
Fernando Vendrell – Almirante Reis0 (0)
10 de Maio, 2016
Um passeio pela filmografia de Fernando Vendrell ao longo de quatro filmes (III)
«Tudo branco. O branco de uma folha em cima da mesa, um homem sentado, com a caneta na mão e os olhos na folha. Era uma vez…»
Continuando a viagem pela filmografia de Fernando Vendrell, faço uma paragem atenta para este filme curto, que se vê como se respira, com ritmo e sem pressa.
Um escritor olha, angustiado, para a folha em branco na secretária modesta da pensão onde se alojou (a dona, misteriosa e só, morde a bochecha à laia de cumprimento). A folha lembra um convite, como um sorriso silencioso ou um olhar com o brilho certo.
O escritor desce a avenida onde os seus passos se cruzam com os de um absurdo Pai Natal, proxeneta nas horas vagas ou subsidiariamente. Ou o exato contrário, uma vez que o Natal só acontece uma vez no ano. Em suma, um tipo sem escrúpulos e com um arrepiante sentido prático. O escritor tenta evitá-lo, esquiva-se ao seu contacto abjeto, mas as suas rotas parecem destinadas a atravessar-se.
O seu caminho encontra também o da prostituta de cabelos de fogo, com dotes divinatórios, que oferece sorrisos e amparo, prometendo consolo e um colo; o de um polícia sonhador que divaga sobre a portugalidade, abrindo as suas asas sobre o mundo; e finalmente o de um empregado de mesa que filosofa, empolgado, sobre o assunto, dissertando sobre o sentido de ser-se português. Este último, por meio de um «se me dá licença» folgado e invasivo, instala-se no espaço do cliente feito ouvinte e discorre abertamente sobre o tema: dir-se-ia que essa «portugalidade», cuja essência tanto o intriga, encontra eco na sua própria figura.
E o escritor escuta, atento, recusando ser ator num mundo que fervilha; ele apenas se deixa impregnar dos instantes que a vida lhe cede. Expõe-se ao olhar do outro e serve de papel, onde se vão alinhando histórias incomuns do quotidiano.
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Estamos na avenida Almirante Reis, em Lisboa. O homem que apenas observa, com um olhar inócuo e descomprometido (alheio à sua própria vontade e mergulhado no distanciamento dos que estão de passagem), decide finalmente intervir. Viver. E torna-se o centro da sua vida, saltando da plateia para o palco, confundindo-se com o enredo que não chegou a escrever.
Fica-me uma crónica entre mãos para sentir e contar, numa folha em branco largada sobre uma qualquer escrivaninha, na Almirante Reis. Era uma vez…
Escrevo crónicas, contos e poesia. Ensaio palavras entre linhas e opino sobre cinema, preferencialmente africano e lusófono. Semeio letras, coleciono sílabas e rumino ideias.