A Presença das Formigas

A Presença das Formigas (parte 2)
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11 de Fevereiro, 2015 0 Por Rui Manuel Sousa
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Também o tempo torna tudo relativo.

Este artigo foi inicialmente publicado há mais de 8 anos - o que em 'tempo Internet' é muito. Pode estar desatualizado e pode ter incongruências estéticas. Se for o caso, aceita as nossas desculpas.

A Presença das Formigas: alma, entrega e paixão na música portuguesa, parte 2

2014 – Pé de Vento

 

 

Um projeto com esta dimensão e qualidade necessita de apoios para se manter no ativo, se não os houver dificilmente arranjarão tempo para construir novos temas e ainda mais complicado será adquirir meios técnicos e humanos para os poderem gravar com a qualidade desejada. É que apesar da importância cultural deste tipo de grupos o meio não é muito profícuo para projetos que contem nas suas fileiras com seis ou mais músicos e para canções que exigem virtuosismo, dinâmica e outras coisas tais como experimentação ou exigência na qualidade de composição.
Para que este disco – Pé de Vento – viesse á tona foi importante o papel da Musibéria que albergou Manuel Maio na primeira “Residência de Jovens Criadores” subsidiada pela FEDER e pela Cooperação transfronteiriça Espanha-Portugal e que suportou a génese dos temas originais do disco, quase totalmente composto pelo próprio.

 

A Presença das Formigas Pé de Vento

A Presença das Formigas Pé de Vento

 

Uma parte considerável do disco foi gravada em Serpa nos estúdios da Musibéria e o disco também contou com o apoio da Camara Municipal de Serpa. Este disco teve a masterização de Mário Barreiros; a de “Ciclorama” tinha sido feita pelo Tó Pinheiro da Silva.

Este segundo disco é um pouco diferente do primeiro, a formação do grupo entretanto mudara em 2013, juntaram-se a Manuel Maio, André Cardoso e Miguel Cardoso três novos elementos, Nuno Silva, Rui Lúcio e Sara Vidal que depois de ser a cantora do grupo mítico galego Luar na Lubre se junta agora ao não menos charmoso projeto português A presença das Formigas. No entanto três dos elementos que saíram em 2013 ainda participam em alguns dos temas de Pé de Vento que acabaria por ser lançado só em Abril de 2014. Como principais características musicais temos a comunhão entre o violino, bandolim e acordeão e a forma como definem o traço da maior parte das canções, as guitarras que surgem com um papel de maior relevo no suporte à harmonia, o suporte rítmico continua com vários apontamentos de percussões tradicionais, mas a bateria surge mais presente e com um caráter decisivo no resultado final dos temas. As canções neste disco estão mais maduras como seria expectável e mais interligadas entre si nos conteúdos musicais e na mensagem (textos/poemas). Como mensagem o novo trabalho explora a temática da “partida”, as suas motivações e consequências, refletindo acerca da atualidade, das relações humanas, do regresso à natureza, dos sonhos e aspirações.

O disco Pé de Vento abre com Ai que ricas orelhinhas, e através do videoclip de apresentação da canção é-nos dado a conhecer a personagem, com fato de executivo, gravata verde listada e cabeção de burro com um par de orelhas ao jeito mirandês:

 

(…)
Ai que ricas orelhinhas que tu tens
Tão lindas como a verdade que deténs
São de BURRO!
(…)
A verdade é bonita é
Quando nua então é que é linda
Sinuosos os contornos
Irresistivelmente doces e pecaminosos

 

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Ao som das peles e dos ferrinhos e com a guitarra a ritmar, o violino e acordeão com muito virtuosismo pelo meio definem a estrutura da canção – tal como referi anteriormente, a utilização dos coros é bastante notória no disco, o que neste tema é particularmente bem conseguido, – Ai que rica canção para sacudir as orelhas e os donos de verdades! O tema seguinte fala-nos de como endeusamos as nossas relações e de como as usamos para nos encasularmos nelas, com uma base rítmica incrivelmente complexa o Manuel troca o violino pelo bandolim e vai de tocar, cantar e trocar mimos com a Sara que os devolve à condição. Segue-se um fado, cantado e interpretado de forma sublime pela Sara, um belo fado que vai evoluindo em intensidade instrumental através de um acordeão “parisiense” e um violino muito psicadélico. Depois desta vontade fadista de “querer o amanhã por inteiro” estamos prontos para Largar, Partir que é o 4º tema deste disco e que tem um refrão tão “orelhudo” como o burro mirandês engravatado, fica no ouvido e é daqueles que dá vontade de decorar para o cantarmos também:

 

(…)
Largar, partir, voar
Sem ter certo onde ir
Sem ter porque voltar
A não ser para voltar a partir

 

Depois de partir, damos os primeiros passos ao som de O aprendiz de Feiticeiro que é um instrumental cheio de balanço e conta com a participação do convidado António Silva na guitarra elétrica. Para contornar os obstáculos que nos vão aparecendo pelo caminho nada melhor do que vencê-los com O Pulo do Lobo. Neste 6º tema é o baterista Rui Lúcio que dá o pulo maior, e é impressionante a forma como a bateria eleva toda a dinâmica da canção. Ouve-se em segundo plano um “fender rhodes” que confere à canção uma maior solidez, por detrás deste instrumento está o músico convidado Rui Ferreira (Caps). A sua colaboração é bastante significativa pois participa em mais temas, tocando mais alguns instrumentos e é também o responsável pela mistura deste disco.
A partir daqui “assim como quem não quer a coisa” o disco muda. A Presença das Formigas VI

