Conversei com Wagner Borges numa esplanada lisboeta num fim de tarde fresco. Não nos conhecíamos, mas facilmente a conversa se desenrolou amigavelmente e não foi realmente uma entrevista. Wagner tem 36 anos, é calmo e ponderado, é analítico e franco, e embora lamente diversas coisas no seu mundo do teatro e no nosso mundo todo, não se lamenta. Tem um espírito aberto, é tolerante, e é positivo sem ser otimista; acredita que se entendermos a forma como os outros pensam os entendemos mais facilmente. Não gosta do 9 às 5. Gosta de trabalhar muito. Também gosta de não fazer nada, o que “parece que é vergonhoso”. Observa as pessoas que passam, ouve o que se diz,- e “ao fim e ao cabo” está sempre a receber e a compor, até encher e transbordar na necessidade de fazer alguma coisa. O desemprego persistente dos atores, dos amigos preocupa-o, mas procura os motivos e não as culpas e acredita que há espaço para todos, conquanto todos possam, pudessem mostrar o seu trabalho em igualdade de circunstâncias e, lembrando Becket, “todos tenham o direito de falhar, para poder falhar melhor”. Considera que o elenco do Teatro Nacional devia ser mais rotativo, que as companhias que lá vão deviam ser mais pequenas e nota que se perdeu o “ir ao teatro”, a ida ao teatro deixou de ser um acontecimento, a arte perdeu credibilidade e respeito e perdeu-se a idolatria. Incomoda-o o facto de as mulheres em Portugal não terem voz e que não haja programadoras, não haja criadoras suficientes, que as mulheres não tenham peso e as que já tiveram o tenham perdido porque começaram a cortar-lhe as pernas, os espaços, os apoios até desaparecerem.Lembra a Fernanda Lapa como um bom exemplo, um exemplo que foi condicionado ao longo dos tempos. Lamenta a falta de cultura e de identidade cultural dos portugueses, fruto de políticas sociais, “naturalmente” com envolvimento económico, que embruteceram os cidadãos e formaram uma população aculturada. A busca do fácil e imediato e do que está na moda também se faz por opção, mas acha que o importante é que as pessoas saiam, vão, assistam.
Rui Freitas – Este problema do afastamento da cultura e da procura do entretenimento de consumo imediato não é global?
Wagner Borges – Acho que não. Eu enquanto estudante fui a dois festivais de teatro europeus e toda a gente que encontrei tinha uma identidade cultural vincada e nós não. A ditadura anulou os autores portugueses e nós não criamos uma identidade. Após o 25 de abril começamos a copiar o que se fazia lá fora, mas sem dinheiro e como resultado tínhamos o teatro experimental. Mas por outro lado, quando vamos lá fora representamos Portugal com honestidade e somos acarinhados, apreciados, somos questionados. Nós temos um autor que é comparável ao Shakespeare (Gil Vicente), com uma obra de conteúdo muito semelhante, menos volumosa e menos virtuosa, mas de uma importância enorme e a relação que temos com ele é quase nula.
RF – Consideras a obra de Gil Vicente comparável à de Shakespeare?
WB – Não, não é, mas podia ser, se fosse respeitada por nós – num desses encontros a que fui, conheci um professor turco que estava nos Estados Unidos a fazer um doutoramento sobre Gil Vicente. Tu em Portugal se quiseres fazer um doutoramento sobre Gil Vicente, não tens bibliografia suficiente, tens que ir para o Brasil onde há doutoramentos sobre esse autor e Pessoa, por exemplo, aos milhares. Tenho o exemplo do meu irmão que é suíço. Agora tem dezoito anos, mas desde os oito que quando cá vinha me perguntava: “então o que é que há aí para se ver?”. Porque aos 6 anos ao entrar para a escola foi-lhe dada a possibilidade de fazer 50 atividades extra curriculares num ano letivo gratuitamente, e por 50 francos teve a possibilidade de assistir a 12 peças de teatro. Portanto uma criança com 6 anos começa a ter o teatro nas suas escolhas.
