Manuel Maio
É teimosia ou amor?
São treze as composições de Manuel Maio no seu novo disco Sem olhar ao tempo. Nasceram talvez num acorde de guitarra inusitado, numa sucessão harmónica particular, uma frase que lhe sabia bem cantada, um poema. Consigo imaginar o compositor de guitarra na mão e de lápis na voz, pedalando nestes dias estranhos, teimando e amando sem olhar ao tempo.
Vamos falar de um disco surpreendentemente limpo, arrumado, oniricamente inspirado na mestria da canto-autoria em português, ou seja, na arte de levantar o canto do chão origem, transformado musicalmente numa linguagem própria, numa voz reconhecível a léguas. Manuel Maio é a definição exata de uma nova voz, que se vem afirmando desde os tempos iniciais de “A Presença das Formigas” e que hoje já declara a coerência da sua predileção harmónica e da sua particular melodia estranha e enganadora, segundo o próprio.
Enfim, se o busto da nossa republica falasse, diria: “Ó meu rico filho!”
Mas vamos ao disco, que merece ser ouvido tal como o seu titulo sugere…
Casa Fechada. O disco começa com o soar das guitarras, ora lá está, uma delas e apenas neste tema, é tocada por uma das “Formigas”, André Cardoso. Desafio o ouvinte mais atento a discernir o trabalho individual de cada uma, pois estão perfeitamente fundidas e resultam numa sonoridade particularmente magnética. As percussões no meneio com as guitarras, depois vem um baixo fretless (tão bonito) e mais tarde um oboé conveniente tocado pela Sara Amorim. De refrão solto no frenesim das escovas, o texto fala de um encontro com a criança que fomos:
“E então talvez, então talvez
Voltar a ver-te outra vez”
Chula da Distancia. Choro, Chula e Fado. Começamos a perceber o cuidado nos arranjos das varias guitarras tocadas por Pau Figueres no decorrer do disco, a espanhola, a acústica e elétrica que a par da voz de Manuel Maio são a espinha dorsal deste trabalho. Neste tema temos a participação de Francisco Pereira na guitarra portuguesa e de Tiago Manuel Soares nas percussões.
O Beijo. Um momento de sensualidade textual entre Paolo e Francesca, musical entre a voz de Manuel Maio e a guitarra de Pau Figueres.
E assim ficou. Tem a primeira visita do hammond de Ruben Alves – gosto particularmente da forma como o seu som envolve em papel fino todo o arranjo, com um cuidado meticuloso de quem protege um recém-nascido do frio matinal e mais não digo. Que belo embrulho.
“Veio de mansinho com a luz da manhã
Olhos cor de azeite, forma de avelã
Veio de mansinho com a luz da manhã
Azul manhã
De frio ar
Quente o lar que encontrou
E assim ficou”
Sem olhar ao tempo. Dá nome ao disco, e quando assim é deverá haver alguma razão especial. Não se olha ao tempo quando se faz o que se gosta, já o tempo parece estar sempre a olhar para nós e a lembrar o que deixamos para trás. Mas se é algo que queremos muito, força nas canetas! Quem não esperar por nós há de sempre fugir.
“Levo o mundo à frente nesta bicicleta
Sem olhar ao tempo, sem olhar ao tempo
Faça chuva ou faça sol eu vou na bicicleta
Sem olhar ao tempo…”
Belo arranjo de percussões e baixo – as entradas estão um mimo!
Sempre no grande balanço esta seção rítmica formada por Ricardo Coelho e Rui Ferreira. Desta vez o Hammond não se fica pelo revestimento e começa um solo que merecia um pouco de mais de… tempo?
Pedalamos para a próxima canção, que é a mais densa de todas.
Ó meu rico filho. Aqui a voz canta um poema inquieto. A harmonia que parece simples ao começar tropeça em acordes menos usuais e em progressões mais complexas onde o cantor encaixa na perfeição. Os sopros entram depois de convocados os “uivos do vento”, uma “quena” e outras flautas transversais tocadas por Diego Cortez. O contrabaixo de Carlos Bica enaltece cada mudança de acorde, este tema pedia de facto um contrabaixo. Rui Ferreira que aqui deu lugar a Carlos Bica, foi responsável pela gravação, mistura e coprodução. Ter um companheiro que grava, mistura, “saca” um som de fretless “daqueles” no primeiro tema, e aqui ainda toca uma caixa tradicional no final… sinceramente, mais uma “riqueza maior”!
Eu levo ao meu benzinho. Um arranjo vocal, uma das especialidades da tal “voz” que falamos ao principio. Desde sempre que no universo musical de Manuel Maio este recurso é omnipresente. Aqui foi por certo onde a Sofia Portugal, que esteve no apoio á gravação de voz, teve mais trabalho.
