José Gomes Ferreira
José Gomes Ferreira poderia ter sido advogado, poderia ter sido diplomata (e foi), poderia ter sido jornalista (e foi) e até poderia ter sido tão só um cidadão de um pequeno país, consciente e sofredor das suas dores, como tantos outros sonhado a liberdade e abraçado o sonho, como tantos outros chorado o seu país, como tantos outros sentindo-se sozinho. E foi, mas foi muito mais.
Foi poeta, romancista, novelista, legendou obras cinematográficas, fez traduções e redigiu, crónicas, contos e intrigas policiais, dirigiu a revista Ressurreição – Revista de Arte e Vida Mental, (onde chegou a colaborar com Fernando Pessoa no soneto Abdicação), foi músico, colaborou, em revistas como a Presença, a Seara Nova, a Gazeta Musical e de Todas as Artes, Descobrimento, Imagem e Kino revistas de cinema, Galo, O Diabo, Revista de Portugal, Portucale, Europa, Cadernos do Meio-Dia e no jornal infantil Senhor Doutor, onde publicou em folhetins As Aventuras de João Sem Medo; publicou ensaios, peças teatrais, introduções, prefácios, comentários, notas e cerca de quarenta títulos entre coletâneas de poemas, obras de ficção, crónicas e livros de memórias.

A música era outra das suas paixões. Depois de ter escutado a primeira audição mundial da Sinfonia Clássica de Prokofiev, compôs o poema sinfónico, Idílio Rústico, inspirado no romance Os Meus Amores de Trindade Coelho que se estreou em 3 de Março de 1918 no Teatro Politeama executado por uma orquestra dirigida pelo maestro David de Sousa.
Em 1947, quando nasceu o ramo juvenil do MUD, e para música composta por Fernando Lopes-Graça escreveu a letra do hino Jornada ou Vozes ao Alto, como é conhecido, que se tornou um hino da resistência antifascista tendo ultrapassando as fronteiras partidárias.
Colaborou com a canção Não fiques para trás, ó companheiro com poetas neorrealistas num álbum de canções revolucionárias compostas também por Fernando Lopes Graça.
Nasceu no Porto, uma cidade que largou cedo e amou sempre, a 9 de Junho de 1900. Com quatro anos de idade o pai, empresário fixou-se em Lisboa na zona onde hoje é o Lumiar.

Estudou nos liceus Camões e Gil Vicente e neste foi aluno de Leonardo Coimbra (1883-1936), através de quem “contactou” com os poetas saudosistas, (em especial Raul Brandão que viria a considerar seu mestre) e alguma motivação política. Este professor, filósofo e político lançou as Universidades Populares e a Faculdade de Letras do Porto e criou a Renascença Portuguesa, um movimento cultural surgido em 1912 no Porto que tinha um ideal nacionalista ligado ao neogarrettismo e a um profundo sebastianismo, e que obedecia ao ideal de “dar conteúdo renovador e fecundo à revolução republicana”, teve efetivamente influência no percurso de José Gomes Ferreira.
Dizia que a sua aventura poética começou por volta dos oito anos quando reparou na “existência das palavras”.
Por influência do pai Alexandre Ferreira, (um democrata republicano), cedo ganhou consciência política e com dez anos de miúdo traquina, – que passava o tempo em cima de muros ou trepando árvores – na manhã de 4 de Outubro de 1910, correu pela rua com um grupo de miúdos exibindo uma bandeira verde e vermelha feita de papel de seda presa a um cabo de vassoura, onde se lia Viva a República em letras recortadas e coladas. Já jovem adulto queimou em pleno café Gelo um retrato de Sidónio Pais, numa altura em que era frequentador daqueles cafés da baixa lisboeta feitos centros de discussão onde decorriam tertúlias políticas e artísticas, nasciam movimentos e se cozinhavam conspirações, como o Martinho da Arcada, o Portugal e a Brasileira.