A canção Assim como quem não quer é o primeiro país longínquo a que esta viagem chega. Até ao final, mais terras, outros lugares, estranhas paisagens e um olhar sempre muito atento e inovador, pois esta formiga é bicho de grande observação como já se sabe. Neste tema há uma chuva de convidados, o glockenspiel tocado pelo Luis Arrigo evoca o sonho, uma braguesa muito doce tocada pelo Hélder Costa, e as vozes de João Afonso e a de Teresa Campos. As vozes do Manuel, da Sara, da Teresa e do João a determinada altura começam a surgir em simultâneo com várias frases e melodias diferentes criando um efeito que lembra o universo de Não Canto Porque Sonho de Fausto Bordalo Dias. Logo de seguida mais um lugar que se evoca:

 

“(…)
De todos os monstros que vivem
os mais estranhos habitam ao lado
(…)
Fronteiras e muralhas guardam
Impérios longe da marginal

 

É a Orla dos Malditos, um lugar baldio, um espaço de vazio ocupado e que nada tem de aconchegado, mas que o viajante está determinado a percorrer:

 

(…)
Deixa-me ser o teu abrigo
Que te abraça com doçura
Com calma, sem perigo
Como o sol quente no fim do verão”

 

Esta paisagem é evocada pelo André Cardoso, o trabalho da guitarra clássica é brilhante e o resto da banda segue-o magistralmente, no final da canção a voz da Sara arrepia! Segue-se outro instrumental, Planície que conta com João Paulo Esteves da Silva ao piano. Este tema surpreende pela qualidade de composição, algumas das frases lembram o universo de Avishai Cohen.

A qualidade de composição de Manuel Maio neste disco atinge um grau de tal excelência que diria mesmo que seria um crime cultural não continuar a ser apoiado pelos responsáveis culturais deste país. O tema que se segue conta com a participação do cantor Luis Pastor, Que serei? é cantado num tom calmo e em dueto com a Sara:

 

“Por fuera solo yo.
Por dentro, que diré?
De lejos soy así
De cerca, que seré?
(…)
Por fora sou só eu
Por dentro, que direi?
Ao longe sou assim
Ao perto, que serei?”

 

Para além desde convidado de peso que vem do outro lado do risco imaginário a que chamamos fronteira participam também Rui Ferreira, Hélder Costa e António Silva. Todos estes ingredientes são mais uns carimbos no passaporte.

Tenho escrito estes dois artigos fazendo algumas alusões e associações que apenas estão na minha forma de sentir os discos, não quero de nenhuma forma que pensem que alguns cenários aqui descritos não passem apenas disso mesmo, são fruto do que sinto ao ouvir, são associações que faço e que as evoco como mera possibilidade. Continuando esse exercício permitam-me que defina assim as duas últimas canções, a versão da Senhora do Almortão sinto-a como feita por alguém que viajou por outras terras, que cresceu, que absorveu e quando volta á sua terra consegue dar um toque mais rico e diversificado ao tesouro cultural da terra onde partiu. Já Vai tão sozinho soa-me ao descanso do guerreiro, que agora mais confiante depois da viagem e do regresso, está pronto para o que a jornada lhe trará doravante. Musicalmente a versão da Senhora do Almortão é uma autêntica viagem e dou especial destaque para o momento em que a Sara e a Teresa Campos cantam juntas depois da entrada dos adufes, – completamente arrepiante! O último tema demonstra toda a capacidade do Manuel compor, imaginar e cantar. A execução da guitarra é exímia e o arranjo demonstra um bom gosto considerável.

Resta dizer que as excelentes capas dos discos foram elaboradas pelo Danylo Gertsev e, vamos aterrar, está um tempo ameno aqui por terras lusas, podem retirar os cintos e prosseguir as vossas vidas, sem esquecer que viajar é enriquecer a alma. Por mim sinto-me completamente viajado quando ouço estes dois discos, venha o terceiro, por favor?!

 

A Presença das Formigas

A Presença das Formigas

 

Eis a lista de músicos e de instrumentos que participaram no disco Pé de Vento:

– André Cardoso / guitarras (clássica, cordas de aço e portuguesa)
– Manuel Maio / violino, bandolim, voz, coros e sonoplastia
– Miguel Cardoso / baixo eléctrico, contrabaixo
– Nuno Silva / acordeão
– Rui Lúcio / bateria, percussões
– Sara Vidal / voz

Como convidados:
– Antonio Silva / guitarra eléctrica (5,10)
– Filipa Meneses / piano (11)
– Hélder Costa / viola braguesa, guitarra cordas de aço (7,10)
– João Afonso / voz (7)
– João Paulo Esteves da Silva / piano (9)
– Luciano Cuviello / percussão (10)
– Luis Arrigo / glockenspiel, vibrafone (7,11)
– Luis Pastor / voz (10)
– Rui Ferreira (Caps) / cavaquinho, baixo fretless, percussão, teclados (1,2,4,5,6,8,10,11)
– Teresa Campos \ voz (7,11)
– Danylo Gertsev, Jean-Marc Charmier, Katarlin Raska, Luciano Cuviello, Manu Sabaté, Nikolaos Tsantanis, Silvia Petrosino \ textos (8)

 

Leia a primeira parte deste trabalho Aqui

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Musico, entusiasta de cordofones que gosta de falar de música, da sua alquimia e do seu indelével sentido cultural.

Jaime Roriz Advogados Artes & contextos