
Mário-Henrique Leiria0 (0)
12 de Janeiro, 2015
O nascimento do Surrealismo em Portugal como movimento, foi impulsionado pelo encontro em Paris em 1947 entre Cândido Costa Pinto e André Breton (com os seus manifestos) embora já se tivesse exprimido em alguns textos de António Pedro nos finais da década de 30 e início de 40 séc. XX, nomeadamente em 1940 mesmo, numa exposição de António Pedro com António Dacosta.
Nesse encontro, André Breton terá mesmo instigado o pintor português a formar um movimento surrealista em Portugal, que surgiu então nesse ano designado como Grupo Surrealista de Lisboa e integrando Vespeira, João Moniz Pereira, Fernando Azevedo, António Pedro, Cezariny, Alexandre O’Neill, José Augusto França e Mário-Henrique Leiria, entre outros sendo alguns deles, alunos da Escola António Arroio.
Pretendiam estes jovens trazer para a arte antes de mais a expressão livre e libertada de preconceitos, de regras ou normas, uma arte para toda agente, desligada das elites. O grupo separou-se em 1949, após a sua primeira e escandalosa exposição e o segundo grupo chamado simplesmente Os Surrealistas era mais literário e integrava entre outros Cesariny, Cruzeiro Seixas, Mário-Henrique Leiria, António Maria Lisboa, Pedro Oom e João Artur da Silva.
Os dois grupos surrealistas extinguiram-se em 1952 e o surrealismo que não deixou de estar presente passou a fazer-se representar pelos artistas individualmente, aliás a única forma de viver o Surrealismo, ou de estar na arte, na opinião já expressa por alguns destes artistas.
Sendo que todos eles se revelaram vultos importantes da arte e da cultura portuguesas do séc. XX, realço aqui Mário-Henrique Leiria que não sendo o que mais se notabilizou, não deixou de ser um dos mais importantes e acabou por ser um dos ídolos dos adolescentes de abril, aqueles que em 74 despontavam para o mundo que os rodeava e mais do que outras gerações anteriores e posteriores queriam fazer parte do presente, tanto ou mais do que do futuro.
Nasceu em Lisboa a 2 de Janeiro de 1923, frequentou a Escola de Belas-Artes, de onde foi expulso em 1942 pensa-se que por motivos políticos. O pouco que se sabe da sua vida constrói-se a partir de alguns relatos de amigos, como Fernando Correia da Silva e de tentativas eventualmente estéreis de compor a sua imagem a partir da sua obra. Há ainda as cartas trocadas com a sua amiga e amada Isabel em que o autor falava muito de si, do que é, de como pensa, o que pode levar a pensar que desenvolveu assim uma imagem construída a partir do que quer que se pense dele, mais do que aquilo que realmente se passa na sua vida.
Viajou por vários pontos do planeta e viveu grande parte da sua vida no estrangeiro, entre Hungria, Checoslováquia Inglaterra, Cuba, Norte de África e Médio Oriente e Brasil. Dizia que foi para Inglaterra “aprender coisas” e que como não aprendeu, voltou. Trabalhou na Marinha Mercante, foi caixeiro-viajante, operário metalúrgico, servente de pedreiro, decorador e no Brasil, onde viveu entre 1962 e 1970 após ter sido detido pela PIDE, foi encenador, gráfico, publicitário, crítico de arte, e diretor literário da Editora Samambaia.
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Enquanto ativo no movimento surrealista português (entre 1949 e 1951) foi co autor de “A Afixação Proibida”, que foi visto como o manifesto surrealista nacional e participou na “1ª exposição dos Surrealistas”, em 1949 onde expuseram António Dacosta, António Pedro, Fernando de Azevedo, João Moniz Pereira, José-Augusto França e Vespeira.
A partir de 1952 juntamente com Carlos Eurico da Costa outro surrealista dissidente do primeiro grupo, começou a dedicar-se à política o que o levaria à campanha para a eleição de Humberto Delgado em 1958. Este “afastamento” e a partida para o Brasil em 1962 terão contribuído para a pouca notoriedade que granjearam, quando comparados com os outros membros do grupo. Regressou em 1970 e até ’73 foi itinerante.
Na pintura a sua expressão limita-se a alguns trabalhos conjuntos, mas foi importante a sua produção a partir de 1948 enquanto navegava entra as artes visuais e a literatura, ao compor poemas colagens e desenhos poemas, em que a palavra, as formas e as cores se misturam em manifestações plásticas que ultrapassam todas as fronteiras canónicas.
Foi no entanto na escrita e na poesia que se destacou havendo obras suas desde a década de ’30, ainda longe dos 20 anos. Os primeiros textos programáticos aparecem na altura da I Exposição Surrealista de 1949, mas ainda que intimamente ligado ao Surrealismo, Leiria foi muito mais do que um surrealista.
