Manifesto Nada
Inestética – Companhia Teatral
O termo Manifesto, deriva do latim Manifestus, e é uma declaração de princípios e de intenções, geralmente de um grupo e até ao final do séc. XIX era exclusivamente político. O Manifeste Dada (1918) de Tristan Tzara, tanto pode ser encarado como uma declaração estética, política, social, mas no fundo é tudo isto ou outra coisa qualquer e afirma-se desde logo contra os manifestos.
“I write a manifesto and I want nothing, yet I say certain things, and in principle I am against manifestos, as I am also against principles.”
Manifeste Dada, Tristan Tzara,1918
Os dadaístas pretenderam, provocar uma cambalhota espalhafatosa na sociedade e nos seus valores, sobretudo, mas não só, estéticos.
Orientavam-se de acordo com um niilismo político e social e uma anarquia da arte, para combater a ordem estabelecida e os gostos burgueses; um dos principais objetivos de todas as suas criações e manifestações era chocar. Exaltavam o descrédito na humanidade, no sentido da vida, na individualidade (radical), na subserviência a sistemas de crenças e valores contraditórios. O dadaísmo, mais do que um movimento era uma atitude. A ideia de uma obra era mais importante do que o “objeto” final, a própria obra.
A Arte Dada pretendia mais do que chocar, ofender, para não alimentar as ilusões de um propósito na vida. Pretendiam com a sua apologia do absurdo e do irracional, escrnecer e ridicularizar os sistemas e crenças que tentavam – diziam – justificar o propósito da vida, desde a religião ao amor, da cultura ao consumismo, do nacionalismo à família etc.
Tzara dizia que se contradiria se não se contradissesse e o afirmasse também.
Num cenário luminoso e limpo, sob um fresco floral no teto de uma sala do Palácio do Sobralinho, encontramos Rui Baeta e Joana Manuel, ao centro, estáticos como manequins e na penumbra os três músicos instrumentistas. Mais afastado do centro de cena, um mono coberto com um pano branco.
Os dois líricos à boca de cena, acordam para começarem a desfiar o texto do Desgosto Dadaísta, com os instrumentos em cumplicidade a sublinhar a repetição da palavra Dada. Ou a dizê-la, na sua língua.
Às duas vozes iniciais, junta-se a Célia Teixeira, que destapado o mono, era quem se encontrava por baixo da cobertura, e ora a declamarem, em tom coloquial ou exaltado, ora a cantarem desgarradamente ou em coro, e com o Rui Baeta a executar movimentos de dança desconcertados e patéticos, o Dada entrou.
De entre as diversas leituras que se pode fazer dos textos dos manifestos Dada, nenhuma nos pode levar a encará-los como normais aos olhos do abençoado senso comum. Nesta dramatização, o encenador Alexandre Lyra Leite, escolheu o lado mais cómico e interpretou-o sem a mordacidade patente e velada no texto original, potencialmente sarcástico e até violento, conquanto irónico.
O contexto instrumental de António de Sousa Dias, é tão irónico quanto brilhante e os três instrumentos, o trompete de Fábio Oliveira, o Tenor Sax de Philippe Trovão e o contrabaixo de Guilherme Reis são vozes que repetem com sarcasmo o que apregoam as vozes líricas e suportam as danças patéticas e os dislates do Rui, da Célia e da Joana. Fazem-lhe coro, dão-lhes ligação tanto quanto as dispersam e se dispersam, e também dizem de sua voz parecendo por vezes querer sair da performance para iniciar um percurso autónomo.
Tal como os cantores/declamadores, fazem-no, tanto de uma forma monótona e monotónica, por vezes compassada e com laivos melódicos, outras gritando em desenhos sinuosos e imprevisíveis.
O ambiente musical de Sousa Dias, sem perder nunca a identidade única e de conjunto passeia livremente, e tanto nos pode levar aos experimentalismos de John Cage ou Sun Ra, e aos desalinhos de Tom Waits quanto a Scott Joplin ou a um cabaret, talvez Cabaret Voltaire.
Há momentos em que os três atores/cantores estão cada um no seu momento, independentes de tudo o que corre à sua volta e o caos vai impregnando a cena. De uma forma brilhante, o espetáculo decorre sinuosamente num todo falsamente desordenado, mas com o rigor ostensivamente caótico e pontualmente, ora cacofónico, ora melódico, onde a vocalização assume uma tonalidade quase sempre um patética. Um sorriso cínico, apalermado e plástico decora a face da Célia, cuja personagem assume por vezes o papel de um eco desconcertado e desconcertante das outras duas.
Numa saída e reentrada a cena é enriquecida com uma gaiola de pássaro com uma pistola pendurada no interior e cuja base amovível se revela portadora de uma cábula para o Rui, e com pés de microfone com mãos modeláveis no lugar do micro, que a Joana usa para apontar o publico com ar sinistro.
O dadaísmo cresce até ao fim e a linguagem ou as linguagens vão sofrendo transfigurações, sem, contudo, alguma vez se desagregarem ou perderem o todo, reencontrando-se, quase sempre arrastados pela cumplicidade instrumental. O manifesto vai sendo desfolhado em canto ou declamação, onde Baeta vai do patético ao solene e volta, ilustrado por danças grotescas e vocalizações espampanantes; e com conivência do instrumental ora redondo ora afiado.
Após uma saída de cena, que poderia ser só mais uma de várias, segue-se um nada que confirma o fim da peça.
Ou confirmaria, não fosse Dada o seu espírito, porque a seguir regressa a Joana descalça, com os sapatos na mão, para se dirigir a um espectador com uma lenga-lenga sem sentido sobre preços e câmbios disparatados.
Saiu…
Se o dadaísmo ainda pode existir (e quanto faria falta algum dadaísmo aos nossos dias e costumes) António Sousa dias e Alexandre Lyra Leite incarnaram-no, e de forma primorosa passaram-no aos performers, que por sua vez o beberam e o vivem de uma forma notável nesta obra.
Ah… quando Rui Baeta nos diz à boca de cena, com olhos arregalados e sorriso apalermado, “vós sois todos adoráveis”, não sei mesmo se neste contexto será prudente considerá-lo um elogio…
Música: António de Sousa Dias
Encenação: Alexandre Lyra Leite
Baritono: Rui Baeta
Sopranos: Joana Manuel e Célia Teixeira
Ensemble: Fábio Oliveira (trompete), Philippe Trovão (sax tenor),
Guilherme Reis (contrabaixo) e António de Sousa Dias (electrónica)
Manifesto NADA, Inestética Companhia Teatral
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Jornalista, Diretor. Licenciado em Estudos Artísticos. Escreve poesia e conto, pinta com quase tudo e divaga sobre as artes. É um diletante irrecuperável.