O cinema traz para a atualidade este facto insólito ocorrido em 2008, num liceu de Gloucester, Massachussetts, nos Estados Unidos; trata-se de uma pequena comunidade que vive essencialmente da pesca e tem conhecido um certo declínio financeiro.
As irmãs Coulin decidiram transpor a história das dezassete raparigas para Lorient, uma cidade portuária de Morbihan, na região da Bretanha francesa, antigamente conhecida como “A cidade dos cinco portos”, assinando assim a sua primeira longa-metragem apresentada agora em Portugal pela Zero em Comportamento.
No filme a história é contada pela perspetiva das adolescentes (contrariamente às jovens que viveram o acontecimento real, as quais se teriam mantido afastadas da imprensa); as raparigas selaram, pois, um estranho pacto, que, no mesmo ano, conduziu dezassete delas à gravidez, provocando uma forte convulsão na comunidade escolar e nas suas respetivas famílias. As realizadoras optaram por contar a história sem julgamentos apressados nem respostas definitivas. A história em si e a maneira como é transposta para o grande ecrã, à guisa de documentário observativo, suscita inúmeras reflexões e interrogações gerando um debate, necessário e pertinente, que continua a fazer sentido.
Camille é uma líder natural que engravida em consequência de sexo casual não protegido; ao descobrir o seu estado interroga-se sobre a viabilidade de levar a bom porto a gravidez e todas as consequências que essa opção poderá ter sobre o seu futuro. Não obstante a rejeição inicial de uma família disfuncional e debilmente estruturada, rapidamente se vê rodeada de uma atmosfera de amor e compreensão que lhe permite encarar o futuro com otimismo. Poderá Camille continuar a estudar e perspetivar um futuro profissional? A sua insegurança, influenciada pela extrema juventude, pelo cocktail hormonal a que está sujeita e igualmente pela ausência de apoio paterno e/ou de um hipotético companheiro com quem partilhar decisões e responsabilidades, vai-se transformando gradualmente numa enorme força motriz que serve de exemplo e de mote para muitas das suas companheiras, num esquema que se assemelha a manipulação psicológica.
Afinal, Camille é uma rapariga popular, e num cenário de tédio e marasmo social a maternidade surge para muitas das jovens alunas como uma afirmação societal e uma forma de se libertarem do jugo familiar. É o efeito em cascata, bola de neve ou bola de fogo… A glorificação da maternidade precoce afigura-se-lhes como um antídoto contra a baixa autoestima, uma forma de garantirem um amor incondicional que as arranque ao ramerrame dos dias enevoados de Lorient, onde a vida, cinzenta, parece correr a um ritmo demasiado lento. Mas poderá a maternidade, por si só, preencher tão retumbante vazio emocional? O pacto de amizade entre as adolescentes e a romântica ideia de criarem os filhos juntas parece tranquilizá-las quanto aos obstáculos a enfrentar. Afinal, este conjunto inusual de gestações não é um sonho individual nem familiar, é um projeto de grupo resultante de uma decisão deliberada.
Que futuro para as mulheres e para os homens de Lorient, uma terra, onde, dizem elas, “ou chove ou cheira mal”? “O desemprego para as mulheres e o exército para os homens”, como afirma o irmão da personagem principal, representada pela bela Louise Grinberg.
Todo o filme nos arrasta para uma atmosfera de descrença no amanhã e desejo de rutura, de rotina asfixiante a amargura contida. Fundar um novo paradigma social assente na proximidade entre mães e filhos, desprezando soberbamente o papel dos pais, escolhidos quase ao acaso como meros reprodutores, parece ser a opção escolhida. As reflexões que o filme impõe são de vária ordem: as liberdades individuais, a importância da educação sexual e reprodutiva, a ausência de um contexto afetivo na base de uma gravidez, a partilha de responsabilidades entre a escola e os encarregados de educação, mas também o bullying — os grupinhos, os cochichos, a indiferença e a rejeição —, a lealdade ao clã e o espírito de seita, baseados na confiança total entre os membros, no secretismo, no afastamento de outras redes (familiares e escolares), e na disponibilidade permanente.
Neste pequeno universo de adolescentes tão rebeldes quanto ingénuas assistimos a um folhear de páginas do catálogo de comportamentos de risco: sexo sem proteção, consumo e abuso de álcool, de tabaco e de canábis, velocidade excessiva. Parece paradoxal que estas raparigas, que desejam ardentemente assumir o papel de mães afetuosas e responsáveis e se submetem a um acompanhamento rigoroso da gravidez segundo o protocolo, sejam aparentemente tão desatentas quanto à sua própria saúde, vivendo perigosamente à beira do precipício. Elas querem entrar no mundo dos adultos pela via rápida, queimando etapas, inibindo frustrações, e pretendem sobretudo conquistar algum espaço e respeito, mas fazem-no da maneira mais caótica, com os parcos recursos que têm. [De notar que a região da Bretanha tem sido sistematicamente referida como tendo comportamentos aditivos superiores à média da França, relativamente a álcool, tabaco e drogas (Num artigo do jornal Ouest-France de 08/12/2016 lemos que 17% dos jovens bretões de 17 anos consomem álcool pelo menos 10 vezes por mês, contra 12,2% no resto do país e que o consumo de canábis atinge 15% das pessoas entre 15 e 64 anos contra 11% a nível nacional). Este flagelo refere-se nomeadamente aos jovens e por esse motivo a região beneficiou recentemente de um plano do governo para prosseguir ações de prevenção já implementadas].
A vontade indómita de ser mãe na adolescência poderá explicar-se de diversas formas, sendo que todas as teorias serão válidas mas refutáveis. Porventura a resposta que mais se aproxima da realidade resume todas as hipóteses aventadas pelos especialistas: uns apontam o dedo à glamourização da maternidade adolescente[1] sugerida por alguns filmes produzidos por Hollywood e bem acolhidos pelo público e pela crítica pouco antes do acontecimento em Gloucester, como «Juno», de Jason Reitman e «Knocked Up» (“Um Azar do Caraças” em Portugal e “Ligeiramente Grávidos”, no Brasil), de Judd Apatow, sendo que este último foca sobretudo a gravidez acidental. Também as elevadas taxas de desemprego, nomeadamente em relação a emprego qualificado, poderão ter levado estas jovens a idealizar a maternidade, como forma de realização pessoal e afirmação de independência.
Neste filme, a economia de diálogos adequa-se à narração quase austera, despojada e sem ornamentos cénicos. Aqui conta-se a própria vida, como ela é e como é sentida e fuma-se ganza para espantar a modorra. Talvez a presença massiva de joaninhas nas praias de Lorient seja tão surpreendente como a dinâmica criada entre as dezassete raparigas, e, como diz um ancião da terra: “Só nos faltava ver isto”.[1] Referido por Susana Almeida Ribeiro no seu artigo de 20 de junho de 2008 para o Público.
Estreia dia 17 de maio
Alguns prémios:
- Grande prémio Semana da Crítica – Cannes 2011.
- Bratislava International Film Festival 2011
- Dauville Film Festival 2011
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Escrevo crónicas, contos e poesia. Ensaio palavras entre linhas e opino sobre cinema, preferencialmente africano e lusófono. Semeio letras, coleciono sílabas e rumino ideias.