Travessia Infinita
Curadoria de Gretta Diaz
A travessia é um processo de conexão com o que nos rodeia, é um percurso de infinitas possibilidades. Estamos em muitos momentos ligados à dor, ao sofrimento, à perda, mas isso não é tudo. Artistas dos mais variados estilos e de altíssima qualidade conduzem-nos através das suas obras numa travessia infinita que nos recorda como a nossa passagem pela vida pode ser criativa, abundante e próspera.
Gretta Diaz
A exposição atual de arte contemporânea está patente até 27 de fevereiro de 2020 e após essa data o espaço continuará a ser palco de uma exposição permanente. Trata-se de uma parceria feliz entre a Arca Gallery e o Hotel The One, albergado no antigo Palácio da Anunciada, cujo edifício foi alvo de reabilitação recente, em plena baixa lisboeta, na rua das Portas de Santo Antão, do 112 ao 134.
Lisboa tem recantos de uma beleza inimaginável, alguns edifícios decadentes e à beira do colapso, abóboras que rapidamente se convertem em coches pela mão de fadas transformando-se em jóias arquitetónicas, com novas e renovadas entradas, luzes e acabamentos. É a cidade que, na sua conhecida coqueteria, se maquilha para atrair os habitantes permanentes ou temporários. Mas no Hotel The One, este antigo palácio ao qual se seguiu um edifício pombalino, abre-se também aos lisboetas pela via da galeria de arte: algumas pedras nobres de traça antiga foram mantidas no revestimento das paredes junto à escadaria que conduz ao primeiro piso. Não se nasce do nada, nem as pessoas, nem as civilizações, nem os edifícios. Sapatas são raízes plantadas no solo, pilares e vigas são esqueleto, canalização e rede elétrica, sistema cardiovascular; paredes poderiam ser massa muscular assim como a pele se assemelha ao revestimento. E a iluminação? As luzes são o olhar do cosmos sobre as coisas, mesmo quando apagadas. Este edifício assume assim a sua herança histórica desde 1533 e a sua génese, não obstante a reforma (necessária) sofrida.
Travessia Infinita, como foi designada a presente exposição, é um nome singularmente bem escolhido: para além da enumeração das relações entre o artista e o meio envolvente — e as possibilidades que daí decorrem—, julgo que Gretta Diaz, a curadora, e os artistas presentemente expostos na galeria são também gente de incontáveis travessias. Para além das cruzadas interiores, do amadurecimento e das vivências individuais, há neste coletivo de artistas uma universalidade que se atinge, não apenas pelas viagens que se trazem na bagagem ou através das culturas que se vão tocando e conhecendo (integrando muitas vezes como nossas), mas também pela abertura em relação ao diálogo com o mundo, para além do nosso pequeno espaço de conforto familiar, social ou geográfico.
Longe da azáfama das inaugurações, tive o privilégio de visitar a galeria de forma totalmente “desprogramada” e inesperada. As melhoras coisas da vida podem acontecer neste caos do tempo, nos lapsos de agenda e nos intervalos entre as obrigações e toda a espécie de imposições profissionais. Assim foi também com a Arca Gallery. Levei a minha pequena troupe familiar e beneficiei de uma visita guiada com a curadora: nem sempre será possível, e não o será certamente nos momentos socialmente mais movimentados, de maior afluência e presença da imprensa. Por isso devemos, creio eu, escolher os momentos em que podemos ter maior intimidade com as obras e a atmosfera de cada artista, as suas obsessões e fragilidades, os seus referentes culturais; eu faço-o, e recomendo a experiência.
