Gil Bentes

Gil Bentes- A Arte na Rua
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26 de fevereiro, 2015 0 Por Rui Freitas
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Também o tempo torna tudo relativo.

Este artigo foi inicialmente publicado há mais de 8 anos - o que em 'tempo Internet' é muito. Pode estar desatualizado e pode ter incongruências estéticas. Se for o caso, aceita as nossas desculpas.

Gil Bentes na “Feira da Ladra” – a arte na rua.

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Sábado. Estava uma fria, mas luminosa e soalheira manhã de Inverno e eu cumpria um dos meus ocasionais passeios pela feira da ladra pelo meio das bancas e das pessoas numa azáfama calma e colorida que me faz quase sempre sentir como uma criança numa loja de brinquedos. O que eu faço de facto é bisbilhotar pelo meio do novo, do velho, e da quinquilharia à procura de nada em especial. Isto é a feira da ladra e é isso mesmo. Descia a rua quando ao lado de uma banca de artesanato notei uma espécie de pórtico com uma série de pequenos quadros expostos. Aproximei-me e despertou-me a atenção o imaginário fantasmagórico de parte das composições, colorido apesar da matriz negra, a elegância dos traços finos e a coerência cromática da aguarela em degradés, na maioria luminosos. Os monstros (a maior parte dos personagens) imaginados poderiam ter sido arrancados de recantos do Inferno do Jardim das Delícias Terrenas ou decorar o sombrio imaginário de Algernon Blackwood, mas, (ou e), comportam uma indisfarçada presença de humor negro. Percebe-se um surrealismo com pendor neo-romântico e até pitadas de gótico. Todas as composições primam por um equilíbrio tanto cromático quanto formal e a variedade dos temas expostos e até as próprias abordagens demonstram exploração, procura e até experimentação, apesar da maturidade do traço.    

Depois de uma breve apresentação, combinamos encontrar-nos fora dali para conversarmos. Encontramo-nos no Parque da Nações eu, o Gil Bentes e o meu gravador.

 Na feira da ladra descobrira a sua base de lançamento. Já desde os três ou quatro anos que dizia querer ser pintor e encaminhou os estudos para as Belas Artes, até que encalhou em Geometria Descritiva. Depois de um ano a batalhar com a cadeira maldita de muitos artistas em Portugal desistiu. Cresceu num ambiente artístico os pais nunca o tentaram encaminhar para os cursos “rentáveis” e sempre foram compreensivos com as suas opções. Os pais são artesãos criativos (e também pintam) e têm um espaço na feira que começaram a partilhar com ele. Ao princípio resistiram, queriam que ele continuasse a estudar, mas eles próprios – “malta alternativa, uns hippies modernos”, como ele diz – cedo escolheram para si esta vida de feirantes, livre dos compromissos standard e da rotina nine to five da sociedade convencional. Aquele fora um ano perdido em que sentira que estava a desaprender, a afastar-se dos seus mais altos objetivos. Também toca guitarra e quando se imaginava a ganhar dinheiro na rua, acreditava que seria mais fácil a tocar, mas agora que vende os seus quadros a um bom ritmo está satisfeito. Encontrou-se consigo, abandonou a aldeia de Barbas e veio com a namorada instalar-se em Lisboa para todas as terças e sábados rumar à feira onde revê os pais, pinta, expõem, e vende a sua arte.  E valeu a pena, pois sente que no ano que entretanto passou, melhorou bastante e agora livre, sabe que vai continuar a melhorar. 

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Admite que é surrealista, mas ainda não atingiu o que quer. Quer aproximar-se mais do surrealismo puro, mais estranho e ao mesmo tempo mais negro. Os seus pintores favoritos são sem surpresa Bosch, Dali e “(Hans Rudilf) “Reudi” Giger e embora pinte em formatos pequenos, gostava de pintar a óleo, que ainda não experimentou, quadros grandes. Já pintou quadros maiores em acrílico, mais próximo do que quer atingir, mas ficaram por acabar quando chegaram a um ponto em que não gostava do que via. Não pensa concluí-los porque, como com o passar do tempo se aperfeiçoa e ganha experiência, quando olha para os quadros incompletos já não vê sentido em completá-los, mas sim começar de novo. Afirma insistentemente a sua juventude, inexperiência e necessidade de evoluir e a sua certeza quanto a isto, mas sonha um dia ser um velho sábio e ajudar os artistas jovens.

