Um filme de Dave Schram sobre Bullying
Baseado na obra homónima de Carry Slee — autora conhecida por escrever sobre as vulnerabilidades da adolescência e situações conflituosas com o meio envolvente — DESCULPA! é o mais recente trabalho assinado pelo realizador holandês. A ZERO EM COMPORTAMENTO, associação cultural que pugna por apresentar filmes didáticos com uma forte componente formativa centrada no público infantil e juvenil e promover a pluralidade cultural, associou-se à PROJECTOS PARALELOS para distribuir em Portugal um filme que tem conquistado prémios por toda a Europa (atribuídos, inclusive por um público muito jovem). Desculpa! — É também a voz interior que ouvimos ao assistir a este filme que também resultaria no registo documentário. Outros modelos de narração poderiam ter-se imposto para abordar a sensível questão do bullying, que afeta hoje, segundo dados da UNICEF, vários milhões de crianças e adolescentes em todo o mundo.
Se estivéssemos diante de um blockbuster infundadamente otimista provavelmente teríamos outra versão da história: porque não um protagonista atormentado, inseguro e apagado, no secundário, que alguns anos depois conseguiria transformar-se num rapaz socialmente invejado, profissionalmente bem-sucedido e sexualmente atraente? (E, obviamente, namorar a rapariga mais popular do seu círculo de amigos, para o cliché ser completo). Esta seria a versão idílica e cor-de-rosa que não é de todo a opção do realizador para nos contar uma história dramática sobre bullying no contexto escolar.
Não é que as histórias felizes não sejam credíveis, mas não foi o caso para Jochem, um rapaz com excesso de peso, sensível, solitário e excecionalmente dotado para a música. Já viram alguém ser perseguido na escola por não ser delicado e extremamente talentoso para as artes? Nem eu. Em contrapartida, não ser eficaz nas atividades desportivas e ser de alguma maneira diferente da norma pode ajudar a integrar um “grupo de risco”. A palavra “falhado” diz-vos alguma coisa?
Vamos então tentar perceber alguns traços que caracterizam “o perfil da vítima” (mesmo não existindo um perfil único): alguns estudiosos apontam a passividade, a insegurança, a ausência de estratégias de defesa e de assertividade e também o facto de muitas crianças/adolescentes se sentirem solitários ou serem retraídos. Ou seja, todas as singularidades que os tornam “diferentes” da maioria num dado contexto (são gordos, frágeis, sardentos, vestem-se ou penteiam-se de maneira invulgar ou têm um sotaque estranho… e poderíamos aqui desfiar um rosário de particularidades a nível racial, cultural, religioso ou relativo à condição socioeconómica da família …).
Acreditamos, por outro lado, que a obesidade e o excesso de peso estão ainda sub-representados na identificação de uma das causas mais frequentes de perseguição. Não vamos nestas breves linhas explanar mais do que o razoável sobre perfil de vítimas, observadores e perpetradores de bullying mas é crucial que se perceba que, pese embora estarmos diante de uma obra de ficção, todo o universo do filme nos remete para uma realidade presente em todo o mundo e com uma expressão inquietante em Portugal, não obstante os progressos já alcançados (descida de 15,3% para 7,3% entre 2013 e 2018 segundo um relatório divulgado pela OCDE). Em todo o caso subentende-se uma certa sub-representação do fenómeno pelo facto de muitas situações não serem devidamente reportadas pelos canais próprios (ou porque as escolas tendem a resolver os problemas internamente, ou porque é um assunto incómodo e que se varre “para debaixo do tapete”), chegando a fazer pensar na omertà, a lei do silêncio.
Voltando a Jochem, o filme começa com uma cena bastante explícita em que o rapaz, durante a escolha prévia de jogadores para um treino de basquetebol é sucessivamente preterido a favor de colegas mais seguros, dotados e motivados; o nosso anti-herói está em evidente contraste com os que oferecem garantias de êxito, têm uma imagem mais atual e aparentam ser mais confiantes. Como seria de prever ele acaba por ser “a última escolha” e durante o decorrer do jogo reage de forma quase patética à dinâmica imposta pela velocidade, pela adrenalina e vontade de encestar e marcar pontos. Jochem agarra-se ferozmente à bola como quem procura desencadear uma esperança e um reconhecimento que tardam a chegar. Alguém se reconhece? Poderíamos ficar por aqui pois está tudo dito, ou quase. Tudo o mais será pano de fundo para enquadrar a personagem na história e a história na vida.
Embora o filme sublinhe especificamente a questão do bullying nas escolas, com especial enfoque na vítima, também se ocupa em demonstrar quanto é importante o papel dos chamados observadores (neste caso os colegas e amigos — que quase não tem). Quem assiste a um ataque pode escolher fazê-lo passivamente (essa mesma passividade que tantas vezes se imputa à vítima quando, no limite, ela chega a ser culpabilizada pelo seu papel); há ainda aqueles que, não se contentando em assistir, indiferentes, se prestam a acirrar os ânimos e a incentivar a agressão, intimidação ou humilhação reforçando o poder simbólico dos atacantes.
