
CHARLES BUKOWSKI O “DIRTY OLD BASTARD”5 (1)
2 meses atrás
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Rui Freitas
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Também o tempo torna tudo relativo.
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CHARLES BUKOWSKI

Charles Bukowsky e um dos seus maiores amores, os gatos
Charles Bukowski foi um poeta da miséria humana. A indigência, o grotesco, a solidão; o mundo feio, escuro e mal cheiroso alimentaram a sua expressividade e ninguém como ele soube retratá-los e fazer deles a sua inspiração. Dizia que a cidade de Los Angeles, para onde foi com dois anos de idade (nasceu em Andernach, na Alemanha em 1920) era o seu assunto favorito, mas de facto, ainda que na cidade, era das pessoas que falava. Quase sem exceção, os seus trabalhos exteriorizam um desprezo profundo ao mundo e à sociedade, que desde muito cedo o desprezaram, e muito raro revelava tiques de auto compaixão, disfarçadas de cinismo e envoltas em sarcasmo.
Viveu atormentado e zangado com a vida e descobriu muito jovem que o álcool o ajudava a suportar-se. Cerveja e vinho (do Porto muitas vezes) e livros permitiam-lhe viver realidades alternativas onde se escondia da sociedade e de si próprio. Amaldiçoou a miséria com o mesmo timbre com que a celebrou; apregoou o lado encoberto da noite e o lado noturno dos dias.
Quando eu em 1980 li “Mulheres” (1978) era adolescente, bebia vodka e ouvia Jazz. Na mesma altura “conheci” Tom Waits (para outra estação) e fiz um cocktail. Fosse pela irreverência, pela agressividade verbal, pela pureza e crueldade dos retratos à vista da sociedade tão amorfa pós pop, quanto violenta pós hippie, que eu sentia histérica e fútil; fosse pela atitude marginal underground e noturna; fosse pela tendência em ambos para o sentido contrário, eu adotei-os determinado.

No cemitério
Ainda com o livro fresco na memória apareceu nas salas de cinema – e eu bebi sofregamente – Contos da Loucura Normal, baseado em contos de Bukowski, realizado por Marco Ferreri e com Ben Gazzara no principal papel. Hoje, passados trinta anos sem nunca me ter cansado de um nem do outro, esses “motivos” dissolveram-se no tempo. A maturidade apenas me levou a ver mais fundo e a descobrir, a continuar a descobrir, pensamentos insanos de lucidez, observações angustiadas sem lamentos, revoltas caladas ou berradas sem desculpa, insultos sensatamente cruéis a realidades normais por decreto, arrogância, a recusa e o esconjuro perante a cegueira, a miséria, a inépcia, a soberba, a monocromia, a inércia, o conformismo, a indiferença, o seguidismo, a apatia, o marasmo, o consentimento e a animalidade mansa do imenso rebanho dos homens de hoje.
Bukowski recusou ser igual. O álcool foi a anestesia e o preço a pagar para viver na fossa – por vezes atolado, outras muito perto disso – da humanidade e trazer à superfície relatos tão cruéis como reais e alguns tão medonhos que chegam a ter graça.
Quase tudo o que sabemos da vida de Bukowski pode ser e é retirado das suas obras. Seis romances, centenas de poemas e dezenas de contos quase todos autobiográficos, quase todos na primeira pessoa e quase todos relatando ou ilustrando de algum modo a sua vida, as suas amarguras e desvelos, desabafos e desaforos. Juntem-se alguns relatos avulsos de, entre outros, o seu editor John Martin e compomos a sua vida. Julgam alguns, que até certo ponto Bukowski terá exagerado alguns relatos, com o fito de manter e cultivar a imagem criada de “dirty old bastard” como ele se classificou, mas ele era intrinsecamente machista, convictamente bêbado, muitas vezes violento e sobretudo profundamente sensível.

