Um Outro Fim Para a Menina Júlia
Quando em 1888 August Strindberg escreveu A Menina Júlia (Fröken Julie), escreveu-o com o que observou da vida, como então disse, e talvez com o que viveu da sua. Ele era filho de um aristocrata e de uma empregada doméstica.
Na que foi considerada a primeira peça do Teatro moderno, e numa época de grande convulsão social Strindberg (que era considerado misógino) dramatizou, enleada na libertação da mulher, a luta de classes e do poder das pessoas sobre as outras.

Júlia é uma jovem, filha de um conde, dono de um hotel. Na noite de S. João, em vez de acompanhar o pai, optou por ficar no hotel onde decidiu seduzir João, o chefe dos empregados, perante a sua noiva Cristina, a cozinheira. Seduziu-o numa fórmula perigosa em que mistura a sensualidade com o poder que sobre ele exerce, levando-o a uma espiral de dúvida entre o ser fruto de desejo ou um joguete para diversão da patroa. Cristina sente-se afastada, mas nunca perde o seu estatuto de pessoa segura, que sabe muito bem o que quer e qual o seu lugar.
O que começa por ser um flirt inconsequente de uma menina mimada, prolonga-se durante a noite, leva a uma relação sexual e acaba por se desviar por caminhos obscuros e encaminhando-se para uma tragédia quando a madrugada chega.
Isto na pena de Strindberg, mas é aqui que entra Tiago Rodrigues e resolve dar uma outra oportunidade à história.
Um Outro Fim Para A Menina Júlia inicia-se trinta anos depois, com Júlia (Paula Mora) e João (Manuel Coelho), donos do Pequeno Hotel do Lago, que nem é próximo de um lago, e para onde tinham ido, cumprindo os planos daquela noite (que afinal não foi fatídica) deixando tudo, Cristina (no presente Lúcia Maria) incluída, para trás.

O casal parece conformado a uma felicidade convencionada e vai desfolhando a sua vida desinteressante e monótona dirigindo-se à plateia, visitantes do hotel. São duas pessoas marcadas pelo tempo e pelas opções de vida, e onde se denota que o jogo de poder não se perdeu totalmente. Apenas envelheceu e desgastou-se.
Júlia, tenta camuflar o azedume que a domina por uma vida sem o esplendor que já usara e em que o sonho que ali a levara, tinha ficado também para trás encoberto por uma realidade enfadonha e monocromática em que continua a dar ordens ao João que placidamente finge acatar como parte de um papel predestinado.

A peça original desenrola-se num único ato, mas aqui Tiago Rodrigues divide-a magistralmente em três, sem marcação e no segundo, somos levados para trás no tempo, à peça de Strindberg.
Somos então apresentados ao princípio de tudo, a noite em que a sucessão de acontecimentos, conduziu Júlia (no passado Helena Caldeira) e João (no passado Vicente Wallenstein) a uma espiral de provocações e desafios consubstanciados na relação sexual. Já ultrapassada todas as regras e limites, o caos precipitou-se e a frágil estrutura social reinante desmoronou. Desta vez, não no suicídio da protagonista, mas antes à partida de Júlia e João para, com o dinheiro de Júlia, abrirem o seu hotel de sonho. Deste flashback, fica como que para uma memória futura, o desprezo votado a Cristina (Inês Dias).


No terceiro ato, as duas gerações partilham a cena, mantendo-se cada uma no seu tempo, mas atuando em cumplicidade e partilhando momentos entrando no tempo dos outros, como espíritos de outra era em que todos eram outras pessoas.
Tiago Rodrigues, faz com este momento uma catarse em que somos colocados como testemunhas perante o presente das personagens, confrontadas com o que as levou ali. As decisões, as precipitações, como tudo poderia ter sido de outra forma, ou como tudo foi e talvez como tinha que ser.

A Júlia jovem parece tentar perceber quem é aquela em que se tornou dali a trinta anos e a Júlia do presente revive naquela o seu futuro sonhado e esquecido.

Em momento nenhum neste confronto temporal é equacionada a morte de Júlia, porque isso é de uma outra peça, a de Strindberg. Tiago Rodrigues parece ter optado por dar uma oportunidade ao final feliz, que se vai tornando caprichosamente remoto, como se as segundas oportunidades fossem afinal uma ilusão.
E Cristina, esquecida ao longo da narrativa, quase rebaixada a um incidente de percurso, aparece no Pequeno Hotel do Lago, senhora de si, mas parada no tempo e traz o passado para o presente.
Todo ele, com os juízos do tempo e sem embelezamentos.

Um belo texto para uma ótima encenação de uma obra ambiciosa, (a mexer com Stridberg), que ameaçava tornar-se de leitura complexa, mas que Tiago Rodrigues escreveu e tratou com mestria, dando-lhe fluidez “ao correr da pena” e um ritmo perfeito.
Paula Mora está sublime, (já) uma senhora do Teatro, um saber estar a cada gesto, a cada trejeito, uma presença fortíssima; Manuel Coelho é um pilar e uma presença poderosa de uma forma gentil e sábia; Lúcia Maria é uma força viva, uma tempestade que acorda a falsa bonança reinante em cena; Vicente Wallenstein, que já é muito mais do que uma promessa com as jovens estagiárias Helena Caldeira e Inês Dias, são aquilo que nos faz ter a certeza que vai continuar a valer a pena ir ao teatro por muitos anos.
Ajuda-nos a manter viva e disponível a todos esta biblioteca.

De Tiago Rodrigues
Encenação, espaço cénico e figurinos Tiago Rodrigues
A partir de August Strindberg (tradução de Augusto Sobral) *
Com: Helena Caldeira, Inês Dias, Lúcia Maria, Manuel Coelho, Paula Mora e Vicente Wallenstein
Desenho de luz: João de Almeida
Assistência de encenação: Teresa Coutinho
Direção de cena Carlos Freitas
Produção TNDM II
* Neste espetáculo utilizam-se fragmentos da tradução de Menina Júlia, de Augusto Sobral, a partir do original de August Strindberg, que foi utilizada na última representação de Menina Júlia levada a cena no Teatro Nacional D. Maria II, em 2009, com encenação de Rui Mendes.
Jornalista, Diretor. Licenciado em Estudos Artísticos. Escreve poesia e conto, pinta com quase tudo e divaga sobre as artes. É um diletante irrecuperável.