Uma visita guiada é um regalia rara para mim, mas mesmo na eventualidade de percorrer as salas da galeria sozinha fá-lo-ia com prazer, usufruindo demoradamente de cada quadro, ensaiando distâncias diferentes em relação às obras, contemplando a harmonia do conjunto e depois cada detalhe: as cores, as representações, o traço, a intensidade e até a escolha da moldura e/ou do passe-partout. Deixando fluir a emoção que cada obra causa, ou não — e esse continua a ser o aspeto que considero fundamental, na condição de leiga e apreciadora informal de arte. Para uma abordagem mais técnica existe material disponível em abundância que nos permite adentrar nas técnicas de cada um destes artistas e ainda a paciência inesgotável de Gretta que, num fim de tarde invernal, nos elucida sobre os artistas que aqui expõem, passo a passo.
Confesso que houve uma obra, em particular, que me conduziu à exposição. Trata-se do quadro “Poeta” (técnica mista), de Raonel. É difícil não adjetivar pois a verdade é que a conjugação das cores, o traço e a assimetria harmoniosa, assim como a expressividade e também o tamanho da obra (1,80×1,20m), me cativaram de imediato. É um quadro que ombreia com a altura de um homem, e para além do meu fascínio por retratos em geral apresenta um detalhe pitoresco que humaniza ainda mais a obra; dir-se-ia, aliás, que é comum a muitos dos seus retratos; não vou revelá-lo para não provocar rastilhos nem gerar influências desnecessárias. Para meu grande júbilo, “Poeta” (ou poetas, I e II) não são as únicas obras do artista ali expostas: existe outro quadro, igualmente forte e revelador, no primeiro andar do The One, um quadro na horizontal, “História de vida” (210x35cm) que se lê e se vê em todos os sentidos. Apetece dizer que um homem tem o tamanho do seu rosto, ou o tamanho da sua arte.
A obra do escultor figurativo Hans Varela seria também motivo suficiente para seduzir-me: embora já conhecesse um pouco do seu trabalho pela divulgação de algumas imagens e artigos na imprensa, ver as obras ao vivo, tocar-lhes e sentir a textura dos materiais é uma sensação inigualável. A frieza do mármore e de outras pedras nobres locais (azul Cascais, um calcário cinzento azulado ou o mármore de Estremoz, entre outros) contrasta com o calor das suas criações, onde a figura humana, nomeadamente a mulher, a sensualidade e os afetos têm lugar de destaque (veja-se o caso de “O beijo”, um beijo marmóreo de 85cm de altura para contemplar e sonhar). O prazer táctil de roçar uma escultura com uma superfície curva e fria com a ponta dos dedos é insubstituível.
Mas se Raonel e Hans Varela por si só seriam incentivo mais do que suficiente para visitar a coletiva, os demais artistas que fui conhecendo revelaram-se surpresas fascinantes. Não direi inesperadas porque a expetativa era exatamente ser arrebatada irremediavelmente.
À entrada deparei-me com as esculturas em arame de David Oliveira, pássaros que insinuam movimento abrindo enormes asas pretas e estáticas, sugerindo voos intermináveis (“Garça”, “Cegonha” e “Falcão”). O conhecimento e respeito rigoroso da anatomia é, aliás, uma nota comum percetível em ambos os escultores. Na parede à direita da entrada a artista Deolinda mostra-nos figuras humanas sem rosto, como se este não fosse passível de representação (à semelhança de Hazul, que faz parte da memória coletiva do Porto ou de Maria Lynch com as suas figuras femininas imateriais), em quadros de média dimensão. Talvez as feições não sejam determinantes para se identificar uma figura, mas sim as formas arredondadas e as cores, vivas e tropicais. Deolinda, como as rainhas e as meninas, apresenta-se apenas pelo nome próprio. Imagino que uma figura apenas com o formato do rosto dispensa identidade e ganha em significações. A figura feminina, a ideia da maternidade e as formas arredondadas afiguram-se-me preponderantes.