Charles Bukowski
Na infância e princípio da adolescência – retratados em Pão com Fiambre (Ham on Rye) (1982) – foi maltratado pelo pai frustrado, que lhe batia com uma cinta de afiar lâminas, cuja brutalidade e injustiça, diria mais tarde, o vieram a ajudar no seu processo criativo.
Sofreu um problema grave de acne que lhe tomou e deformou o rosto e parte do corpo e que o levava com frequência ao hospital onde suportava tratamentos dolorosos e que o afastavam da escola por alguns dias. Fosse pela maneira de falar com sotaque germânico, pelo vestuário ao gosto demasiado austero e rígido dos pais; fosse pela falta de jeito para os desportos e pelo aspeto provocado pelo acne, era gozado tanto pelos pelas crianças vizinhas como pelos colegas na escola.
Só o interessavam as raparigas (que não se interessavam por ele) e as brigas, tendendo a resolver todas as dificuldades com os colegas, ao soco. No entanto, era bom aluno a inglês e a professora apreciava as suas composições. Tornou-se solitário e indiferente; vivia abstraído e deslocado e também era tímido e reservado.
Tinha 13 anos quando “forçado” por um colega bebeu vinho e ao sentir o efeito apossar-se de si pensou, conforme relata em Pão com Fiambre “encontrei algo que me vai ajudar durante muito tempo”. Por volta dos 15 anos, e mais uma vez pelo martírio do acne e respetivos tratamentos, esteve ausente da escola durante um período letivo e nessa altura descobriu a Biblioteca Pública de La Cienega, onde leu tudo o que encontrou de D.H. Lawrene. Seguiram-se Huxley e Hemingway. Despertou para as letras e começou a escrever poemas.
Aos 19 anos entrou no curso de Jornalismo e Literatura, mas nunca o concluiu e aos vinte anos, foi corrido de casa pelo pai quando este descobriu e se escandalizou com alguns dos seus contos.
Foi para uma pensão reles e começou a trabalhar em qualquer coisa que lhe desse o suficiente para pagar o álcool e a dormida. Tinha-se na conta de um grande escritor, “o maior da América”. Começou a apostar em cavalos e tinha um sistema que lhe permitia ganhar mais uns trocos para o vinho. Foi detido pelo FBI, (que mantinha um ficheiro sobre ele (Federal Bureau of Investigation Subject: Charles Bukowski File: 140-35907) por faltar ao alistamento e mais tarde foi mesmo dado como inapto para o serviço militar em provas de avaliação psicológica, o que o livrou da II Guerra Mundial.

Nota de detenção por ter faltado ao recrutamento (Ficheiros do FBI)
Mais tarde, relata este período e o que se segue, no romance Factotum (1975). Foi o seu segundo romance e aí expôs a decadência em que caiu levado pela desilusão da recusa militar, o permanente estado de desemprego, a procura constante do próximo biscate e a continuada recusa de publicação pelos editores. Voltou a ser preso por diversas vezes por embriaguez, alteração da ordem pública, desacatos, e outras acusações de pouca importância.
A revolta permanente em que vivia, contrariava uma certa conformação e algum laxismo intermitente, igualmente saídos dos seus textos. Tão depressa se virava ao soco a alguém, antes de saber o motivo, como mostrava uma apatia e uma inércia a rondar a cobardia. Sempre se soube feio, “o homem mais feio da cidade”, cedo se achou velho.
“Voltei para a máquina de escrever, saboreei uma bebida generosa, arrotei, bebi outra. Encontrei três quartos de um cigarro. Estava a dar a Quinta Sinfonia de Chostakóvich na rádio. Atirei-me ao teclado(…)” (in Hollywood). E assim as palavras e frases saíam-lhe fluídas e sem barreiras, sem qualquer tipo de censura ou comedimento, claras e límpidas, para muitos, demais. “- Já li as tretas que tu escreves – disse-me ele. A única vantagem que a tua escrita tem é que é simples. Tu sofres de distúrbios mentais, não sofres? – Sou bem capaz disso” (in Hollywood).
Como disse Al Martinez do LA Times, Bukowski “left us with the magnificence of words and images born in dark places of the soul”. O álcool era omnipresente e tirando em Hollywood, em que tratou por pseudónimos criados por si, algumas personalidades conhecidas, tratava frequentemente pessoas pelo nome próprio nas suas histórias. Delas fazia relatos crus e muitas vezes cruéis e obscenos, de desprezo e repulsa, o que lhe valeu alguns dissabores e abandonos no restrito mundo dos seus relacionamentos. Aguns exemplos dos pseudónimos criados para Hollywood são Jack Bledsoe em nome de Mickey Rourke, o actor principal no filme; Faye Dunaway é Francine Bowers; Barbet Schroeder, o realizador é John Pinchot e outros como Jean-Luc Godard que é Jon-Luc Modard, Sean Penn aparece como Tom Pell, David Lynch como Manz Loeb e Werner Herzog é Wenner Zergog.

