
Enzo Certa – Forçar o vício0 (0)
8 de Julho, 2021
Enzo Certa
Ele está a delirar, mas não falta método à sua loucura”, Shakespeare, Hamlet
A Pintura-evento de Enzo Certa não se deixa envolver em monotonia. Sempre em estreita cumplicidade com a cor-energia, cada composição parece celebrar um episódio ao mesmo tempo marcante e nebuloso: uma entronização, uma vitória, um putsch, uma revelação…
Como sinal do apetite do artista pela exploração generosa e prazenteira dos códigos da história da arte, esta pintura festeja a pesquisa e o estudo de obras ao longo dos séculos com a voracidade de um ogre; quer se trate das pinceladas, das cores, das referências ou da composição, a ganância é a ordem do dia, cuja ligação também se estabelece na etimologia partilhada de “sabor” e “conhecimento” (sapere : ter gosto).
Sem dúvida que os estudos de restauração de arte de Enzo Certa influenciam a sua visão histórica: as produções plásticas são construções cujo vocabulário específico de cada época deve ser decifrado – tendo o cuidado de não as sacralizar.
Se, no Laocoon, Lessing se opõe à linearidade do texto à simultaneidade da pintura, é todavia aqui invocada uma ut poesis, pictura que confere ao meio plástico a mesma potencialidade de exegese da linguagem. Como num filme, as cenas podem ser rebobinadas ou avançadas. Os estratos desta pintura, todos herdeiros de pinturas históricas, exigem ser desvendados na sua confusão, um empreendimento ajudado pelo rigor dos planos e pela tecnicidade do desenho.
Entre os extremos, o diálogo é alcançado através da sedução do witz, um espírito não desprovido de humor que une as coisas desunidas. Dentro do too much, algo, em algum lugar, se aguenta, desde que nos deixemos apanhar no jogo. A coerência do trabalho sobrevive à mistura de géneros, uma veia tragicómica de ópera e livre expressão. E, da massa ao molde, há apenas um passo: as atmosferas misturam-se como na paleta do pintor.
Versão carnavalesca onde o nobre e o vil mudo, uma lotaria babilónica1 que se liberta das leis para estabelecer novas regras2, a ordem de Enzo Certa seria a de uma sociedade ridícula que se desdobra num magma organizado.
Haphazardly, os múltiplos atores reunidos a partir de uma vasta gama de estilos confrontam-se e combinam-se numa composição que articula elementos tão díspares com aparente facilidade. A paleta é doce, como se fosse para atrair as abelhas e os olhos.
Neste vasto maquinário, o artista emprega tantos estratagemas quanto iscas para piorar o resultado do enigma visual. Por exemplo: ao provocar falta de jeito (pintando com a mão esquerda) a fim de evitar que a pintura evolua demasiado facilmente ou demasiado depressa. Às vezes aparente, às vezes polido – e às vezes transbordando em adições à tela – o toque mantém a energia do todo, tudo em curvas como no olho do furacão. A procissão da carne rubenesca e a sua confusão de acessórios parecem estar constantemente em acção.
A coabitação numa decadência anacrónica destas personagens medievais, figuras pop e seres caricaturados seria, portanto, uma forma de aposta se o sentido de composição do artista não estivesse subjacente à barda. Empurrando o vício da pintura ao ponto de delírio, exagerando como no teatro, em suma, mostrando de uma forma que a pintura não é um fim em si, mas um artefacto entre outros, uma trégua momentânea que permanece aberta à discussão.
1 Parafraseando o título de um conto de Jorge Luis Borges publicado em 1941 nas Ficções da colecção, A Lotyaria da Babilónia, descrevendo uma lotaria levada ao seu extremo onde todas as estruturas e eventos sociais são sorteados (a riqueza, a prisão, o casamento, etc…).
2 Ver Jean Baudrillard, “o que se opõe à Lei não é a ausência da Lei, é a Regra”, in De la séduction, p.180

Il grande sculacciata – óleo s/tela – 2020 – 160cm x 130cm

Le fond des squares – óleo s/tela – 2020 – 100 x 81cm

Héliogabale et ses amours ou le grand citron – óleo s/tela – 2019 – 185 x 185cm

A la chaleur du diesel – óleo s/tela – 2020- 46 x 38cm

Ciao, Signore Croa – óleo sobre tela – 2020- 100x 81cm

Suzanne et les vioques – óleo s/tela – 2018 – 114 x 163 cm

Peinture dominicale – óleo s/tela -2020 – 116cm x 89 cm

Tim – óleo s/tela – 2019-148cm x 120cm
Este artigo foi traduzido do original em francês por Redação Artes & contextos
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