Rui Freitas – Onde vais buscar a inspiração?

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Gil Bentes – À minha imaginação, mas posso olhar para as nuvens e ver formas, às vezes desenho só uns riscos e depois apanho ali qualquer coisa e desenvolvo, também me inspiro muito em memórias da minha infância,mas a maior fonte é mesmo a minha imaginação.

RF – Uma música ou um filme podem inspirar-te?

GB – Podem e já aconteceu, mais música do que filme.

RF – Alguns dos teus “bonecos” representam alguém que tu tenhas visto ou que conheças e te tenha apetecido caricaturar ou ridicularizar?

GB – Já, mas é raro.

RF – Nunca te aconteceu quereres fazer qualquer coisa e não teres aquela cor ou aquela caneta?

GB – Não, porque se me falta alguma coisa, uma cor ou uma caneta, tento resolver com as coisas que tenho.

RF – Qual foi o primeiro quadro que vendeste?

GB – Foi um corvo.

RF – Foi uma sensação fantástica, ou foi de conflito?

GB – Primeiro foi, fiquei todo contente, mas depois fiquei com medo a pensar se seria aquele o único.

RF – Quando dás um quadro como pronto estás disposto a “despachá-lo”?

GB – Estou porque eu divido os quadros que são para mim e os que são para vender. Tenho alguns que são para mim.

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RF – E decides separá-los antes de fazer ou ao olhar para eles depois de prontos?

GB – Antes de fazer já sei que o que estou a fazer é para vender.

RF – Tiveste medo quando deste este passo?

GB – Tive, porque nunca me tinha exposto tanto, mas estou a gostar de Lisboa. Já conheci vários artistas até na feira, já estou aqui a falar contigo e já aconteceram muitas coisas em dois meses, por isso tenho boas expectativas.

RF – O que é que tentarias fazer se não conseguisses o suficiente a pintar e precisasses de ganhar mais algum? Um emprego ou qualquer coisa.

GB – Música. Como toco guitarra talvez tentasse montar uma banda para ganhar algum dinheiro. Eu tive uma banda com uns amigos, mas depois por causa da escola fomos um para cada lado.

E o que tocavam?

Eu gostava que fosse mais Rock ‘n Roll mas o vocalista era fã dos Pearl Jam por isso ficamos mais próximos do Grunge.

E as letras?

Eramos miúdos. (Risos), eram um bocado parvas (risos)

Gil Bentes está há dois meses em Lisboa e aquilo de que tem mais saudades são o cão, já velhote e os gatos, mas também o sossego, e os amigos Francisco e David, companheiros de conversa, de passeios pelo mato e de experiências artísticas. Se veio na altura certa ou se poderia ter vindo mais cedo, não sabe, não é de arrependimentos, nem de fazer contas sobre como poderia ter sido isto ou aquilo, simplesmente ao fim do dia pensa, as coisas aconteceram, já foram, há que seguir em frente. Não é muito de livros, mas gosta de estudar, mas como não foi abençoado com bons professores, tirando duas exceções, estuda com os amigos e na net, onde pesquisa e observa pintura e pintores. Tem o seu espaço em casa, “um espaço pequenino numa casa pequena” e gostava de ter um estúdio para pintar e para ter instrumentos musicais. Não se importava que o estúdio fosse maior do que o resto da casa. Para ele estaria bem. Passa o tempo a ouvir música, a procurar quadros na net, e a jogar consola.

RF – Pensas mais tarde voltar a estudar?

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GB – Estou um pouco dividido. Estou um bocado contra a escola.,  com o ensino de artes em Portugal, há coisas que eu não gosto, no entanto eu gosto muito de aprender e gostava de ter um mestre, mas estou muito desiludido com o ensino das artes em Portugal.

RF – Estudaste História da Arte…

GB – Sim

RF – E gostaste?

GB – Gostei, mas não tudo. Eu também era miúdo, era mais ignorante para as artes antigas como a arte da Grécia, e por aí… adormecia mais nas aulas (risos)

RF Interessa-te a atualidade política?

GB – Não. Gosto de estar updated, mas a política mesmo não me interessa.

RF – Se tivéssemos agora aqui o jornal o que é que procuravas?

GB – Agora ia ver se tinha acontecido mais alguma coisa em França (esta conversa ocorreu a 22 de janeiro)

RF – E o que achas do que se passou em França?