Desde cedo leitor de Pessoa o seu autor favorito e do qual se podem notar algumas marcas na sua obra sobretudo poética. Representou um certo futurismo nos seus poemas, provavelmente bebido de Álvaro de Campos, que se percebem tanto na linguagem jocosa (uma marca que o acompanhará) como no gosto híper moderno que demonstraria (ex. Bucolismo pós-moderno). Vemo-lo também em poemas em que apresenta os homens como entidades mecânicas e seres sem alma, e percebemo-lo quando recorre a imagens ligadas à maquinaria industrial, ou “louvando” o barulho das máquinas (ex. O Apocalipse do som).
Ainda nos finais daquela década de 30 escreveu textos introversivos e de fuga à realidade, e em que realça e superlativa as sensações a levarem-nos de novo a Pessoa / Àlvaro de Campos e ao sensacionismo. Nalguns expôe pensamentos que sugerem alucinações, e usa uma forma de composição à guisa de escrita automática, também explorada pelos surrealistas, no entanto, Leiria foi sobretudo um apóstolo dos modernismos por onde se passeou sem se definir terminantemente.
Enquanto surrealista, e tal como todos os surrealistas portugueses, foi de França, nomeadamente de Bréton e Eluard que recebeu as principais influências, mas esse surrealismo, tal como a influência e as marcas pessoanas, acompanhou-o até ao fim, até muito depois da extinção do último dos modernismos, como o surrealismo foi chamado.
Foi panfletário militante anti-fascista e anti-neo-realista (ou anti-realismo-socialista) e enquanto em França os surrealistas discutiam a adesão ou não ao partido comunista, ao qual Bréton aderiu e logo de seguida abandonou, os subscritores do Comunicado dos Surrealistas Portugueses de 1950, (M.H.Leiria, Cruzeiro Seixas e João Artur Silva), afirmavam o repúdio pelas ditaduras quer fascista, quer estalinista, pelo partidarismo e pelos seus sistemas estéticos prejudiciais à liberdade natural do artista.
Dizia o comunicado que “qualquer espécie de realismo-socialista com todo o seu cortejo de estéticas, literaturas e políticas de partido é tão prejudicial à liberdade do Homem como uma ditadura fascista, apenas conseguindo pôr no lugar de deus um outro deus igualmente absurdo” e afirmava que “debaixo de qualquer ditadura (fascista ou estalinista) não é possível uma acção surrealista organizada”. Uma motivação estética que como a de Leiria refletia os modos do modernismo ocidental, afastava-se naturalmente do realismo-socialista.
Em 1945 escreveu o “1º Manifesto do Sobreporismo” em que postula uma arte sem regras, uma arte anárquica, absolutamente livre e, definitivamente afastada dos vanguardismos. Foi um experimentalista, em constante busca de modernismos e da linguagem de uma arte essencialmente moderna.
Em 1962 em conjunto com Virgílio Martinho, António José Forte, Manuel de Castro, Renato Ribeiro, arquitetou a “Operação Papagaio”, talvez inspirada n’ A Guerra dos Mundos, de Orson Welles de 1938, uma manobra contra o Estado Novo e que por intervenção da PIDE não chegou a ser concretizada. O grupo planeou tomar o Rádio Clube Português na Parede onde só estava um contínuo, já que a essa hora, por volta das dez da noite, rodava um programa pré gravado em fita chamado “Os companheiros da alegria”. Depois de prender o contínuo, substituiriam a bobina do programa da noite por outra já gravada, que começava com o Hino Nacional, e entre marchas militares iam sendo lidos comunicados, dando conhecimento de um levantamento militar para derrubar o regime e em que se pedia calma à população. Por fim apelava aos lisboetas para se deslocarem à Baixa da cidade para saudarem a prisão de Salazar pelos militares e o início da democracia. A operação que era falada nos cafés da baixa lisboeta, o Royal e O Gelo, chegou aos ouvidos de agentes da PIDE que prendeu os organizadores do plano, confiscou as armas reunidas para a execução do golpe, e impediu que o projeto tivesse sido concretizado. Os detidos foram libertados algumas horas mais tarde sem que haja relatos de tortura. Não chegou inclusivamente a ser aberto um processo.
Apesar do fim cómico, – consta que os agentes que interrogavam os “terroristas” se riram da sua postura e sobretudo das suas respostas, – foi esta detenção que o levou a partir para o Brasil.
Voltou para Portugal em 1970, e só em 73 publicou o seu primeiro livro Contos do Gin-Tonic, um conjunto de pequenas narrativas em tom original, absurdas, de um humor disparatado, um nonsense ultrapassando todas as barreiras do real, onde ainda é visível a influência do legado surrealista, do surrealismo de Mário Henrique Leiria. Seguiram-se Novos Contos do Gin-Tonic, e em 1974, Imagem Devolvida, Um Conto de Natal para Crianças, Casos de Direito Galáctico / O Mundo Inquietante de Josefa – fragmentos, todos de 1975 e Lisboa ao Voo do Pássaro de 1979, o seu último livro publicado em vida.
