
O Pai – de Florian Zeller0 (0)
14 de Dezembro, 2016
O Pai
O Pai, é uma digressão solitária pelos labirínticos nós de uma mente assombrada pela demência. André é muito pontual e perdeu o relógio. Ou roubaram-lho. Escondeu-o. E como é que a filha conhece o seu esconderijo no armário por detrás…
Afinal ele está na sua casa onde um desconhecido se move com estranho à vontade, mas a filha diz-lhe que é o seu marido e que esta é a sua casa. E que não tem marido nenhum, está divorciada há cinco anos. Tinha uma acompanhante, uma cuidadora que foi embora e vai conhecer outra que não quer, prefere a outra, a que mandou embora. Simpatiza afinal com esta, que lhe faz lembrar a outra filha – Ela não vem cá há tanto tempo. A filha que morreu há muito tempo.
Tudo à sua volta se monta e desmonta, se forma e dissolve e o seu mundo perde a estrutura e desmorona-se. Mas a verdade é dele, ele, o pai, “sabe” que o manipulam, que o enganam, porque – eu não estou maluco! berra, cansado. Ele que muito esporadicamente admite estar confuso é consumido até às entranhas pelos jogos da filha e do genro, ou namorado dela, e da cuidadora, que tentam distorcer-lhe a realidade e enganá-lo com, vá-se lá saber, que propósito. Porque a verdade, é a sua verdade, a sua realidade.

João Perry e Ana Guiomar ©Daniel-Viana-Martins
O autor, Florian Zeller diz pretender que “as pessoas sentissem a história a partir do interior da doença” e assim, numa notável encenação de João Lourenço, o espectador enfrenta-se a si, como testemunha e cúmplice, sugado pela força emocional da cena. Cada espectador está sozinho, e leva-se a si e à sua sensibilidade para dentro da peça que por sua vez se corporiza em si naquele instante, numa simbiose única e individual. O espectador testemunha impotente a amargura causada pela perda de quase tudo e da incapacidade agonizante de combater a conspiração do mundo. Mais do que testemunha, o espectador vê-o com os olhos do André e sente-o com a sua alma.
A perda da memória consubstancia a perda do eu e de toda a sua posse.
Há momentos de riso inevitável, mas são-no como aqueles dedicados ao palhaço pobre. É uma “farsa negra”, nas palavras do autor.
João Perry – que como nos disse João Lourenço – é o único ator em Portugal a quem confiaria este papel – dá-nos uma notável interpretação do homem amargurado, que se zanga, que se ri, dos outros e de si próprio, que se deixa abater, que se sente assustado, perdido como uma criança, que é desagradável, que tem medo, que suplica por compaixão e que grita por respeito. O homem que deambula por uma mente confusa e que se recusa a perder o seu reino, a aceitar que o perdeu, com a memória.

João Perry e Paulo Oom ©Daniel-Viana-Martins
“Não é necessariamente Alzheimer”, diz-nos o encenador, é muito mais do que isso, é envelhecimento, degeneração, “é o cérebro que não acompanha a idade da pessoa”.
João Lourenço encena de forma notável, quase minimalista, em que tudo acontece num espaço que se altera pela realidade de André e preenche os tempos entre cenas com recurso a multimédia que de uma forma não intrusiva e virtualmente neutra, mantêm o espectador ancorado aos eventos da cena.
Quando o protagonista não reconhece uma personagem é efetivamente outro ator ou atriz que desempenha o papel, para nos fazer sentir a razão da angústia de André.
O Pai , segue em avanços e recuos constantes, que levam à repetição ou reformulação de cenas e que nos impossibilitam de estimar o tempo que decorre. Mas isso não tem importância nenhuma, porque este texto não requer a perceção do período temporal nem sequer do seu enquadramento histórico. A história passa-se hoje ou daqui a uns meses ou anos, na casa de qualquer um de nós, nas nossas vidas.
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Texto original de Florian Zeller, com encenação de João Lourenço e dramaturgia de Vera San Payo de Lemos.
Com: João Perry, Ana Guiomar, João Vicente, Patrícia André, Paulo Oom e Sara Cipriano
O Pai, Estreia dia 15 na Sala Azul do Teatro Aberto
Jornalista, Diretor. Licenciado em Estudos Artísticos. Escreve poesia e conto, pinta com quase tudo e divaga sobre as artes. É um diletante irrecuperável.
Pelo que nos contas deve ser brilhante, arrepiante, angustiante. A história possível de qualquer um de nós. Obrigada, Rui Freitas