Caiu um muro
Numa fase especialmente criativa do seu percurso, Rodrigo Amado escolheu o mês de Abril para fazer as contas com o passado e abrir perspectivas para o futuro, chamando para ambas as circunstâncias, em dois concertos na SMUP, a colaboração de Andrew Lisle e Ricardo Toscano. Com este último fez mesmo história, mudando o cenário do jazz português.

Nas vésperas do lançamento de mais um disco em que reencontramos Rodrigo Amado na companhia de um músico do circuito internacional da improvisação, no caso Chris Corsano (“No Place to Fall”, a ser editado pela Astral Spirits), o roteiro do saxofonista tenor de Lisboa pelos palcos realizou-se com concertos em que ora fez contas com o passado, ora explorou novos relacionamentos e novas situações. Entre a inédita apresentação de um trio de saxofones que o juntou a Ricardo Toscano e a Pedro Sousa e a aglutinação num único grupo do seu Motion Trio com o Red Trio e com os membros do projecto Volúpias (Pedro Sousa, Rodrigo Pinheiro, Miguel Mira, Hernâni Faustino, Gabriel Ferrandini), em ambos os casos no Bar Irreal, Amado esteve na SMUP com duas formações. A 5 de Abril, levou até àquele espaço da Parede o inglês Andrew Lisle, para além de Faustino, e a 19 ali voltou com Toscano, João Lencastre e o reincidente Faustino.
A afluência do público denotou bem a importância deste segundo “gig”: para todos os efeitos, tratava-se da reunião de quatro músicos que vêm dando rosto às duas grandes tendências do jazz nacional, Rodrigo Amado e o contrabaixista Hernâni Faustino pela mais “livre” e “experimental” e Ricardo Toscano (saxofone alto) e João Lencastre (bateria) pela “tradicional” e “mainstream”. Com tal gesto derrubavam-se as últimas pedras ainda alinhadas do muro que foi erguido (por outros que não os intervenientes) entre ambas essas abordagens.

Já o mesmo misturar de águas acontecera com o trio em que figurara Lisle. Acontece que o baterista da banda de jazz-rock Shatner’s Bassoon viveu algum tempo em Lisboa (partiu há cerca de sete anos, apenas com breves passagens de intermédio) e foi aqui que deu os primeiros passos na música. Amado e outros improvisadores portugueses ensaiavam com ele na pequena sala que a loja Trem Azul disponibilizava a quem precisasse de um espaço para praticar. Nessa altura, muito novo ainda, Andrew Lisle centrava a sua atenção sobre as pulsações que depois lhe vieram a ser úteis no grupo de Leeds que integrou, mas pelo caminho teve outras vivências musicais que o desprenderam de papéis métricos.
Nesse processo desenvolveu um estilo único que ficou bem em evidência no sótão da SMUP: as suas baquetas funcionam em rajada, com disparos de metralhadora que dão um picar constante à música e nos agitam nas cadeiras. Surpreendido com tão original posicionamento, Faustino colou-se mais ao sax do que à bateria, mas nessa ocupação de uma zona de segurança (as suas colaborações com Amado são já antigas) acabou por reforçar as diferenças trazidas pelo trio.

O contexto em causa favoreceu o trabalho de Rodrigo Amado naquilo que este tem de melhor, a exploração de paradoxos: quando entrava em registos “bluesy” ou de balada, frequentes neste concerto que se quis calmo, adoptou uma sonoridade ácida e por vezes até agreste, e quando seguiu por mais intensos caudais argumentativos temperou o fogo da expressão com um insistente uso de motivos melódicos, assim arredondando as asperezas que se proporcionavam. Neste jogo ficou uma vez mais patente que, não obstante a utilização das “open forms” do free jazz e da música livremente improvisada, o saxofonismo e o estilo discursivo de Rodrigo Amado muito devem às tradições do hard bop e do be bop. Logo ali estava a indicação de que a anunciada parceria com Ricardo Toscano não era algo de bizarro, mas sim uma natural consequência do caminho que o também fotógrafo vem percorrendo.

Duas semanas depois vinha a confirmação: Amado e Toscano não podiam ter colado melhor um com o outro, sem sequer terem sentido a necessidade de se afastar dos seus respectivos campos de intervenção. As improvisações do segundo podem ter prescindido dos emolduramentos escritos em que habitualmente ocorrem, mas foi o mesmo Toscano que ouvimos à frente do seu quarteto, com um som limpo e sem vibrato, mas cru e orgânico, segundo a linha estabelecida pelos altistas que foram de Charlie Parker a Ornette Coleman. Ainda assim, todos os envolvidos estavam cientes da novidade e o prazer com que a viveram teve tradução visual. Amado fechava os olhos, embevecido, quando Toscano solava, e este sorria ao ouvir o outro saxofonista e ria-se de si mesmo no intervalo entre um e outro dos seus fraseios.
Muitas citações de estilos saxofonísticos, demasiadas para aqui se enumerarem, foram desencadeadas, mas surgiam de modo natural e estavam ao serviço de um jazz finalmente emancipado de feudos e nichos. Tanto assim que, na secção rítmica, houve uma troca de posicionamentos: Lencastre tocou solto, sobrepondo texturas e variando-as, e Faustino esteve sólido como uma rocha, sempre oportuno e sempre focado no que era necessário para cada circunstância.
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A actuação resultou excelente e terá, inclusive, marcado o início de uma nova atitude do jazz português, pelo facto de ter anulado as divisões que nele até agora subsistiam. No final, todos os presentes pareciam estar cientes de que aquele momento tinha feito história.
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