Um passeio pela filmografia de Fernando Vendrell ao longo de quatro filmes
Fintar o Destino (1998), a primeira longa-metragem de Fernando Vendrell(1) (Lisboa, 1962) como realizador, rodada em Cabo Verde, foi também o veículo da minha primeira aproximação à sua imensa e diversificada obra. O cineasta foi homenageado na 35ª Edição do Fantasporto, que terminou a 8 de Março de 2015, pelo conjunto da sua carreira, e este foi o incentivo que eu própria procurava para mergulhar nos filmes que realizou, uma vez que já conhecia razoavelmente bem a sua faceta de produtor, com larga experiência no universo dos PALOP (O Herói e O Grande Kilapy, por exemplo, ambos realizados por Zézé Gamboa e amplamente premiados). Este é um filme poético, fundamental, e com uma beleza feita de rochas vulcânicas, de cinzas e de diálogos transbordantes de veracidade.
Já em Pele (2006), a protagonista revolta-se contra o seu meio familiar e social, as máscaras da vida burguesa, o vazio identitário em que se vê mergulhada, e procura estratégias alternativas para ser aceite. Tropeça num meio que desconhecia até então e encontra-se na sua própria pele criando uma persona que será doravante o seu refúgio, o seu abrigo e o reflexo da sua essência.
Almirante Reis (2002) é uma curta-metragem que se vê como se respira, com ritmo e sem pressa. Há um homem que observa, com um olhar descomprometido e decide finalmente intervir. O homem salta para o palco, confundindo-se com o enredo que nos deixou por herança.
Finalmente em O Gotejar da Luz (2001), um menino torna-se adulto durante umas férias de verão no Moçambique dos anos 50 e regressa décadas depois ao local onde presenciou histórias dramáticas que ditaram as suas escolhas futuras. Entre as margens de um rio traiçoeiro, como por vezes a própria vida.
Diria apenas que Fernando Vendrell partilha claramente com o espectador um olhar analítico sobre o passado colonial português, mostrando o melhor e o pior do ser humano e as relações que se tecem moldadas pelas circunstâncias históricas e sociais.
Deste passeio pela sua obra, numa ordem alheia à cronologia, vi apenas uma ínfima amostra da sua filmografia, como produtor e como realizador; mas fica-me uma enorme vontade de continuar a deixar-me surpreender com os seus projetos futuros e estar sempre presente onde estiver a sua câmara.
Deixo-vos aqui um pouco dos seus filmes e comecemos por:
FINTAR O DESTINO
Fintar o Destino desenhou-se como o pretexto que me faltava para abrir uma fresta sobre um mundo que me é estranho, mais do que as outras galáxias ou os planetas recém-descobertos: o mundo do futebol, as paixões e obsessões que desencadeia, e que, ora aproximam os homens, criando um denominador comum, um ponto de encontro, ora os afastam irreversivelmente. Como todas as paixões incendiárias, o futebol é absorvente e devorador, cria tensões e é capaz de fomentar ódios e abismos intransponíveis. (Apenas outro homem e outra obra foram capazes de me abrir os olhos do coração para essa devoção que não partilho: António Lobo Antunes, na sua crónica intitulada «O Grande Barrigana»).
À época da narração, os campos de futebol de SãoVicente, em Cabo Verde, eram de terra batida, com balizas rudimentares, e os treinos, na ficção, estavam a cargo de Manuel Sousa Dias, o protagonista, antigo guarda-redes do mítico clube Mindelense(2). Um grupo de miúdos disputam uma partida despreocupadamente enquanto Mané os observa com atenção de olheiro, sonhando com um futuro no Benfica para Kalú, um dos mais talentosos meninos. Mané é um homem amargurado por não ter aceitado um convite para integrar o plantel do Benfica no longínquo ano de 1959, e por via dessa frustração é pouco atento à família que construiu, a quem responsabiliza pela sua vida monótona e longe da sua paixão maior. Ele é também o dono de um bar, O Bar Gaivota, por onde passam clientes «pelintras» que lhe fragilizam o negócio emborcando alegremente bebidas por conta da casa, enquanto jogam mancala. Mas são também os seus únicos amigos, que lhe suavizam a existência e com quem partilha os melhores momentos. As conversas giram inevitavelmente em torno de futebol, do Benfica, do Boavista; leem-se as últimas notícias da Taça de Portugal 92/93 (que conduziria a uma vitória do Benfica sobre o Boavista por 5-2, em 10 de Junho de 1993).
