ABEL TECHER
“Monstros graciosos, cruéis, terrivelmente masculinos e andróginos, esta é a minha ideia de anjos”, Jean Cocteau, Journal d’un inconnu, 1957
Nascido em 1992 em Saint Pierre, Abel Techer formou-se em 2015 na Ecole Nationale Supérieure d’Art de La Réunion. Em obras a óleo ou pastel, o artista constrói a sua prática principalmente com base na auto-representação. Abel Techer estabelece, parafraseando o ensaio epónimo escrito por Judith Butler em 1990, “uma desordem de género”, aquela que limita o ser a um aspeto definido e antecipado. Este papel, de facto sem origem, que é desempenhado no espaço social, é aqui banido em favor de uma encenação do ser andrógino e estranho. A investigação resulta numa constante performatividade do artista em mutação numa pintura cativante.
Façam género, dêem-se um género em cada trabalho e proíbam a limitação ontológica do eu. Para o fazer, não há necessidade de trajes ostensivos: a simulação é tão forte quanto restrita à maquilhagem minimal; objeto, maquilhagem, atitude. A moldura quase atonal chama a atenção para cada nota falsa. O que é este “sonho estranho e penetrante” (Verlaine) habitado por uma criatura de alabastro? A cena, abafada pelos tons cinzentos e por um véu de vapor herdado da pintura Romântica, parece encantada. Contra este fundo neutro e acético, o protagonista, nu como no primeiro dia, é uma aparição. Entre a forma de pintar e o tema representado, existe este mesmo despojamento, sem qualquer artifício de reserva. A tinta, tal como a epiderme, forma uma camada vulnerável ao seu alcance. Alguns toques de material fazem brilhar as superfícies polidas, como porcelana frágil: cerâmica estranha, bóias insufláveis ou pele lisa.
Na autoficção interpretada por Abel Techer, cada personagem criada é uma fantasia aopotropaica: ele conjura o azar. Este desejo de ser outro, esta prática artística de encarnação é o que define precisamente este arrastamento. Mais do que imitação, trata-se de contágio (Renate Lorenz em Art queer: uma teoria aberrante). Nesta exploração, é o espaço fechado, impessoal, fechado como uma sala, onde se atreve a ousar as coisas consigo mesmo. O lugar do íntimo é, segundo Gérard Wacjman, “o espaço onde o sujeito pode estar e sentir-se fora do olhar do Outro” ( em “Les frontières de l’intime” em Les images honteuses, ed. Murielle Gagnebin e Julien Milly). É o lugar, em suma, de todas as possibilidades.
Abel Techer posa frequentemente nas suas obras, sem roupa, bem barbeado, depilado, e por vezes careca. Desde a antiguidade, o aparecimento da puberdade tem sido a prova da passagem à vida adulta e ao estado sexual. Este corpo, que se depila inteiramente como que para desencadear a sua mutação, é um corpo social que brinca com o olhar da outra pessoa. O homem, “o verdadeiro”, não pode ficar sem cabelo aos olhos da sociedade ocidental, como Buffon argumentou no século XVIII nas suas observações racistas sobre os nativos americanos: “O selvagem é fraco e pequeno pelos órgãos da geração, não tem cabelo, não tem barba e não tem fervor pela sua fêmea […]”. No trabalho de Abel Techer, no entanto, tudo se resume ao outro, começando pelo outro que é o próprio. Não é nú como um verme que o eu se pode revelar um pouco?
“O que é o eu? …] Onde está este “eu”, se não está nem no corpo nem na alma? E como se pode amar o corpo ou a alma, senão por aquelas qualidades que não são o que constitui o “eu”, uma vez que são perecíveis? ».
Neste texto, no século XVII, Pascal declara uma dissolução do eu que será em grande parte retomada pelos Românticos. Este eu não caricatural, transportado para o desconhecido já que inconsistente, alimentou certamente a figura do andrógino, revisitado no final do século XVIII. O neoclassicismo, em particular, jogou com esta ambivalência nos nus masculinos tratados com as mesmas curvas que os femininos. Hyacinth, Endymion e Ganymede são encarnados por adolescentes diáfanos, numa décor nublado que pode ser encontrado na pintura dos bombeiros. A sua passividade e indiferença são também as dos auto-retratos encarnados de Abel Techer. Brilhante como uma moeda nova, tem aquele olhar hierático e ausente de quem regressa de um lugar místico. Para além do masculino e do feminino, é um novo anjo que o jovem pintor nos mostra.
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Este artigo foi traduzido do original em francês por Redação Artes & contextos
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