Para quê brilhar? No texto desta canção encontrei o mote para o titulo deste artigo, há de facto aqui um compromisso em não baixar os braços, mas a pergunta faz algum sentido… Para quê? Porque sim, como diz em “Realce” o mestre Gilberto: “O afeto é fogo, e o modo do fogo é quente, e de repente a gente queimará”. Uns simples acordes de guitarra para começar no balanço das escovas, o tal “embrulho” do Ruben, a forma como se prepara a entrada da voz, o refrão na batida! Já a alma me aquece.
Mafalda. A harmonia deste tema tem um toque “medieval”, consegui ouvir aqui algumas flautas de “Ciclorama” , um alaúde e um arranjo de trompas. A Mafalda de Sem olhar ao tempo não enfada e não íamos querer apenas um dos temas a navegar noutro mar, assim sem mais nem menos, para bem da coerência do disco.
Ninguém disse que era fácil. O violino e o bandolim partilham a mesma afinação e sendo Manuel Maio violinista de formação, do bandolim não lhe restam grandes segredos depois de apurada a técnica de palhetar, contudo são instrumentos completamente diferentes. Quem toca vários instrumentos sabe que por vezes um instrumento novo, diferente, pode ser um motivo extra de inspiração que abre caminho para novas formas de composição. E é isto, este disco foi idealizado á guitarra e ao bandolim por um violinista. Quanto ao tema, realmente é difícil de ler por ser tão fresco e inovador, os instrumentos estão superiormente arranjados e o conteúdo da letra é atual, acutilante e mordaz:
“Segue o ritmo do algoritmo
A cadência da tendência geral
Lança um like, mais um post e um hashtag
Um retweet, vai um link e mais um share”
Ponto Final. Sem os arranjos menos convencionais, que os há, na estrutura desta canção, esta passaria facilmente na rádio, balanço bom, coros, refrão etc. Agora pergunto, e se passar tal como está? Passem lá a “cena” que são apenas uns apontamentos de bom gosto, não farão mal a ninguém, bem pelo contrário.
Só contigo. Gosto de ouvir o acordeão na “voz” de Manuel Maio, por quase todo “Pé de vento”, e também em “Senhora do Livramento I ” um dos temas do disco “Mexe” (Toques do Caramulo). O tema vai bem na linha melódica do bandolim suportado por um vibrafone subtilmente tocado por Ricardo Coelho, a harmonização das vozes é vigorosa e quente, mas quando entra o acordeão da Sónia Sobral e segue o instrumental em crescendo até ao êxtase dos coros, desligo e vou a pairar em cada nota. Arriscaria dizer sem certeza nenhuma, que se fala de “música” e de se ser “músico” neste texto:
“Senti
O toque de outras mãos
Ouvi
A doçura de outras falas
Eu amei
Eu tentei apagar
A urgência de estar
Só contigo e mais ninguém”
Desde que te conheci. Que interpretação fantástica de guitarra, da introdução ao derradeiro acorde. Pau Figueres, consegue algo muito difícil neste disco, só ao alcance dos eleitos. A sua interpretação capta a essência das composições, abordando tecnicamente as harmonias e arranjos de forma a encaixar perfeitamente o seu talento no universo musical de Manuel Maio. Este tema tem uma progressão harmónica só ao alcance dos eleitos, estou-me a repetir?
Repito outra vez, num qualquer “concelho” musical este disco venceria as autárquicas… soubesse o povo votar.
E chegamos ao fim, no seu primeiro trabalho em nome próprio, Manuel Maio é feliz nas composições e na escolha de seus pares. Temos aqui um disco que soa muito bem, com aquele toque especial de Mário Barreiros (masterização), que tem de ser desfrutado com tempo e ouvidos atentos. Aguardo ansiosamente para fazer uma viagem longa de carro e colocar Sem olhar ao tempo a rodar, isso e ver este grupo de pessoas ao vivo, com condições dignas, num local acolhedor, para vivenciar estas canções. Até lá!
Créditos:
Canções de Manuel Maio
Facebook e Instagram
Músicos:
Manuel Maio – Voz, Coros, Bandolim, Rabeca
Pau Figueres – Guitarra Espanhola, Acústica e Elétrica
Ricardo Coelho – Percussão
Rui Ferreira – Baixo, Baixo Fretless, Piano, Percussão
Músicos convidados:
André Cardoso – Guitarra Clássica
Carlos Bica – Contrabaixo
Diego Cortez – Quena, Flauta Transversal Baixo e Soprano
Francisco Pereira – Guitarra Portuguesa
Ruben Alves – Órgão Hammond
Sara Amorim – Oboé
Sónia Sobral – Acordeão
Tiago Manuel Soares – Percussão
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Musico, entusiasta de cordofones que gosta de falar de música, da sua alquimia e do seu indelével sentido cultural.