Em 1919 quando já era sócio da Liga da Mocidade Republicana alistou-se no Batalhão Académico Republicano.
Licenciou-se em Direito em 1924, na Universidade de Lisboa, e foi nomeado pelo então ministro dos Negócios Estrangeiros, Vasco Borges, cônsul de Portugal na Noruega, cargo que exerceu entre 1926 a 1929 na cidade de Kristiansund.
Aprendeu com alguma facilidade a língua norueguesa, e ao fim de alguns meses lia jornais. Uns meses mais e começou a ler grandes autores como Ibsen, Björnson, Killand e Knut Hamsum. Aproveitou a solidão para de novo compor algumas peças musicais, que desvalorizava como ninharias sem futuro.
A sua vida foi um roteiro de altos e baixos emocionais, de vitórias e desapontamentos, de esperança e desilusões de vibração militante e desespero impotente, de entusiamo com o futuro e amargura com o presente, mas ainda assim, simpatizava “com tudo o que cheirasse a vanguardismo e modernidade”. Entre os seus amigos contavam-se Carlos Botelho, Diogo de Macedo, José Rodrigues Miguéis, João Gaspar Simões, Cottinelli Telmo, Francisco Keil, Alves Redol, Carlos de Oliveira, Fernando Namora, Manuel da Fonseca e Soeiro Pereira Gomes.
Esteve ligado ao grupo do Novo Cancioneiro, um movimento de jovens poetas neorrealistas que se dedicavam a uma poesia de estética intervencionista contra o regime de Salazar e que incluía entre outros, Fernando Namora, Mário Dionísio e João José Cochofel.
Embora na sua obra se encontrem traços vários de neorrealismo ou realismo socialista como um apelo, da interiorização e delírio do surrealismo e até do saudosismo – corrente que incorpora uma atitude perante o mundo que tem como base a saudade – considerada por Pascoaes o grande traço espiritual definidor da alma, e “induzida” por Leonardo Coimbra, é difícil liga-lo efetivamente a qualquer uma destas correntes. Embora a dada altura tenha afirmado talvez ironicamente, que o que lhe interessava era a vida quotidiana e vulgar das ruas e dos cafés, a sua escrita tem sempre presente uma preocupação humanística, é politicamente participativa e incorporada na luta contra a ditadura de Salazar, cantando a liberdade e a solidariedade e dedicando grande atenção à injustiça e ao sofrimento alheio. Há quem encontre nas suas palavras um existencialismo precoce e no seu modo um romantismo latente. Os seus poemas e as suas canções andaram nas bocas dos antifascistas atestando o seu estatuto intervencionista e panfletário.
Em 1918 publicou Lírios do Monte (1918) (com capa de Stuart de Carvalhais), obra que virá a retirar da sua bibliografia, responsabilizando os seus professores pelas rimas estéreis e pelo apelo a uma falsidade generalizada ao escrever sobre assuntos campestres e bucólicos dos quais nada sabia, sobre flores que nunca vira, apenas com preocupações de rima. Refere ainda a ausência total do espírito revolucionário do Orpheu. Publicou ainda em 1918 Longe, mas apenas considera o seu verdadeiro início com o poema Viver sempre também cansa, escrito em maio de 1931 e publicado no nº 33 da Presença.
Embora se tenha sabido que nunca deixou de escrever, tendo as gavetas cheias de “nuvens”, como se referiu aos poemas que foi reunindo, só em 1948 começou a publicação consistente do seu trabalho, com Poesia aquele que ele considerou o seu livro de estreia e com a colaboração na Homenagem Poética a Gomes Leal.
A sua obra poética viria a ser reunida posteriormente nos três volumes de Poeta Militante – Viagem do Século Vinte em Mim. Em 1950 foi publicado o volume de Poesia II, sendo também editado o livro de ficções O Mundo dos Outros – histórias e vagabundagens, uma recolha do que tinha publicado em crónicas na revista Seara Nova. Em 1956 publicou Eléctrico e em 1958 organizou com Carlos de Oliveira, a antologia Contos Tradicionais Portugueses. Em 1960 é a vez da ficção com O Mundo Desabitado e em 1961 recebeu o Grande Prémio da Poesia pela Sociedade Portuguesa de Escritores, patrocinado pela Fundação Calouste Gulbenkian pelo livro Poesia III. Em 1962 saiu Poesia IV e foi publicado o livro Os Segredos de Lisboa. Em 1963 edita-se Aventuras Maravilhosas de João Sem Medo, uma das suas maiores e mais emblemáticas obras, sucessivamente reeditado.