Entretanto colaborou com pequenos contos no suplemento Fim-de-semana do jornal República e no semanário humorístico Pé de Cabra. Chefiou a redação de O Coiso, semanário impresso nas oficinas do República durante 13 semanas em 1975, dirigiu a revista Aqui (1976) e realizou várias traduções de entre outros, Faulkner, Aldous Huxley (Brave new World) e Gorki.
Em 1976 aderiu ao PRP – Partido Revolucionário do Proletariado.
Alguns textos seus, escritos em grupo e pelo método do Cadavre Exquis, foram recolhidos na Antologia Surrealista do Cadáver Esquisito de 1961, organizada por Mário Cesariny e inspirado pelo Cadavre Exquis, dos surrealistas franceses.
O Cadavre Exquis é uma espécie de jogo que junta vários autores e em que cada um escreve o que lhe ocorre e sem propósito num papel, que depois é dobrado para que nenhum saiba o que o anterior escreveu. Desdobrado o papel, fica-se com um texto sem sentido nem nexo, aparentemente automático que pretende anarquizar o corpo literário subvertendo as formas do discurso. Os surrealistas portugueses foram mais longe e usaram o método para pintar coletivamente grandes quadros e elaborar desenhos.
Foi um personagem marcante sem ser um líder, mas empenhado em mudar o mundo pela arte e as artes pela libertação, pela sua visão subversiva dos costumes. Sobretudo os seus dois volumes a gin, e os seus desenhos-poemas e poemas-colagens revelaram-se fundamentais no reconhecimento e enquadramento do surrealismo em Portugal, tanto enquanto movimento coletivo, como nas suas expressões avulsas.
Dele se diz ter sido agitador, folgazão, provocador, bem-disposto, cínico, irónico, quezilento, irrequieto, destemido, irreverente e com sentido de humor.
Já postumamente, em 1997, foi publicado um conjunto de textos, intitulado Depoimentos Escritos.
As obras Contos do Gin Tonic (1973) e Novos contos do Gin, (1974) dois volumes de pequenas histórias com marcas de um surrealismo que nunca o abandonou, foram as mais populares e foram popularizadas sobretudo por Mário Viegas que as “disse” em pequenos apontamentos televisivos.

Morreu a 9 de janeiro de 1980, com 57 anos em Cascais, apontando-se como causas a degenerescência óssea de que padeceu nos últimos anos e até fome prolongada, mas certo é que os seus últimos anos foram muito difíceis, martirizado pela doença e na profunda pobreza, vivendo na casa materna, com a mãe e uma tia, ambas muito idosas.
Grande parte da sua obra poética foi publicada postumamente, encontrando-se o seu espólio depositado na Biblioteca Nacional.
Gin sem tónica
Uma garrafa de gin
estava a preocupar
o pescador
a garoupa e o rodovalho
não tinham aparecido
pró jantar
que fazer?
telefonou ao ministro
da Pesca e do trabalho
mas o ministro
estava a trabalhar
na cama
com a mulher
foi então
que a garrafa de gin
sugeriu discretamente
porque não
telefonar ao presidente?
telefonaram
o presidente da nação
estava em acção
na cama
com a mulher
nessa altura
até que enfim
encontraram a solução
o pescador
foi para a cama
com a garrafa de gin
In Contos do Gin-Tonic, Mário-Henrique Leiria
Torah
Jeová achou que era altura de pôr as coisas no seu devido lugar. Lá de cima acenou a Moisés.
Moisés foi logo, tropeçando por vezes nas lajes e evitando o mais possível a sarça ardente.
Quando chegou ao cimo, tiveram os dois uma conferência, cimeira, claro. A primeira se não estou em erro.
No dia seguinte Moisés desceu. Trazia umas tábuas debaixo do braço. Eram a Lei.
Olhou em volta, viu o seu povo aglomerado, atento, e disse para todos os que estavam à espera:
– Está aqui tudo escrito. Tudo. É assim mesmo e não há qualquer dúvida. Quem não quiser, que se vá embora. Já.
Alguns foram.
Então começou o serviço militar obrigatório e fez-se o primeiro discurso patriótico.
Depois disso, é o que se vê.
In Contos do Gin-Tonic, Mário-Henrique Leiria
Última tentação
Então ela quis tentá-lo definitivamente. Olhou bem em volta, com extrema atenção. Mas só conseguiu encontrar uma pêra pequenina e pálida.
Ficaram os dois numa desesperante frustração.
Não há dúvida que o Paraíso está a tornar-se cada vez mais chato!
Ajuda-nos a manter viva e disponível a todos esta biblioteca.

In Contos do Gin-Tonic, Mário-Henrique Leiria
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Jornalista, Diretor. Licenciado em Estudos Artísticos. Escreve poesia e conto, pinta com quase tudo e divaga sobre as artes. É um diletante irrecuperável.