Bukowski com a filha Marina em 1970
Em 1964, nasceu Marina Louise Bukowski, sua filha e de Frances Smith (Fay) com que viveu três anos até ela se ir embora com a criança. “A Fay ficou com a miúda. Eu fiquei com o gato. (…) Ia ver a miúda duas, três ou quatro vezes por semana. Eu sabia que ficaria bem, desde que pudesse ver a miúda” (in Correios). Com 47 anos, começou a escrever para o jornal clandestino de Los Angeles Open City, a que passou a referir-se como Open Pussy, a coluna Notes of a Dirty Old Man, relativas ao qual existem notas no já referido ficheiro do FBI.
Trabalhou a lavar louça, a conduzir camiões, como carteiro, foi operador de elevador, fez trabalho indiferenciado na Cruz Vermelha, foi arrumador em parque de estacionamento, pendurou cartazes no metropolitano de Nova Iorque e desempenhou vários outros trabalhos “braçais” (factotum) em diversas fábricas e armazéns. Publicou o seu primeiro conto aos 24 anos e no seu primeiro romance Correios (1971), descreve a sua vida no emprego que manteve durante mais tempo: primeiro entre 1952 e 1955 e depois de 1958 a 1969 e apresenta ao mundo o seu alter-ego que a partir de então (nos romances) apenas não usou em Pulp (1994): Henry Chinasky. A partir de 1962 e até aos anos 70 realizou leituras das suas obras em direto na emissora KPFK de LA. A bebida fazia parte do “espetáculo”.
Em Mulheres, (1978), relata uma sequência de curtas (muito curtas) relações infrutíferas, insatisfatórias e alcoolizadas com diversas mulheres, algumas da sua vida real, numa fase em que já escreve como um autor reconhecido e não como um vagabundo indigente e rejeitado. No entanto, a matéria negra está lá toda. Quanto às mulheres em si e na sua vida, a mesma podia ser amada, desprezada e espancada, e “largada” num mesmo ato, quando se acabava a bebedeira que os tinha juntado ao balcão de um bar. Todas as mulheres eram à partida, objetos sexuais. Não distinguia na sua aproximação a mulher mais banal, da prostituta de mais baixo estrato, mas tem momentos como no conto “A mulher mais linda da cidade” em que fala de uma mulher com uma ternura poética e até melancólica. Quase todas as mulheres que conheceu, conheceu ao balcão de um bar.

Bukowski com Linda Lee em 1986
O seu último romance Pulp (dedicado à má escrita), foi escrito intermitentemente quando já estava doente e vários críticos acreditam tratar-se de uma demonstração da aceitação da sua mortalidade e fim próximos. Escreveu nesta fase da sua vida alguns dos seus trabalhos mais chocantes e violentos. Pulp é o romance mais estranho de todos, um policial algo surreal que conta com a procura de Céline, um escritor francês já falecido, com extraterrestres e com uma misteriosa mulher conhecida como Lady Death. “(…)apalpei-lhe a pulsação. Nada. Tinha marchado. Adeusinho. Fui sentar-me numa cadeira. E no sofá á minha frente lá estava ela: a Senhora Morte. Nunca a tinha visto com tão bom aspeto. Que brasa. Nunca desiludia.” (In Pulp).
Como se julga que o romance não foi planificado, o protagonista e o próprio rumo da história entram por diversas vezes em becos sem saída. O personagem principal é o detetive privado bêbado e cínico Nick Belane, um nome que lembra Rick Blaine, o personagem principal de Casablanca.
Foi num bar que conheceu Jane Cooney Baker, por quem se enamorou perdidamente. Dez anos mais nova do que ele é, por muitos, considerada a sua principal musa. Vários poemas lhe dedicou e fez dela personagem, primeiro como Betty em Correios e mais tarde como Laura em Factotum. Morreu em 1962, vítima de cancro no estômago.

