Turp

Conversa a propósito de Turp
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15 de Dezembro, 2015 0 Por Rui Freitas
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Também o tempo torna tudo relativo.

Este artigo foi inicialmente publicado há mais de 7 anos - o que em 'tempo Internet' é muito. Pode estar desatualizado e pode ter incongruências estéticas. Se for o caso, aceita as nossas desculpas.

Filme Vencedor do Prémio Over & Out da Universidade Lusófona

Liliana Gonçalves tem 30 anos, nasceu em Peniche, está a terminar a licenciatura de cinema e lembra-se de sempre ter sido isso que queria. É bem-disposta, faladora, e diz-se feliz. É também uma boa companhia e talvez por isso mantive com ela numa esplanada e numa agradável tarde outonal uma longa e interessante conversa.

Teve um percurso escolar normal e no 11º ano decidiu ir para Audiovisuais o que a levou a voltar atrás, uma vez que este curso é do 10º ao 12º ano. Tirou então um curso de Técnicas Audiovisuais, na EPCI- Escola Profissional de Comunicação e Imagem durante três anos e para o trabalho obrigatório de final de curso (PAP) escolheu fazer um vídeo promocional das Forças Armadas. Apresentou os requerimentos necessários e foi aceite, tendo andado seis meses pelos três ramos. Concluído o trabalho cedeu o filme às forças armadas e conseguiu um estágio, exigido para conclusão do curso, na marinha durante três meses, tendo acompanhado manobras e exercícios dos fuzileiros e tido mesmo o privilégio de embarcar durante duas semanas num navio de guerra participante num exercício.

Depois da marinha entrou no exército para um novo estágio de mais três meses, mas deixou-o ao fim de um mês, mas não deixou o exército. Deixou a parte de audiovisual dedicada sobretudo a cerimónias, e passou para a parte operacional, onde se mantém ainda hoje, fazendo praticamente vida de militar acompanhando exercícios, campanhas e semanas de campo. 

Depois de terminado o curso e o estágio na marinha e no exército decidiu esperar um ano até  entrar para cinema e conseguiu.

Candidatou-se à Universidade Lusófona, através do exame para maiores de 23 anos e entrou com média de 18 valores nesse exame. O primeiro ano foi quase uma repetição daquilo que tinha aprendido na EPCI.

Turp - Liliana G. IIÀ pergunta se é artista ri-se e diz que sim, desde pequenina. Desde pequena via o pai a desenhar e desenhar bem, mas as artes visuais como praticante não a atraem, ou não considera o seu forte. Conta que fazia cenários com as suas bonecas e nas grandes conversas que mantinha com elas, fazia (naturalmente) pausas para as bonecas poderem falar também. Escreve quase compulsivamente e é desde muito nova que depois de ouvir notícias importantes, (como por exemplo o 11 de setembro em que tinha 16 anos), partia dos relatos , procurava informações e depois criava as personagens para escrever uma história onde aquelas notícias se enquadrassem. 

Ouve muita música e tem preferência por Punk, algum Rockabilly e Gypsy Punk.

Considera que se fizermos pausa num bom filme, o que fica no écran é uma boa fotografia.

Escreveu, co produziu e realizou o Turp que venceu ex aequo com o LUX o prémio para a melhor curta metragem do festival Over & Out da Universidade Lusófona.

Artes & contextos – Tu és neste filme realizadora, produtora, diretora de fotografia… o que é que tu és afinal? 

Liliana Gonçalves – Quero acreditar que vou conseguir ser uma boa Diretora de Fotografia.

A & c – Quando é que decidiste que querias vir a ser Diretora de Fotografia? 

L.G. – Desde criança que quando via um filme olhava muito para o décor e para a luz e ainda sem saber nada perguntava-me, como é que a luz vinha daquela janela, “será luz da rua, será um projetor que está ali escondido?” Ou olhava e via um bibelô e perguntava, “quem é que se lembrou de por aquilo ali, aquela coisinha que mal se vê está ali por alguma coisa”, depois percebia que se o bibelô se via era porque havia uma luz que o acentuava; então uma coisa puxa a outra, e foi assim que nasceu a minha curiosidade.

A & c – Quais foram os primeiros passos? 

L.G. – Eu já tirava fotografias e sempre dei muita atenção à luz e à iluminação, às sombras, etc., entretanto veio o Audiovisual onde tive três anos de iluminação e foi aí que comecei a aprender. Durante o curso eu ia relacionando o que estava a aprender com o que tinha visto naquele filme… e interessei-me logo. Quando fui para cinema já ia com a ideia da iluminação.

A & c – Começaste a fotografar muito jovem?  