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RF – Por cá tal escolha nunca se põe.
WB – Os portugueses levam as crianças de seis anos ao futebol (e têm que ir, claro) mas também têm que perceber que no leque de escolhas, existe o teatro, os museus, um concerto. Não quero ditar nada, porque não sou presunçoso a esse ponto. Mas tenho a certeza de que no ensino, não é oferecido ao aluno, uma educação que forneça ferramentas culturais. Crianças que não vão ao teatro, serão homens que não irão ao teatro.
RF – Perguntas no Facebook, a ninguém, suponho, “a quem é preciso lamber as botas hoje?” É verdade o peso dos lobbys nas artes do espetáculo?
WB – Sim, tudo funciona por lobbys. Há um sistema, uma rede que filtra tudo. Tem muitas formas de filtrar.
RF – Por exemplo…
WB – Por exemplo, eu tenho um espetáculo para montar, mas preciso de uma sala para ensaiar e começa aí o jogo: começa o processo de ensaios, pode vir a ser interessante, pode vir a ter público, pode ter uma boa crítica, mas depois pedem-me 500 euros pelo aluguer da sala e eu não tenho, portanto não há espetáculo. Logo eu não faço, logo eu não existo, enquanto criador.
(Conversa calmamente e sem pressa, faz pausas para ordenar as ideias ou para se ouvir).
RF – E há formas de evitar passar por esses filtros?
WB – Para funcionar honestamente as propostas de espetáculos deveriam ser entregues em envelope fechado. A começar pela programação dos teatros municipais. A escolha seria feita pelo projeto e não pelos nomes que contém, mas esses teatros estão sujeitos à rede e a rede é dominada por quatro ou cinco nomes.
RF – Há produções locais?
WB – Não. Está tudo montado para duas zonas sobreviverem, uma menor e outra maior, o Porto e Lisboa respetivamente, e neste momento os teatros municipais recebem projetos de Lisboa ou do Porto. Há que ser validado, contudo a pergunta é: se não consegues mostrar o teu trabalho, como é que se pode avaliar?
Confessa a sensação de impotência perante os grupos, o sistema, mas sabe que é preciso continuar a acreditar até não se aguentar mais, até a própria identidade se esfumar, o que é um risco.- “Porque se não és chamado, já que não há castings e é tudo por convite, se não veem o teu trabalho vais desaparecendo lentamente. Portanto todos nós engolimos sapos, e vamos continuar a engolir. É uma questão de sobrevivência, mas quando a dignidade nos impede de descer a partir de certos níveis, sabemos que vamos ser excluídos”.
(Pausa longa para continuar afirmando que)
WB – “Eles” (e ri-se do cliché) jogam com as pessoas, mexem com a parte emocional, porque “o ator, o criador, tem necessidade de deitar cá para fora o que sente, tem necessidade de dar, de o fazer, mas no limite isto é trabalho, é um trabalho emocional e de paixão e eles jogam com isso. Dão-me um pão hoje, depois meio pão, finalmente pão nenhum e eu faço-o na mesma. Eles sabem que nós precisamos de o fazer. Mas eu não pago a eletricidade com paixão e tenho mesmo colegas que estão a trabalhar e estão a passar fome”. E continua: “Tudo começa no respeito e os atores são muito mal tratados, até entre si em Portugal, a própria arte teatral, não é bem tratada”.
RF – Concretiza.
WB – Eu dei aulas de expressão dramática numa escola, num programa chamado Educação pela Arte, em que ganhava x por hora e o professor de música ganhava o dobro.
RF – O dobro?! Qual a justificação para isso?
WB – Porque pouca gente sabe ler música e toda a gente sabe representar. Mais, fizemos um espetáculo de 1 Milhão de euros, em que durante os ensaios, independentemente do que estivesse a acontecer, independentemente da importância do momento, a orquestra parava a cada 45 minutos para descansar 15.