Mas os observadores podem e devem intervir influenciando criticamente uma situação de agressão, tomando o partido das vítimas e mostrando aos agressores que não existe impunidade nem complacência para eles e, mais do que isso, desmistificando a aura de glorificação que muitos se autoatribuem sendo que grande parte é também caracterizada por uma baixa autoestima, problemas emocionais e o mero desejo de se destacar.
DESCULPA! é na verdade um bom pretexto para refletirmos em conjunto sobre a história de um rapaz que, praticamente sem amigos e incapaz de desenvolver a autoconfiança suficiente para encarar a hipótese de uma parceria amorosa, se vê progressiva e regularmente humilhado e acossado na escola por um grupo de três rufiões liderados por alguém que claramente tem um maléfico poder de liderança, neste caso de persuasão, intimidação e manipulação (é o efeito “matilha”). Três rufiões (e perdoem-me os arautos da linguagem lavadinha e neutra, pelo termo desbragado) — no tempo que em que não se falava de bullying era assim que eram chamados — não fariam estragos maiores não fora o silêncio cúmplice dos outros, dos já citados observadores, dos que olham para o lado, dos que acham graça a pregar partidas a um miúdo gordo e a tirar-lhe fotografias com a cara enfiada num prato de batatas fritas com maionese.
E falando em batatas fritas e afins, este filme também chama a atenção para os efeitos de uma alimentação desregrada, hipercalórica, com excesso de sal, gorduras, açúcares, proteínas de origem animal e pobre em fibras, vitaminas e vegetais; hábitos que costumam vir de casa, onde os pais, com a melhor das intenções mas fazendo prova de alguma inconsciência e ignorância e perpetuando provavelmente hábitos herdados, proporcionam ao filho (neste caso, a Jochem) autênticos banquetes (desastrosos) no dia-a-dia. Ou seja, aquilo que deveria ser verdadeiramente excecional, para dias festivos, torna-se num hábito de consumo regular com consequências nefastas para a saúde. A cantina escolar também não é poupada neste exame discreto mas minucioso, uma vez que, embora incluindo alternativas saudáveis, oferece alimentos que não deveriam sequer constar da ementa.
O filme jamais cai no tom moralista, piegas nem politicamente correto e assético (pois o ser humano é imperfeito por natureza) mas toca muito subtilmente, com o ritmo certo, noutros aspetos marginais que apesar disso merecem ser mencionados: os maus-tratos a animais traduzidos pela imagem do cão ferido, abandonado e acorrentado; a automutilação e a autoflagelação como sinais de alerta bem como a manutenção de um diário regular; a atração precoce pelo álcool; as pulsões alimentares; a manipulação, a perversão e a intolerância; a exigência excessiva no trabalho (em termos de carga horária) condicionando negativamente a vida familiar; a responsabilidade acrescida dos pais perante os filhos nas famílias monoparentais.
Jochem tem, nesta história, dois amigos — Vera e David — e uns pais tão amorosos como distraídos. Amigos que o defendem o melhor que sabem e podem ainda que pontualmente pequem por omissão. Simbad, o cão, a música clássica e a sua professora de piano são parte das suas experiências mais felizes.
Todos os outros, ou quase, professores incluídos — e com maior responsabilidade por serem adultos e educadores — são falhos, superficiais, negligentes e desvalorizam o que não é para ser ignorado: a sistemática humilhação, a desconcertante marginalização e a agressão física e psicológica a uma pessoa, a um adolescente (ainda que se possa legitimamente pensar que a gravidade do problema pode ter sido escamoteada ou até desconhecida posto que o rapaz, em rutura com um quotidiano normal e sereno, permanentemente na mira dos agressores, procura ocultar o inferno em que vive e não se abre sobre o assunto com aqueles que mais o podiam ajudar, após a ocorrência das agressões: os adultos, pais e professores). Nesse sentido podemos fazer uma destrinça entre responsabilidade e culpa propriamente dita.
Tomar uma atitude de “seres humanos decentes” não é ser herói: é ser solidário; e sobretudo termos consciência de que todos nós (ou a nossa descendência) somos potenciais vítimas de acosso e também potenciais espectadores passivos ou agressores. Não é um problema “dos outros”. Não sabemos se será tarde de mais para Jochem mas de certeza que é o momento certo para defender cada uma dos milhões de crianças e jovens que por esta altura estará tragicamente envolvida com esta tragédia, porque todos merecemos dignidade e respeito. O momento em que agimos é sempre o momento certo.
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DESCULPA! é a palavra que todos vamos querer pronunciar, como Dave Shram e Carry Slee.
Veja Desculpa! no IMDB
Escrevo crónicas, contos e poesia. Ensaio palavras entre linhas e opino sobre cinema, preferencialmente africano e lusófono. Semeio letras, coleciono sílabas e rumino ideias.