L.G. – Sim porque todos os anos quando íamos de férias de verão eu fotografava tudo com a minha mãe, gastava rolos e rolos. Como o meu pai estava sempre em viagens na Marinha e nunca estava cá nas férias do Verão eu fotografava tudo, para lhe mostrar. Fazia “reportagens” das férias para o meu pai e ele depois tinha que “gramar” horas a ver fotografias. Depois ofereceu-me uma câmara de filmar e então eram horas de vídeo na televisão.

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Devora filmes e por isso vai muitas vezes ao cinema, mas confessa que muitas dessas vezes, dedica tanto da sua atenção ao décor e à iluminação que tem que voltar a ver o filme em casa para poder então desligar-se dos pormenores técnicos e usufruir do filme em pleno. Quanto a festivais, admite que além da falta de disponibilidade, não tem muita paciência para os acompanhar intensamente, prefere escolher do cartaz aquilo que mais lhe desperta a atenção para ir ver e julga que a maior parte das pessoas que vai aos festivais ver tudo, vai só para mostrar.

A & c – E a música do ponto de vista linguístico? Ouves uma música a pensar que ela seria bem aplicada como ambiente de um filme?

L.G. – Sim, mas isso surgiu de uma forma não espontânea porque em audiovisuais tive uma cadeira, que depois voltei a ter com outro nome e outra especialização em cinema, em que tínhamos que pegar em imagens de filmes ou trailers e fazer videoclipes com música diferente do que lá estivesse. Então obriga-nos a ouvir muita música e ouvir música com um objetivo em mente que é encontrar a música certa para aquelas imagens.

A & c – Como é que nasceu o Turp? Foi uma daquelas histórias que tu escreves ocasionalmente a propósito de qualquer coisa?  

L.G. – Não, o Turp teve um nascimento muito complicado.

Turp nasceu, ou melhor, foi concebido em 2012 como, ano em que entrou para a Lusófona e na cadeira Técnicas de Expressão Escrita onde os alunos tinham que desenvolver um conto sobre um tema, que nesse ano era “detesto isto, diz-me porquê”. A Liliana recordou-se, por detestar algo, de um esgotamento grave que sofreu entre os 18 e os 19 anos, e do qual a origem não chegou a ser esclarecida, mas que a levou a psiquiatria e a tomar medicação. Lembra-se de se afastar das pessoas e de as principais vítimas do seu desassossego e da sua revolta serem aqueles de quem mais gostava, os que estavam mais próximos. Lembrou-se então que poderia aproveitar esta experiência para o seu conto, mas faltava saber como.

Por essa altura o seu  grande amigo, Oficial do Exército Português,  Alexandre Lopes, estava uma missão no Afeganistão e com ele falava quase todas as noites. Numa das conversas falou-lhe do conto e desafiou-o para a ajudar a escrevê-lo e ele gostou da ideia. Começaram a trocar ideias e a da Liliana era contar uma história com um personagem masculino que vivesse (inspirado pela sua própria depressão) um problema grave por resolver na sua cabeça, uma perda muito grande, por exemplo. Como queria uma história plausível, Alexandre lembrou-se da guerra do Kosovo, uma realidade dura e ainda muito presente. Ficou decidido, então que o amigo, lá no Afeganistão faria pesquisas e tirava ideias, passava-as para a Liliana e ela enquadrava-as e desenvolvia-as junto de Alexandre.

Turp 3

A & c – E este conto viria a dar o Turp

L.G. – Muito mais tarde. No segundo semestre tivemos que desenvolver uma curta de cinco minutos e eu apresentei o meu conto que se chamava Marcas do meu ser. Passou pelos pitchings, com os outros até que ficaram dois, Marcas do meu ser e outro, e entre os dois os professores escolheram o outro. Eu fiquei tão triste que até quis desistir do curso, mas então, um professor meu e grande amigo Gonçalo Galvão Teles, mandou-me um email a dizer que tinha pena, mas a história era boa só para cinco minutos e então desafiava-me aproveitar os três anos de curso para desenvolver a história e levá-la ao projeto final e foi o que decidi fazer. Então passou o tempo e eu com mais conhecimentos fui desenvolvendo a história, fui-a alterando com um pensamento mais artístico.

No ano passado o tema anual era “Contos populares”. A partir dos contos que nos davam, os alunos tinham que escolher um e desenvolver uma história, mas eu já tinha a história e nos primeiros pitchings disse-lhes mesmo isso, que tinha uma história e andei à procura de um conto que encaixasse. Então percebi que os professores Galvão Teles e Paixão da Costa reconheceram a história, embora ela estivesse alterada e aceitaram-na.