Os músicos são respeitados. Há uma classe. São um conjunto. Representam-se e defendem-se. Os atores, bem, não têm essa estrutura tão focada. Perdemo-nos demais nos nossos umbigos. Quando um músico não toca, a orquestra para. Quando um ator para, o espetáculo tem que continuar.
RF – Por onde anda o espetáculo Da Inutilidade, criado e representado por ti e pelo Tiago Bôto? WB – O espetáculo Da Inutilidade, ganhou o Festival Internacional de Teatro de Setúbal e fizemo-lo no auditório de uma escola todo devidamente preparado, durante o período do Festival. Queremos voltar a fazê-lo em Setúbal, eu e o Tiago, mas entretanto começaram as aulas e não temos hipótese de o fazermos lá. Restava-nos o Fórum, (a única sala que o poderia albergar), e neste momento continuamos à espera de uma resposta. E queremos fazer em Lisboa. Iremos fazê-lo. Estamos à espera.Mas também pertencemos a este país que demora, desta sensação do aguardar.
As Boas Raparigas, uma companhia do Porto (com quem tive o prazer de trabalhar duas vezes) no ano em que ganharam todos os prémios ficaram sem os subsídios e perderam o espaço. É tudo muito estranho.
RF – Quando dizes que os atores se tratam mal entre si referes-te à concorrência por um lugar?
WB – Os atores são pessoas muito complicadas. Complexas. São egocêntricos. São cada um por si. Há exceções, claro. Procuram foco. E num país, como o nosso com um sistema frágil e falso, é natural que haja concorrência. Mas em todo o lado existe, eu defendo que exista, mas que seja saudável. Que se possa mostrar o que possuímos através do nosso trabalho, do nosso olhar. Às vezes acertamos, outras vezes não. Mas há sempre um outro colega para criticar, para derrubar. Para julgar.
RF – Mesmo no espetáculo?
WB – Não me refiro ao espetáculo, refiro-me ao trabalho individual. Falta aquele sentimento de contentamento, porque aprendemos uns com os outros, faltam os elogios (não a bajulação) mas caramba, é tão bom ver um colega nosso fazer bem o seu trabalho. Depois as estruturas, por exemplo, há uns anos tive um espetáculo num local em que na sala ao lado havia um outro espetáculo da companhia que me estava a albergar e como nós estávamos a ter mais público eles boicotavam-nos simplesmente, ignorando a relação 60/40 que tínhamos: quanto mais público visse o nosso trabalho, mais eles lucravam.
RF – Com isto tudo, estás-te a ver formar uma companhia teatral?
WB – Não sei, sim. Não. Sim. Não. Sim. Pergunto-me muitas vezes, quando oiço o valor dos prémios do euromilhões, o que faria se ganhasse muito dinheiro. Se ficaria em Portugal ou se iria para fora, se investiria na minha área ou não, mas no final é claro que sim! Claro que formaria porque o que eu quero é trabalhar, errar, fazer, pensar sobre, conhecer outros atores, aprender com eles. Mas também tenho a certeza: se tivesse um espaço para desenvolver o meu trabalho e para receber trabalhos de outras pessoas, que era o que eu desejava, seria no sistema do envelope fechado como referi.
RF – E corrias os riscos todos…
WB – Se o fizesse, corria os riscos todos! É preciso ter muita força e é algo que não tem só a ver contigo, escapa-te da mão, ultrapassa-te. Mas corria sim. Quero ver coisas novas. Há tanta gente boa por aí…
RF – Não achas que para o sistema de envelopes fechados tinha que começar a haver crítica que não há…
WB – Não há. Há pouca. Há a crítica-amiga. Há a crítica que constrói nomes. Os críticos não deveriam ver tudo? Não há críticos que sejam capazes de dizer que não gostam de algo que toda a gente de determinado meio gosta. Os críticos que são capazes de dizer que não gostam de uma obra dizem antes de ela aparecer. Porque os críticos também estão no sistema e querem continuar, ou então o sistema apaga-os.
RF – O que fazes quando te parece que nada disto faz sentido?