É um livro carregado de simbolismo e algum surrealismo alheios (ou não) ao imaginário infantil, mas que se passeia por mitos e sonhos, composto em muito com o recurso a alegorias atentas ao radar da censura. A realidade do dia-a-dia povoa o livro, que sem fórmulas rígidas vai mostrando um imaginário que apenas os adultos entendem e reconhecem num mundo que apesar de fantástico é recheado de sinais que o aproximam mais do real do que pode parecer.
Em 1965 foi a vez de A Memória das Palavras – ou o gosto de falar de mim o seu primeiro livro de reflexões e memórias que recebeu o Prémio da Casa da Imprensa.
Em 1966 saiu Imitação dos Dias – Diário Inventado, em 1969 o livro de contos escrito no seu “interregno norueguês” Tempo Escandinavo, em 1971, O Irreal Quotidiano – histórias e Invenções e finalmente em 1973 Poesia V. Em 1975 saíu Gaveta das Nuvens – tarefas e tentames literários e o Crónicas Revolução Necessária, em 1976 editou-se O Sabor das Trevas – Romance Alegoria e em 1977 um novo volume de crónicas: Intervenção Sonâmbula.
Em 1978 foram publicados os volumes I, II e III de Poesia Militante que reúne a quase totalidade da sua obra anteriormente publicada nos seis volumes Poesia. Nesse mesmo ano foi eleito presidente da Associação Portuguesa de Escritores (que sucedeu à Sociedade Portuguesa de Escritores. encerrada pela polícia política) e ainda publicou Coleccionador de Absurdos e Caprichos Teatrais.
O Enigma da Árvore Enamorada – Divertimento em forma de Novela quase Policial e o Relatório de Sombras – ou a Memória das Palavras II saíram em 1980.
Em Junho de 2000, foi lançada no Porto a coletânea Recomeço Límpido, que inclui versos e prosas de dezenas de autores em homenagem a José Gomes Ferreira.

Tendo nos primeiros cinquenta anos de vida publicado apenas alguns – poucos – títulos, apesar de como afirmava sempre tenha enchido as “gavetas com nuvens”, José Gomes Ferreira tornou-se, também pela dimensão da sua obra um dos mais importantes escritores portugueses do séc. XX.
Mas foi também um homem social e politicamente interventivo. Opôs-se jovem, à ditadura de Sidónio Pais e, mais tarde, à de Oliveira Salazar. Em 1979 foi candidato da APU por lisboa nas eleições legislativas intercalares e em fevereiro do ano seguinte filiou-se no PCP (Partido Comunista Português). Apesar de amigo de longa data de Lopes-Graça, desde cedo militante comunista, Gomes Ferreira manteve-se até então afastado do partido e próximo de intelectuais que se tinham distanciado.
Apesar disso, e ao contrário da maioria dos neorrealistas, a poesia de José Gomes Ferreira, não se inflama de conotação política militante, nem configura uma expressão estética marxista, tendo sempre optado pelo seu próprio individualismo mesmo que aberto ao sofrimento dos homens, aos problemas da humanidade e à injustiça social. Numa linguagem direta e simples, e “marcado” por Raúl Brandão ele é porta-voz, é acusador, é denunciante das barbaridades do mundo dos nossos dias, declamando, gritando ou tão só espantando-se ou lamentando entristecido.
As homenagens chegaram aos 80 anos.
A Escola Secundária de Benfica, projetada em 1978 pelo seu filho Raul Hestnes Ferreira recebeu o nome de Escola Secundária de José Gomes Ferreira.
Em 1981 foi pelo presidente da República Ramalho Eanes condecorado como Grande Oficial da Ordem Militar de Santiago da Espada; em junho de 1981 recebeu a distinção de Cidadão Honorário de Odemira; em 1985 foi distinguido com o grau da Grande Oficial da Ordem da Liberdade e em 1983 foi homenageado pela Sociedade Portuguesa de Autores.
O (depois presidente da República) Jorge Sampaio descerrou em 1990, enquanto Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, uma lápide em sua homenagem, no prédio da Avenida Rio de Janeiro, sua última morada.

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Durante os seus 85 anos vida José Gomes Ferreira Portugal viu ainda muito jovem, nascer a Republica, e os seus ideais ruírem no caos que se gerou, acompanhou os devaneios ditatoriais de Sidónio Pais, em 1914 o início da Primeira Guerra Mundial (ou a primeira parte da Grande Guerra Mundial), e o seu termo em 1918, em 1917 deu-se a Revolução Russa; suportou já adulto a grave crise económica e o desencadear em 1936 da Guerra Civil Espanhola que iria durar até 1939; viveu nesse ano o início da Segunda Guerra Mundial que se arrastaria até 1945 deixando parte da Europa em ruínas; sentiu o corporativismo e a Guerra Colonial portuguesa, o estalar da Guerra Fria e a ameaça nuclear, ainda sorriu e se comoveu com a queda da ditadura em Portugal e quase viu o colapso do Socialismo e a mais do que simbólica queda do Muro de Berlim.
Em 1983 foi submetido a uma melindrosa operação cirúrgica e viria a falecer a 8 de Fevereiro de 1985, na sua casa da Avenida Rio de Janeiro, em Lisboa.
Jornalista, Diretor. Licenciado em Estudos Artísticos. Escreve poesia e conto, pinta com quase tudo e divaga sobre as artes. É um diletante irrecuperável.