Em 1999 algures no Kosovo, uma família é barbaramente assassinada por soldados sérvios. O jovem Aleksander, o mais velho de dois filhos é poupado. Turp, percorre em flashbacks intermitentes o amargo presente de Aleksander e as memórias do trágico dia, confinado àquelas paredes, testemunhas que o escondem do mundo.

Onze anos antes, enquanto crianças, Aleksander e um amigo jogavam ao berlinde e premonitoriamente, surgiu na brincadeira uma arma simulada.

Reencontraram-se em 1999 nas piores circunstâncias possíveis, e desta vez com armas a sério, em lados opostos de uma guerra que para além de tudo o mais, separou “irmãos” e, por convenções, transformou amigos em inimigos.

A sobrevivência de Aleksander deveu-se àquela amizade, mas esta sobrevivência perpetuaria uma dor tão grande quanto a perda: a culpa.

Trinta dias depois, o presente parece continuar a ser aquele dia perpetuado; aquele passado tão recente alternando no écran e não na memória cores quentes e frias ou juntando-as na mesma imagem, como se a culpa e a redenção pudessem viver juntas. As cores de Aleksander são frias, pastel. Desde então, mutila-se a si próprio e crava no corpo as marcas da sua vergonha e fá-lo frente a um espelho para não poder escapar. Fá-lo com uma caneta, que como um símbolo passara do pai para si, que a deu ao irmão mais novo e que regressou para, quando já mais nada tem, a transformar no aparelho do seu carrasco, a vergonha.

O Turp é um filme de autor, uma obra complexa, de imagens fortes, de dor; rigorosa na sua construção e numa narrativa aberta que deixa ao espectador espaço de composição. Com poucas palavras e em que o que não se diz é o que mais significado tem.Turp 2

Para a Liliana, segundo as próprias palavras, foi muito complicado gerir todos os aspetos da realização e da produção porque o projeto tem que partir de uma equipa, logo teria que haver um realizador/a, um produtor/a um/a responsável pelo som, um/a responsável pela arte, etc. e como considerava história muito pessoal, foi difícil chegar ao ponto de aceitar que a história já não era só sua e que alguém fizesse alterações em coisas das quais ela não estava disposta a abdicar. “Custou-me porque eu não conseguia permitir que ninguém mudasse nada, eles não sentiam a história como eu. Dizia-lhes “querem trabalhar tem que ser com isto se não quiserem com isto, não trabalham comigo”; chorei, tive febre por causa dos nervos, foi muito complicado, a pré-produção foi horrível”.

A & c – Se começasses hoje a fazer o Turp, fazias tudo da mesma forma?  

L.G. – Fazia tudo igual. Fazia tudo exatamente a mesma forma. Até a febre…[risos]

Foi rodado num apartamento de um prédio em Lisboa que ia começar a ser restaurado. Ali viram uma casa onde já tinham começado as obras e perceberam que no estado em que estava servia na perfeição para “transformar” numa casa do Kosovo do pós-guerra. Abordaram a arquiteta responsável que conseguiu junto dos proprietários que a obra fosse adiada uma semana e durante cinco dias, – com o mais complicado guardado para o sábado, último dia, (até para terem todos militares disponíveis) – trabalharam dez a doze horas por dia e completaram as filmagens.

A & c – Rodaste o filme em película ou em digital?  

L.G. – Na altura pensamos em fazer em película, só que a película que o nosso professor ia conseguir disponibilizar era pouca para o filme que queríamos. Eu ficava sem película só na cena do massacre e era no último dia, portanto não tinha película que chegasse, nem o professor arranjava mais do que aquela que tinha disponível. Então fui para o digital, com a Sony F5 com lentes Zeiss de 35 mm. O filme era muito complexo para se estar a contar a película.

Por outro lado, graças aos apoios que a Liliana conseguiu junto do exército, tanto com a disponibilização das armas como dos próprios militares que participam no filme, a produção da parte mais cara do filme estava garantida de forma gratuita. No entanto mais tarde abdicou de parte desse apoio tendo este sido assegurado pelo Rúben da ATW. 

A & c – Quem fez o casting?  

L.G. – Foi o co realizador, o Francisco Neves. O ator principal é Miguel Nunes, interpreta o Aleksander. O José Fidalgo como oficial, o Nuno Henrique o meu irmão Gonçalo Gonçalves e o Alexandre Lopes, foram meus convidados e também fundamental, foi a caraterizadora Helena Batista.

A & c – Como é que eles aprenderam a falar sérvio?  

L.G. – O Fidalgo aprendeu com um sérvio, ele gravou as falas e mandou-lhe, ele esteve a ouvir a gravação até entrar em cena. Os militares como estavam com a cara tapada falaram em português e nós dobramos por cima.