WB – Eu não sei se nada disto faz sentido, talvez eu não faça sentido, mas quando preciso de refúgio, rodeio-me das pessoas de quem gosto e vou para sítios de que gosto, vou para a Arrábida, faço um jantar com amigos, pinto, escrevo. Estou com a minha mãe, a minha maior fortaleza e a que me critica mais (risos).
RF – Nunca te perguntas se vale a pena continuar?
WB – Pergunto-me porque é que eu o faço, pergunto-me isto todos os dias, porque é que eu tenho que o fazer? Porque é que eu o faço! É uma necessidade, é mesmo uma paixão. Mas eu não como paixão, não pago as contas com paixão. Eu trabalho e desconto desde os dezassete anos e contribuo para a economia do país, pago os meus impostos e desconto para a Segurança Social (viva o recibo verde!) e quero fazê-lo, mas quando estou sem trabalho, não tenho subsídio de desemprego, não tenho direito a baixa nem nenhum sistema de proteção social e nem sequer ao subsídio social de inserção. Isto é um dado comum, mas será que as pessoas sabem realmente o que nós pagamos? O quanto ganhamos? O quanto fica retido para o Estado?
RF – Ainda é possível ganhar muito dinheiro com o teatro?
WB – É, mas infelizmente – enfim, se calhar está montado para ser assim, – os atores, o elenco de atores está sempre no fundo da cadeia. Nós tivemos um espetáculo em que eu ganhava x, os atores ganhavam x – e para isso tive que recusar a oferta inicial de y – mas o cenógrafo ganhou vinte vezes mais, por isso, sim… Há dinheiro.
(Depois de uma pausa pensativo)
… mas acho que estamos a passar pela pior fase, claro que tem a ver com os cortes, com a situação do país, mas também há aproveitamento. Quando algumas companhias dizem que não conseguem sobreviver com x mil euros como é que as que têm vinte vezes menos conseguem? Principalmente quando as pequenas propõem remunerações mais justas? É de louvar.[su_column size=”1/2″][/su_column]
Outro exemplo, o espetáculo de eu falei que custou 1 Milhão de euros, e que representou uma grande parte do orçamento da Secretaria de Estado da Cultura, esteve 7 dias em cena. E saiu, porque havia um programa para cumprir e isso era a única coisa que importava, o programa.
RF – Então o sucesso ou insucesso de bilheteira não condiciona os programas.
WB – Não. O programa é para cumprir para o bem e para o mal. Programa-se, cumpre-se e parte-se para outra sem pensar mais nisso. O subsídio está garantido, menor ou maior, existe e portanto, não se pensa se a peça resulta ou não. Se está a resultar, porque não se continua? Raras exceções, sendo o Politeama, um exemplo, porque não pertence à política do subsídio, depende apenas de quem gere decidir o timing da carreira, tendo em conta o investimento, a bilheteira, etc. Não entra na rede. Logo, é criticado. E não estou sequer a qualificar o trabalho, mas sim a referir que é possível.
RF – Nunca te sentiste tentado a atirar-te para dentro desse sistema? Dessa teia?
WB – Claro que eu sim, aliás faço parte dela, mas dentro dos limites da minha verticalidade. Já recusei trabalhos por não concordar com a remuneração proposta. Trabalhos em que as condições eram péssimas. Cá está, não estou a criticar, mas se eu recusar, existe um outro que aceita. Neste momento há atores a receber telefonemas e a aceitar trabalhar gratuitamente. Em conjunto, seria maravilhoso que contrariássemos essa tendência. Eu sei que é utópico.
RF – Há pouco dizias-me que em Portugal não se fazem castings, isso é rigoroso ou estavas a generalizar?
WB – Em teatro, não há audições. TV, nem se fala. No cinema, vão surgindo alguns castings, mas não há audições para teatro em Portugal. As poucas que existem têm quase sempre em rodapé a nota: projecto não remunerado.
RF – Isso explica um pouco a inundação que as séries e as novelas portuguesas sofrem de jovens de carinha bonita e nada mais, e os reflexos na respetiva qualidade.