Os clientes são maioritariamente benfiquistas, leem futebol em português n’A Semana, Novo Jornal ou Terra Nova, e comentam-no em crioulo com sabor a grogue. Estalam a língua e deixam escapar, filosoficamente, que «o grogue é como a vida, quanto mais forte melhor!». Há entre os frequentadores da taberna um único boavisteiro, que é acusado de ser anti benfiquista e advogado do diabo e convidado a pôr-se a milhas até ao fim dos tempos…
Futebol e grogue misturam-se com paixão e opiniões abalizadas, de quem, como Mané, jogou à baliza durante 20 anos e se considera ainda muito capaz de encontrar soluções para o seu clube.
Mas este não é um filme sobre futebol, mas sobre pessoas, o poder da motivação, as opções que se tomam a cada passo e as outras, as que não fazemos, e que a vida se encarrega de escolher por nós. E sobre a importância da emigração em e para Cabo Verde, ontem e hoje, («Os jovens estão todos longe de Cabo Verde»); como se gerem as distâncias e os afetos, como se gerem os afetos à distância e as distâncias que minam os afetos? Para quem nasce numa ilha «a maior mágoa é ficar, não partir». Fala-se também da maledicência mas igualmente da solidariedade natural dos meios pequenos, como o Mindelo, onde as notícias se espalham depressa, do espírito de boa vizinhança, de companheirismo e de honra. E, sobretudo, do sentido da vida de cada um, de paixões, da importância de partir para poder regressar, de frustrações e deceções.
O futebol é apenas um meio, uma língua com muitos falantes e de notório interesse social, que FV usa
brilhantemente neste registo entre o cinema e o documentário, com ficção e poesia, mas também referências históricas importantes. Qualquer semelhança com a realidade pode não ser pura coincidência: o campeonato, os jogadores, a estátua do Eusébio, são alguns dos apontamentos que nos permitem situar a ação no tempo proporcionando um rigoroso enquadramento.
A paixão pelo futebol leva Mané a tentar resgatar a oportunidade que ele próprio desperdiçou no passado, criando um futuro para Kalú. Num rompante, decide meter-se num avião para Lisboa e assumir-se como empresário do miúdo. A estátua de Eusébio, recém-inaugurada, dá-lhe simbolicamente as boas-vindas no estádio do seu coração enquanto o seu caminho se cruza com o de Rui Águas e de José Veloso, jogadores ainda no ativo nessa época, estrelas do momento, que ouvem com atenção os seus propósitos.
Em Lisboa, cidade grande, é fácil um mindelense perder-se e perder a candura. Aí aprende a não confiar cegamente na simpatia alheia, e também que o futebol não chega para unir os homens, situação bem diferente da sua terra natal, onde os homens se reuniam em torno de uma telefonia para partilhar momentos de exaltação. Encontra um amigo da juventude, promissor futebolista, que leva então uma vida bem diferente da que tinha idealizado. Num abraço emocionado, desafiando-o para um encontro em São Vicente, despede-se dele com palavras sentidas: “Bo ten tera, sin. Bo ten Soncente. Bos amig ta tudu la”, (“Tu tens terra, tens São Vicente. Os teus amigos estão todos lá”).
Mané redescobre a importância dos laços de sangue e aprende a fazer opções melindrosas, nesse 10 de Junho único, em que o seu neto festeja os seus seis anos.
De regresso a São Vicente, carrega um sorriso diferente, que partilha com a mulher, companheira leal e tolerante que ele tem negligenciado repetidas vezes. Contando com um elenco soberbo, tanto nos papéis principais como secundários, FV consegue fazer-nos passar momentos de uma beleza indescritível e de reflexão. Tive o prazer de rever o ator Daniel Martinho no papel de Alberto, o filho emigrado de Mané e Lucy, que não se reconhece nos sonhos do pai e construiu a sua própria forma de felicidade.
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Este é um filme poético, fundamental, e com uma beleza feita de rochas vulcânicas, de cinzas e de diálogos[3] transbordantes de veracidade.
(1) Fundador da David & Golias (2) O Mindelense é um dos maiores clubes de Cabo Verde, um dos que mais títulos soma, a par de Sporting Clube da Praia. (3) Argumento e diálogos a cargo de Carla Baptista e Fernando Vendrell
Escrevo crónicas, contos e poesia. Ensaio palavras entre linhas e opino sobre cinema, preferencialmente africano e lusófono. Semeio letras, coleciono sílabas e rumino ideias.