciamento.
Moçambique, finais da década de 50.
Jacopo, o barqueiro, será a voz da consciência? É ele que explica ao menino de que lado vem o sofrimento, e também de que maneira é possível fazer escolhas, mesmo quando as opções nos parecem limitadas. E explica-o na língua local: Jacopo e Rui Pedro dialogam deixando-nos à margem por minutos (e nós percebemos a intimidade do instante).
É um diálogo tão cúmplice, tão próximo e intenso, que nem o espectador é admitido nesse espaço e apenas pode presenciá-lo de longe, respeitosamente. Jacopo frisa, premonitoriamente, que «a vida de um homem é sempre sangue», procurando metaforizar o episódio do casamento tradicional ao qual o rapaz assiste com uma curiosidade discreta, guardada no bolso das perguntas adiadas.
Guinda, o mecânico atordoado pelo amor, é outra das referências na vida deste menino/ homem precocemente amadurecido junto ao rio, em terra de jacarés. Ele explica ao seu jovem amigo que «mulher é como cobra, agarra-se pelo rabo». Trata-se provavelmente duma dessas conversas da rapaziada de difícil decriptação para mulheres. Uma praxe masculina em que os machos tentam ingenuamente perceber as fêmeas enquanto partilham um cigarro.
Na linguagem cúmplice do diálogo, este parece ser um ritual de iniciação: mulheres, cigarros e carros, assuntos de homens e meninos que tentam apreender o sentido da vida numa espiral de fumo. O cineasta aproveita também este filme para nos trazer apontamentos relevantes da cultura local, como o lobolo, similar ao alambamento, em Angola, que corresponde a um valor simbólico fornecido pelo noivo à família da noiva aquando do pedido de casamento ou noivado, uma cerimónia familiar, que pode ser convertido em géneros. Ainda que esse costume possa ser alvo de alguma controvérsia, Guinda argumenta que a tradição se baseia na noção de compensação à família da noiva que vai ter de prescindir de um dos seus elementos, o que não pode ser confundido como uma transação comercial nem tem qualquer carácter ofensivo.
Por esta história passa acessoriamente, ou talvez não, o primo Carlos, que chega de Joanesburgo, quase um estereótipo do playboy mimado e caprichoso, que vai transtornar a pacata vida desta família e da pequena comunidade. O seu comportamento abertamente pedante e provocador vai gerar mais estragos do que os jacarés do rio que separa as margens da vida, mas o preço a pagar pelas lições que a vida lhe traz é também incomensurável, quando sucumbe a uma paixão incendiária.
Passa também por estas paragens o «senhor Secretário», cujas funções incluem a de examinador de candidatos a assimilados e cobrador de impostos; este mostra-se impertinente e empertigado e instala-se espaçosamente em casa de um comerciante local, tipo rude e apagado (brilhantemente interpretado por Vítor Norte), trocando olhares insinuantes e galanteadores com a esposa carente do seu anfitrião, a qual, disponível e desesperadamente doce, não o deixa indiferente.
Numa terra fértil que dá tudo (milho, mandioca, batata-doce), fala-se na imposição do cultivo do algodão e no seu impacto nos rendimentos dos habitantes locais. Algodão que por estes lados representa sofrimento, «choro de gente». Na verdade, as populações eram coagidas a dedicar-se a estas culturas, que representavam uma mais-valia para o governo colonial mas que influíam negativamente na subsistência das famílias camponesas, pois estas dispunham de muito menos tempo para dedicar-se ao cultivo de bens alimentares e o cultivo do algodão não era financeiramente rentável para elas.
Sem jamais forçar a nota, Vendrell consegue comunicar subtilmente com o espectador e oferecer um belíssimo espetáculo sobre a inefável condição de ser-se humano, as relações possíveis entre pessoas, as paixões e o poder de assimilação que todos desenvolvemos, e que, como no caso de Guinda, às vezes nos trai e nos falha. Uma bela história contada com notas trágicas, tendo sempre a esperança como tela de fundo. O Gotejar da Luz, como uma vela que vai pingando na obscuridade, ou um fio de sol que se infiltra na vegetação.
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E por hora impõe-se-me uma pausa na filmografia deste cineasta cujas histórias irrepetíveis trazem à superfície o melhor das pessoas, os seus limites, as escolhas e o seu verniz social.
O filme é baseado no conto "O Lento Gotejar da Luz", de Leite de Vasconcelos, jornalista e escritor que cresceu em Moçambique.
Escrevo crónicas, contos e poesia. Ensaio palavras entre linhas e opino sobre cinema, preferencialmente africano e lusófono. Semeio letras, coleciono sílabas e rumino ideias.
Divulgado