WB – Começou com o boom da televisão… e aparentemente é fácil ser ator; passou-se esse conceito, essa ideia, porque em Portugal por vezes há falta de profissionalismo e toda a gente é ator.
RF – Mas eles ocupam o lugar de atores, formados nas escolas, e desempregados…
WB – Claro, é mais barato. Mas eles também são explorados, porque a maioria começa pelos 15 minutos de fama. Fazem um papel, o público gosta, fazem dois, fazem três papéis (a custos insignificantes) e vão aprendendo o necessário. Hoje dão certo, para a próxima vez aposta-se neles e na outra novamente. Assim os atores novos e desconhecidos nunca têm oportunidade. Mudas de canal, tudo se repete, incluindo os atores, que concorrem com eles mesmos. Vemos os mesmos rostos nos 3 canais ao mesmo tempo.
Apesar de tudo, considera que há um número excessivo de alunos a ser formado nas escolas de teatro. Demasiados para o universo português.
RF – E solução para isso?
WB – No Brasil, por exemplo, jamais alguém atua sem uma carteira profissional que se adquire nos cursos reconhecidos pelas escolas superiores e na Globo, onde custam uma fortuna. Lá também a estética impera, mas a formação vem primeiro lugar. Pagam-se multas, quando não existem as carteiras profissionais. Outra forma é através de demonstração de competência, atestando que já têm um determinado número de representações e uma determinado número de horas de palco. E volto ao princípio: há lugar para todos, porque há público para tudo, quer seja lá, ou aqui (e sei que é impossível comparar tendo em conta a dimensão dos países, do público).
RF – Escolas de Teatro em Portugal.
WB –Temos o Conservatório (Escola Superior de Teatro e Cinema), a ESMAE no Porto, a ESAG nas Caldas, a ACT em Lisboa…
RF – Voltando um pouco atrás, há “atores da moda” que estando numa produção teatral, são sinónimo de que muito público irá ver o espetáculo…
WB – Voltamos à cultura, ou à falta dela. Porque é que se vai ao teatro? Muitas pessoas não vão ao teatro nem pela obra, nem pelo autor, mas porque vão ver o ator X, a atriz Y. Portanto é natural que existam caras que têm muito valor comercial e sabe-se que se estiverem nessa produção, geram mais público e mais sucesso de bilheteira. São um investimento. É um negócio. Percebo a sua necessidade. E respeito-a.
RF – Por modas e investimento, no início da nossa conversa dizias-me que “quando vamos lá fora brilhamos, com trabalhos que cá não são valorizados”. Muitas vezes acontece um reconhecimento à posteriori e a partir daí…
WB – É uma questão de validação e a validação dos portugueses é feita lá fora. É preciso ser-se validado lá fora para haver um reconhecimento cá dentro. É um problema genético português. É pelo mesmo motivo que quando o Saramago ganhou o prémio nobel toda a gente foi a correr comprar os seus livros. Independendo de se gostar, aconteceu com a Amália, com a Joana Vasconcelos, com a Paula Rêgo. Alguns casos de referência.
RF – Outra vez uma questão cultural?
WB – Sim, como copiamos e temos falta da tal identidade, há um medo e um preconceito perante tudo o que sai do standard. Por exemplo, o anão da Guerra dos Tronos, Peter Dinklage, seria difícil ter trabalho em Portugal. Ou apenas trabalhos rotulados.
RF – Preconceitos?
WB – Sim, os preconceitos vão muito longe. Em Nova Iorque, em LA, em cada dez garçons onze são atores (risos), cá se tu precisares e fores servir copos para um bar ou uma esplanada já não és ator, és um gajo que trabalha num bar. Que desistiu. Cool, menos um! Eu há uns anos durante um período em que não tive trabalho, aproveitei o meu atelier e dei aulas de expressão plástica. Vim a saber então que circulava no meio que eu já não era ator. Agora dava aulas. É a lei do mais forte. Há que ser forte para persistir.