A & c – Qual é o simbolismo da secretária, estou a lembrar-me da cena do espelho em que o Aleksander está no presente o irmão está no passado sentado à secretaria. A secretária corre o filme todo em momentos chave… 

L.G. – Certo, os pais são professores e o Aleksander e o irmão leem e escrevem muito, o que puxaram dos pais e então a secretária está sempre presente no ambiente, é como que a ferramenta deles.

A & c – Dás muita importância a todo o som e a todos os pequenos ruídos, mas também ao silêncio…  

L.G. – Sim, aliás o filme quase não tem música. Eu gostava de conseguir o silêncio absoluto. De resto foi tudo gravado em estúdio, todos aqueles sons que se ouvem foram gravados para o filme , não se foi buscar nada a bibliotecas, foi tudo real e colocado no filme.

A & c – Sei que como tudo no filme a banda sonora tem que ser original. Como surgiram estes temas?  

L.G. – Eu já tinha muito clara a ideia do que queria, mas não percebo de som. Ouvi três ou quatro músicas dos Pink Floyd, que dei ao Pedro Lourenço para referência e disse-lhe “está aqui o que quero, a partir disto faz o que tu entenderes, mas é a partir daqui, as referências são estas”. Ele foi compondo, fomos trocando ideias e aperfeiçoando e no fim não ficou 100% como eu queria, mas é um projeto.

A & c – Quem é que já viu Turp?  

L.G. – O Turp foi mostrado no festival Mostrarte no Porto, mas eu não tive oportunidade para lá ir portanto não faço ideia quem o viu e foi apresentato e no Over & Out ganhando o prémio de melhor curta metragem 2015.

Turp 5

A & c – Como é que chegaste aos “Prémios Sophia”? 

L.G. – Faz parte do protocolo da Lusófona enviar os filmes para festivais escolhidos. No caso do “Sophia” foi assim. Foram enviados perto de vinte  filmes para eles escolherem três ou quatro e o Turp foi um deles. Os outros não são da Lusófona.

A & c – Não pensas em realizar?  

L.G. – Não, só realizei este filme porque não o dava para realizar a ninguém.

Turp - Liliana G.A & c – Como é que imaginas o teu futuro, ou o futuro da tua carreira?  

L.G. – Aquilo em que eu gostava de trabalhar tem que ter a ver com dramas, guerras, ou documentários, por exemplo eu adorava, não para agora, mas eu adorava ir num contingente militar estrangeiro, por exemplo para o Iraque ou para a Síria, ir para o terreno fazer documentários. Se estiver a trabalhar como diretora de fotografia então qualquer filme ou género, desde que me dê prazer.

A & c – E a natureza não te seduz?  

L.G. – Eu adoro animais e ajudo em várias associações; gosto de ver documentários da natureza, mas só aquilo não me seduz, tinha que ser mais desafiante.

A & c – Acompanhar o Bear Grylls, o apresentador do programa Man versus Wild, do Discovery Channel, por exemplo… 

L.G. – Isso gostava, mas porque é um desafio e o próprio treino dele [ex-agente do Special Air Service (SAS)] puxa por quem o acompanha e aí eu iria estar com ele e por acréscimo o cenário é a natureza.

A & c – Vês o Turp no teatro?  

L.G. – Sim, acho que até ficava bem numa peça de teatro.

A & c – E passá-lo para uma longa? 

L.G. – Gostava, mas para isso teria que reescrever a história.

A & c – Dois exemplos de boa fotografia.  

L.G. – Adorei a fotografia do Senhor os Anéis e adorei a fotografia do Resgate do Soldado Ryan .

A & c – Escreverias uma história para entregar a sua realização a outro/a? 

L.G. – Se eu escrever tenho que ser eu a realizar. Só seria possível se eu me dedicasse a escrever histórias e me desligasse delas e então entregava-as para as realizarem. Teria que ser argumentista.

A & c – Se fosses obrigada a entregar o Turp e pudesses escolher sem limites, quem terias para o realizar, para o papel do Oficial, para o papel do Aleksander e para compor Banda Sonora? 

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L.G. – Para a realização Steven Spielberg, pelos dois filmes maravilhosos que tem sobre guerra e pela série Band of Brothers; para Aleksander, James Franco, porque tem expressões dramáticas boas para o género; o oficial seria Rade Serbedzija e a banda sonora, John Towner Williams.

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Jornalista, Diretor. Licenciado em Estudos Artísticos. Escreve poesia e conto, pinta com quase tudo e divaga sobre as artes. É um diletante irrecuperável.

Jaime Roriz Advogados Artes & contextos