Poema a Jane 1962
Ouve-se com alguma frequência quem o considera ligado à Beat Generation, mas para além de Bukowski nunca se ter cruzado com os elementos deste movimento, quaisquer semelhanças são no mínimo forçadas, pelas circunstâncias dos primeiros partilharem com ele alguma libertinagem, a vadiagem patológica e a dependência dos “aditivos”. As aproximações literárias ficam-se pela escrita livre espontânea e descomprometida.
Por fim a Beat Generation era um movimento cultural, ou contracultural, uma chamada de atenção e uma tomada de atitude coletiva, que defendia princípios (Bukowski contrariava) e modos de vida – quase todos os elementos acabaram por se ligar ao budismo – e imaginar Bukowski ligado a um movimento qualquer que fosse, é de todo desconhecer Bukowski. Se da Beat, obras como Tristessa de Kerouac ou Os crocodilos cozeram nos seus tanques do mesmo Kerouac e de Burroughs, poderiam imaginar-se como algo bukowskiano, nada de Bukowski se integraria no movimento Beat.
Bukowski, que apenas começou a ser conhecido nos anos 70, acabou por se tornar um mito, hoje traduzido em todo o mundo civilizado e recentemente moda no Facebook. Para além de diversos documentários realizados sobre a sua vida e obra e do já referido filme Contos da Loucura Normal, de Ferreri, Barbet Schroeder realizou Barflly (1987), com roteiro encomendado a Bukowski e cujas peripécias de financiamento e realização deram o assunto para Hollywood (1989) o seu penúltimo livro. O filme contou com Mickey Rourke como Henry Chinaski e Faye Dunaway como Wanda.
Em 2003 John Dullaghan realizou o filme documentário Bukowski: Born Into This, relatando a vida do poeta. Contou com depoimentos da sua última mulher Linda Lee, da filha Marina Louise Bukowski, e ainda de amigos e admiradores como Sean Penn, Tom Waits, Harry Dean Stanton e Bono.

Bukowski com Mickey Rourke
Factotum, (2005) baseado no livro com o mesmo nome foi realizado por Bent Hamer e conta com Matt Dillon como Henry Chinaski e com Lili Taylor, e Marisa Tomei.
Várias bandas lhe dedicaram temas, como os U2 com Dirty Day e Hank Moody o protgonistra de Californication é várias vezes comparado com ele.
Em 1976, Bukowski conheceu Linda Lee Beighle que ficou conhecida como ‘Sarah’ nos romances Mulheres e Hollywood e com ela casou em 1985.
Em 1955 foi hospitalizado para tratar uma úlcera no estômago com (de palavras suas) “o tamanho de um punho” e após ter vomitado “três litros de sangue”, e os médicos adivinhando-lhe a morte certa, perguntaram-lhe para onde queria que enviassem as suas coisas. Quando saíu do hospital duas semanas depois dirigiu-se ao hipódromo onde perdeu tudo, foi a um bar onde apanhou, segundo o próprio “a mais profunda e mais prolongada bebedeira jamais conseguida por um ser humano” e começou a escrever poesia.
Morreu em 1994 na sequência de Leucemia após combater cancro de pele e tuberculose, e o seu funeral organizado pela viúva Linda Lee teve um rito budista.
Em junho de 2006 a viúva Linda Lee doou à Huntington Library na California o seu arquivo literário com cópias de todas as edições dos seus trabalhos e atualmente está disponível na Web todo o seu espólio no site http://bukowski.net.
“- Como é que consegues ver? Não abres os olhos. Tens os olhos em pequenas frinchas. Porquê?
Era uma pergunta justa. Dei um valente golo no vinho francês.
– Não sei. Talvez tenha medo. Medo de tudo. Pessoas, prédios, coisas, tudo. Sobretudo de pessoas.” (in Mermaid of Venice).
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Jornalista, Diretor. Licenciado em Estudos Artísticos. Escreve poesia e conto, pinta com quase tudo e divaga sobre as artes. É um diletante irrecuperável.
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Rui Freitashttps://artesecontextos.pt/author/rui-freitas/2 meses atrás
Sobre o Autor
Jornalista, Diretor. Licenciado em Estudos Artísticos. Escreve poesia e conto, pinta com quase tudo e divaga sobre as artes. É um diletante irrecuperável.
Bukowski…foi meu guia de solidão….meu companheiro de estrada…de loucura….de bebedeiras antológicas….sempre procurando um motivo pra suportar a vida….seus contos foram o meu cronozepan diário….meu alívio…..enfim…..acordar outro dia…..e apenas….seguir …..