Quanto a si, apesar das dificuldades e no geral, não se sente desiludido, e valoriza o seu percurso. Já trabalhou com grandes profissionais e nunca teve que ultrapassar ninguém, garante. Trabalhou com quase todos aqueles com que desejava trabalhar. Teve um convite do Howard Barker para fazer seis meses em Londres com a sua companhia, mas não aceitou porque não tinha dinheiro para suportar a aventura.
WB – Nós somos socialmente tratados de uma forma muito particular. (Ri-se) Uma vez na polícia (tinha sido roubado) o agente perguntou-me a profissão, ator respondi eu, não consta, disse-me o agente. Está a pôr com c ou sem c? Já tentei das duas maneiras. Não aparece…
E a maioria das pessoas, pergunta sempre o que faço, depois de responder ator, dizem sim (com uma expressão de dificuldade de entender) mas e trabalho?, insistem. Logo por aí, se percebe o respeito social pela profissão. Eu respondo quase sempre: espero.
Louva a capacidade da generalidade dos seus pares, que apesar de tudo (e da crise que não justifica tudo, realça) “nunca se fez tanto; há muitas coisas a acontecer ao mesmo tempo, trabalha-se em lugares incríveis, ganha-se “à bilheteira”, sem feedback, e para dez, quinze pessoas. Há peças que o bilhete custa três, cinco euros – chega a um ponto que só falta por o chapéu à frente e as pessoas darem o que quiserem.” Mas trabalha-se e há coisas boas, muito boas, há pessoas boas dentro de uma boa estrutura ética que estão a vingar, que conseguem produzir.
WB – Por vezes também não há respeito pelo público. Existem peças que são apenas para o meio. Que se fazem a pensar no meio. Eu faço para ti, depois tu fazes para mim. São massagens internas. São cópias atrás de cópias. Porque se uma delas é validada, então toca a copiar. Assim pode-se garantir um lugar ao sol. Um período de dois dias numa programação futura. Lembro-me que houve a moda da roupa interior branca. Todos os espetáculos tinham. Chamei-lhes carinhosamente de estética da cueca branca. Além disso, se se fizer um espetáculo muito bom, mas se só for visto por quatro pessoas, não serve para nada-
RF – Achas que mesmo com preços diversificados, estes se ajustam à realidade “quotidiana” dos portugueses?
WB – Há diversos preços, sim há, mas de uma forma geral temos que reconhecer que os bilhetes estão caros, então mais vale ter 500 pessoas a 10 euros por noite do que 100 a 20.
RF – E o Cinema?
WB – Tudo o que eu fiz em Portugal no cinema nunca foi com portugueses, o único filme com um realizador Português, foi “Operação Outono”, com o Bruno de Almeida, que se formou lá fora. Tem uma visão diferente. Deu-me uma possibilidade. Adorei trabalhar com ele.
RF – Isso por outro lado tendo em conta tudo o que temos aqui falado, pode ser uma boa referência para ti.
WB – Ok, mas é preciso vir alguém de fora para tu trabalhares, então eu sirvo para os realizadores estrangeiros, que trabalham e têm dinheiro e para os portugueses não sirvo?
RF – E Televisão?
WB – Cá, temos aquele estigma de que quem faz televisão não faz cinema e quem faz cinema não faz televisão, o que é uma estupidez. Somos atores. Em todas as formas – teatro, televisão, cinema – precisamos um dos outros, é sempre um trabalho coletivo.
RF – Ruy de Carvalho nas séries televisivas…
WB – O Ruy de Carvalho é um ícone idolatrado pelo público. Acarinhado, tal como a Eunice Munoz. Ambos merecem muito respeito. Aceitamos alguns projetos porque temos razões – pessoais, profissionais e económicas – para o fazer. Cada um sabe as suas. O ator que faz o Hamlet não é o mesmo que faz a novela? É sim, claro que é, mas o trabalho não é o mesmo, o vasculhar, a procura, a entrega, todo o trabalho é diferente. A técnica muda. Tem que mudar. A rapidez versus o detalhe. A diferença entre teatro e televisão é precisamente a possibilidade de encontrar dimensões. Camadas.