No seguimento encontramos algumas obras de Henrique Gabriel, que parece apostar sobretudo nos tons térreos, no vermelho e no preto, com formas geométricas, contornos bem definidos e desenho de pormenor, para nos interrogar com um título auspicioso: “Existirá no tempo um plano (ou um destino?)”; mais para a frente aguardam-nos duas obras de João Silva, esse artista de nome tão português e de linguagem gráfica tremendamente profunda e realista. Uma figura masculina esbate-se (debate-se?) sob uma parede chuvosa azul, como uma queda de água (“Verão”, óleo sobre tela), enquanto que uma mulher, noutro quadro exposto paralelamente, se apresenta no alto do que nos parece ser um penhasco ou um planeta imaginário. Pode ser que as duas figuras partilhem apenas uma dose desmedida de ansiedade, caracterizada pelo pintor, que apenas o olhar do visitante pode mitigar.
Já Fernanda Silva é uma artista que nos apresenta obras abstratas em cores difusas, ora densas, ora suaves, misturadas com um sombreado de fundo. O traço é firme e as interseções são múltiplas sugerindo-me essa harmonia que procuramos diariamente na convivência em sociedade. Julgo que de alguma maneira dialoga com o espírito do poeta-pintor alemão Paul Klee e até com o russo Kandinsky, pioneiro do movimento abstracionista, pela forma como as cores dos objetos, pintados a óleo ou apenas sugeridos, parecem voar sobre telhados pelas cidades fora contrariando a lei da gravidade.
Carlos Alexandre, o pintor do movimento, como caraterizado com justeza pela curadora, apresenta-nos obras com um dinamismo notável, nomeadamente o seu “212” (óleo e acrílico sobre tela) em que o mobiliário urbano, os comboios, os túneis e as ruas se escapam ao nosso olhar para “dançarem” literalmente dentro dos quadros: ou nós os vemos a alta velocidade ou eles possuem realmente oscilações próprias que criam vida num objeto estático.
Ladeando o “Poeta” de Raonel, na antiga biblioteca do palácio, que conserva ainda várias estantes de livros e vestígios do seu imponente passado, temos diversos quadros em torno do tema “Libertação”, de Paulo Canilhas, um artista abstracionista com quadros em vários formatos; em acrílico e carvão sobre tela, as obras oferecem-nos um espaço ilimitado de observação e interpretações em nuances de cinza (base),que se libertam através de frestas coloridas e apontamentos luminosos em cores vivas.
Niurka Bou é outra das artistas que expõe logo na sala de entrada da galeria: registamos quadros alegres, amplos e floridos com um aroma bom de primavera. Last but not least conhecemos Annemarie Spatz com uma obra muito tropical e cheia de vivacidade, talvez um dos meus coup de coeurs desta coletiva diversificada em estilos mas una em qualidade. A artista pinta climas e fauna da América do Sul, com profusão de papagaios, cheiros e cores de uma natureza muito ensolarada que abre o apetite.
Muito mais se poderia dizer sobre o espaço e a disposição das obras, que também respiram e dialogam umas com as outras. Com Gretta fizemos paragem obrigatória praticamente diante de cada obra, para falarmos um pouco sobre os quadros e os autores, as suas motivações e temas, as texturas e alguns pormenores à margem da arte mas no centro da vida. Cruzam-se neste espaço várias culturas e sensibilidades artísticas ligadas pela linguagem sem fronteiras da arte.
Quanto ao resto, e tendo noção perfeita de que todas as opiniões aqui expressas são unicamente o resultado da simbiose entre mim e cada quadro ou escultura, convido-vos a submeterem-se também a esta experiência. A arte dorme de noite e espera por nós ao longo do dia. Garanto…
Artistas plásticos convidados:
Ajuda-nos a manter viva e disponível a todos esta biblioteca.
Annemarie Spatz
Carlos Alexandre
David de Oliveira
Deolinda
Fernanda Silva
Hans Varela
Henrique Gabriel
João Silva
Niurka Bou
Paulo Canilhas
Raonel
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Escrevo crónicas, contos e poesia. Ensaio palavras entre linhas e opino sobre cinema, preferencialmente africano e lusófono. Semeio letras, coleciono sílabas e rumino ideias.
Gostei muito do artigo. Foi o primeiro ao abrir a galería. Muito obrigada pelas opiniões.