GB – Acho horrível. Acho que o humor nunca é falta de respeito. Uma piada é só uma piada. Por exemplo eu gosto de Canibal Corpse que têm umas letras horríveis e violentas, mas isso não significa que ele sejam assim.

RF – Como um realizador de filmes de terror…

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GB – Sim. Eu sou contra a violência e contra todos os extremismos, mas o que as pessoas dizem ou pensam, não me afeta, só é mau se passarem aos atos, por pensamento ninguém pode fazer mal nenhum a ninguém.

Acha que a arte é livre e não pode ser limitada desde que não se pratiquem atos bárbaros em nome da arte e que é intervencionista, mas não obrigatoriamente.

Vive sem amarguras e sem ressentimentos.

Tem duas tatuagens falhadas feitas por um amigo, mas ri-se, não se importa, “é uma memória fixe, são marcas próprias”.

Gostava de tatuar uma obra de Guiger num braço. Mantinha desde pequeno o sonho de um dia o vir a conhecer pessoalmente, conversar com ele, e no dia em que ele morreu foi dia de grande desgosto. Ficou o desejo de encontrar um tatuador que o fizesse mesmo bem. Mas tem que juntar dinheiro.

Chama-se arte com muita facilidade a outras coisas – o futebol é uma arte a tourada é uma arte – e ele não concorda, acha que deveria haver dois termos diferentes porque há uma arte de fazer as coisas, os professores têm a arte de ensinar por exemplo, e há a arte que os artistas produzem, mas não considera que tudo o que um artista produz é obrigatoriamente uma obra de arte. Não considera uma obra de arte, um quadro que seja pintado com o único objetivo de vender por exemplo.

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RF – O que é para ti uma obra de arte?

GB – Na minha opinião, para uma obra ser considerada uma obra de arte tem de haver um grande empenho mental por parte do artista. O artista tem de conseguir meter os seus pensamentos na obra, e fazer com que todos esses pensamentos se “encaixem” perfeitamente. Considero a parte técnica muito importante mas, acima de tudo, valorizo o empenho, o pensamento que levou o artista a fazer a obra ou a ausência do mesmo, apenas instinto.

RF – O que tem que ter um retrato para se uma obra de arte?

GB – O artista tem que estar preparado mentalmente. Acho que para um retrato ser uma obra de arte tem de conseguir retratar as emoções da pessoa a ser retratada e ter uma boa composição, não penso que se trate apenas da capacidade de realismo do artista, mas muito mais do que isso.

RF – Não te incomoda ou atemoriza a exposição pública?

RF – Não porque eu sou uma pessoa diferente nessa altura, mudo completamente. Na banda era pior porque tu estás em palco as pessoas estão a olhar para ti mas na banca na feira as pessoas olham mais para os quadros. Mas até tenho saudades de estar em palco, qualquer dia volto a montar uma banda.

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RF – E os teus gostos musicais?

GB – Gosto de muita coisa desde metal, rock, punk, música clássica, chillout, jazz,… Quando digo a alguém que gosto de metal mas também gosto de música ambiente as pessoas acham estranho porque não percebem que tem mais a ver do que pensam. Os Black Sabbath são um bom exemplo.

Acha que é uma característica dos artistas um gosto mais aberto.

RF – Foste uma criança mimada? Isto no sentido positivo, acarinhado, aconchegado, com atenção…

GB – Sim, nunca fui uma criança birrenta, nem de pedir, mas aos dez anos já tinha vivido mais do que muitas pessoas com essa idade, os meus pais levavam-me com eles a feiras, a festivais… foram como eu quero ser um dia quando for pai.

RF – Quais são os gostos dos teus pais.

GB – A minha mãe gosta de metal foi ela que me mostrou Iron Maiden o meu pai o punk, mais Dead Kennedys.

RF – Eles influenciaram-te muito…

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GB – Sim, mas quando dizem que eu tenho talento e jeito para o desenho e que isso é só porque tenho pais artistas, não tem nada a ver. Claro que os meus pais ajudaram-me bastante, mostraram-me artistas que eu gostei e pelo facto de eles serem do mundo da arte faz com que eu desde pequenino tenha gostado do mundo da arte, mas eu sou como sou graças ao meu empenho para aprender. Eu não acredito que o talento tenha grande significado. Para mim o que tem mais significado é a paixão e o trabalho árduo, acredito que o talento se constrói trabalhando, e não nascendo-se com ele.