RF – Presumo que não concordas quando se diz que não há papéis pequenos, mas sim atores pequenos.
WB – Isso é completamente errado, na minha opinião. Claro que há papéis pequenos. Faz-se bem ou não, apenas isso. Mas o ator que tem a possibilidade de fazer o Hamlet procura algo (descobre algo) que difere daquele que somente vem entregar a carta. Não é a quantidade, mas também é. É a possibilidade de retro escavar, de se desafiar. Logo terá um crescimento maior do que aquele que entrega a carta. O arquiteto que não projeta/constrói continua a sê-lo? O médico que não opera continua a sê-lo? O ator tem que se manter ativo, exercitar a memória, precisa da sensação de palco. É uma construção constante. Não há espaço para acomodação. É uma profissão desgastante mas apaixonante. Aprendemos até à morte. Sim é um cliché, mas é verdade. Desde que haja desafio. Desde que nos desafiem. Tem que haver surpresa.
RF – Diz-me três nomes
WB – São José Correia, Filipe Duarte, Albano Jerónimo.
Um Encenador, com quem trabalhaste
Francisco Salgado, João Brites mas destaco Rogério de Carvalho, um monstro, um conhecedor, um mestre. Um homem do e para o teatro, que nunca pertenceu à rede, que fez sempre o seu caminho com o único objetivo de encontrar respostas. Dos atores. Levou-me várias vezes à exaustão, mas é um homem inacreditavelmente inteligente e sensível.
Um Encenador Português, com quem gostarias de trabalhar
Jorge Silva Melo
Uma Companhia a seguir
Mala Voadora
Há salas de qualidade suficientes para tudo o que se pode fazer?
Sim, há. Existem contudo, muitas portas fechadas.
O que falta para os atores se juntarem para formarem estruturas que defendam como classe?
Dizer-se NÃO. Basta isso. Se todos dissermos não, não haverá ninguém para aceitar determinadas propostas. Contudo a base: um país com uma verdadeira política cultural que defenda os nossos interesses.
Lembras-te da primeira peça que viste?
Não. Foi uma peça, ainda no Brasil. Inserida numa Festa Junina (festa popular) e segundo sei, achei tudo emocionante. Disse que queria ser ator. E também gostava de ir à missa. Chamava de “missa-teatro”(risos). No fundo, haverão assim tantas diferenças?
Para quem foi o primeiro telefonema quando foste aceite ou convidado para a tua primeira peça?
Para a minha Mãe.
O que tens achado das tuas experiências em televisão?
Difíceis. Poucas, não-contínuas. Rapidez, tem que ser tudo rápido e dependemos de muita gente. Se uma das partes falha, a nossa falha também. Nunca fiz um elenco fixo. Sempre foi adicional. O máximo que gravei foram 4 meses e meio. É um ritmo que dá estaleca (lembro-me da revista – quantos de nós aguentaríamos fazer tal trabalho?). Tens que estar pronto. Estudar muito. Pode ser mágico. A Globo, produz essa magia. Mas orgulho-me do que fiz. E quero voltar a fazer.
Em 79 os Buggles cantavam “Video Killed the Radio Star”. E as estrelas do palco?
A não existência de uma politica cultural. Quando o Orçamento de Estado, não comtempla sequer um por cento para a cultura, isto não será um sinónimo de velório antecipado?
Sala de Chá ou Piano Bar?
Depende. Sala de Chá. Se for possível fumar após o scone.
Jack Kerouac ou Jack London?
Jack Kerouac
Cão ou gato?
Peixes.
Flores ou Bombons?
Ambos: flores de dia. Bombons à noite, quando estou a jogar ao «Monopólio», nos dias de folga.
Uma cidade
São Paulo
Oscar Peterson ou Keith Jarrett?
Keith Jarrett
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RF – Obrigado.
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Jornalista, Diretor. Licenciado em Estudos Artísticos. Escreve poesia e conto, pinta com quase tudo e divaga sobre as artes. É um diletante irrecuperável.