RF – Mas há pessoas que por muito que se esforcem, por muito que estudem, não conseguem ter mesmo jeito nenhum para desenhar.

GB – Há pessoas que têm mais dificuldade que outras claro, mas eu acredito se as pessoas tiverem paixão e dedicarem a vida toda só a desenhar, isto significa, desenharem todos os dias, lerem artigos sobre arte todos os dias, estudarem arte de outros pintores todos os dias, que no espaço de alguns anos vai haver uma melhoria. Se houver paixão suficiente essa melhoria vai aumentar todos os anos.

Ainda não se considera plenamente um artista porque ainda tem muito que aprender. Um artista tem que chegar a um ponto em que sabe que tem o seu estilo, que é naquilo que é bom, mesmo que continue a aprender, – “e eu ainda não estou lá”. 

Gostava de aprender com um mestre. Gostava de aprender um bocado de todos os estilos, e para isso conhecer um mestre de cada estilo e aprender um bocado de todos.

Os pais guardam todos os desenhos que fez desde criança onde já revelava o gosto precoce pelo estranho, desenhando caveiras, monstros e personagens de jogos e filmes, criando também as suas próprias personagens e criaturas. Algumas dessas criaturas – revela – ainda hoje aparecem nas suas obras.

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RF – Quando daqui a dez anos já te sentires um artista e olhares para hoje, não vais achar que o que hoje fazias (fazes) é arte?

GB – Pois se calhar vai acontecer, eu se calhar vou olhar para trás e vou dizer que isto é arte. Por isso não sei.

RF – Achas que o artista tem obrigação de partilhar a sua arte, de mostrar as suas obras ao mundo?

GB – Não. Eu acho que a arte pode ser pessoal. O artista pode ter uma obra que só ele é que viu e continua a ser uma obra de arte. Eu faço algumas coisas só para mim e não sinto obrigação de mostrar a ninguém. É escolha do artista.

RF – Quando alguém expõem uma obra, seja numa galeria, seja na feira, seja na sala para os amigos, o que é que achas que é natural esperar dessa obra?

GB – Algum tipo de emoção, uma memória, um gosto pelo jogo de cores que me faz lembrar algo, se for uma crítica, uma concordância ou discordância, tem que ter algo, tem que nos dizer algo.

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RF – É então o que esperas das tuas obras, que transmitam algo.

GB – Sim, mas eu ainda não me envolvi completamente, emocionalmente nas minhas obras, tenho paixão no que faço, mas ainda não estou completamente lá.

RF – Basta-te que um teu quadro agrade, mesmo que não diga nada?

GB – Não, prefiro que signifique algo.

RF – Até que ponto te envolves emocionalmente nas tuas obras?

GB – Ainda não estou como eu queria, ainda não completamente. Embora já tenha havido pessoas que se lembram de situações ou histórias a partir de quadros meus e partilham comigo.

RF – Essa é a parte que tu dás ao quadro…

GB – É

RF – Se alguém olhar para uma obra de arte e confessar que não lhe transmite nada, apenas lhe agrada visualmente, achas que essa obra cumpriu a sua missão?

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GB – Há pessoas que compram quadros só para ficarem bonitos na sala, mas não se sentem chegadas ao quadro, não sentem qualquer tipo de emoção. Essa é a diferença entre comprar originais ou comprar cópias.

RF – Concordas que somos resultado de tudo o que vivemos e de tudo o que nos rodeia?

GB – Sim somos todos influenciados pelo ambiente, pelos amigos, pela sociedade. Infelizmente não somos assim tão individuais como pensamos que somos.

RF – Preocupas-te com a originalidade?

GB – Eu preocupo-me em sentir-me bem com o que faço e não ligo muito ao que os outros pensam mas é claro que se as pessoas gostarem, fixe, mas o que eu quero é estar contente com o que eu faço. Nós humanos já somos demais. É claro que tudo é único, mas…

RF – Como é que te imaginas aos 30 anos?

GB – Não imagino, só sei que se estiver vivo sou pintor. Ainda vou ser melhor, porque tenho muito para aprender, acho que só vou parar de aprender quando morrer. Mas não consigo imaginar mais nada.

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RF – Obrigado.

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Jornalista, Diretor. Licenciado em Estudos Artísticos. Escreve poesia e conto, pinta com quase tudo e divaga sobre as artes. É um diletante irrecuperável.

Jaime Roriz Advogados Artes & contextos