Uma Casa de Bonecas
Durante o mês de julho no Teatro da Trindade Inatel o encenador João de Brito leva ao palco da Sala Estúdio Uma Casa de Bonecas do norueguês Henrik Ibsen.
Et Dukkehjem (no original) é uma peça em 3 atos, publicado em 1879 com contornos do Realismo tanto na sua dramaturgia como em posteriores encenações. Um texto que causou desconforto na sociedade por retratar uma perspetiva do feminino e da posição da mulher-dona-de-casa sujeita às regras do homem, seu marido. Mulheres que eram tratadas como Bonecas, primeiro pelos pais, depois pelos maridos… até que Nora (interpretada por Madalena Almeida) toma posição e decide quebrar as regras do jogo – Ibsen decide dar-lhe voz forte e eco aos desejos e ambições, tornando-a um símbolo de mulher independente e emancipada. (Relembro que a Madame Bovary fora publicada em 1856).
Nora Helmer é uma típica housewife muito cheia de vida e do que parece ser superficialidade, nela não se encontram rasgos profundamente filosóficos ou de grandes contradições é quase uma criança irrequieta – acentuada pela forma condescendente como o marido, Torvald Helmer (José Mata), a trata – minha pequena Cotovia – algo que ela aceita e age de forma infantil, sem maiores responsabilidades, preocupada apenas em satisfazer pequenos prazeres do dia a dia, como comprar presentes e preparar a festa de Natal.
Fosse apenas esta superficialidade a essência da personalidade da Senhora Helmer, tal como acontece com as restantes personagens – traços meramente gerais, pouco contraditórios, pouco profundos, adequando-se ao estereótipo da sua posição social – e este texto, Uma Casa de Bonecas, seria mais um manuscrito a ser trabalhado por Realistas e Naturalistas, mas sem grande impacto no Teatro.
A diferença está, e é nela que João de Brites foca a sua encenação, nas camadas de Nora, não apenas simples e mulher leal ao marido enquanto se preocupa com o quotidiano, mas também a pessoa, que numa situação de crise arregaça as mangas e faz por resolver os problemas que a vida traz.
A família Helmer passara por alguns constrangimentos económicos e Nora ajudou o marido a superar a situação fazendo pequenos trabalhos artesanais, entretanto Helmer adoecera, obrigando-os a passar um ano na Itália, em tratamento. Também a personagem de Madalena arranja solução para lidar com a imprevista despesa: pedira um empréstimo a Nils Krogstad (Luís Lobão), um agiota e funcionário do banco a que pertence Torvard. Ao pedir este empréstimo Nora falsifica uma assinatura, um crime que desonraria tanto a ela como ao marido, que no momento em que a peça decorre está em vias de ser promovido e de despedir Krogstad por este ter cometido o mesmo crime no passado.
Com total desconhecimento de Torvald Helmer a sua mulher contrai a divida, desculpando-se com dinheiros e apoios do seu falecido pai e seguem para Itália. Após este período de descanso-tratamento voltam à sua terra natal e à normalidade do quotidiano, todos exceto Nora, que tem um segredo em mãos e uma dívida para pagar, vai fazendo-o com alguns trabalhos e poupanças. O enredo complica-se quando Krogstad se apercebe que uma das assinaturas da nota de dívida é falsa e que iria ser despedido. Rapidamente assistimos a uma pressão e chantagem deste agiota com a nossa personagem principal.
O enredo ganha muito mais interesse quando Torvald descobre o que se passa, e da atitude totalmente desproporcional que ele toma, culpando a mulher por tudo e querendo ver-se livre dela para de alguma forma se tentar proteger. No momento seguinte temos uma reviravolta – com uma mudança de intenções muito bem gerida pelo já experiente ator José Mata – “A dívida fica sem efeito, Nora estás perdoada!”
Depois de humilhada de tal forma pelo marido, Nora – e é neste momento que o texto se torna muito interessante – toma ação e é ela a deixar o marido com um discurso extremamente progressista para a época em que foi escrito.
Este é o enredo principal, e de certa forma o mais importante, pelo menos para os dias que correm, existem outras ações e personagens que adensam um pouco a trama, mas como a Professora e crítica de teatro Eugénia Vasques muitas vezes diz: Uma encenação é uma leitura do mundo, e é esta a leitura que João de Brito faz, e quer passar. Não complica muito, nem foge do texto, recorta algumas partes enfatiza outras, no fim vemos um espetáculo que gira em torno da interessante performance de Madalena Almeida, que o conduz como se fosse o centro do mundo – e é, pelo menos para esta encenação.
Escolher um clássico é sempre um trabalho muito mais fácil, principalmente se não o quisermos contrariar, é sempre um ponto seguro, e quem o vai ver sabe sempre que sairá do Teatro com sentimento algo completo, pois já lá está a estrutura que funciona. A questão que se coloca é: Que clássico? Para dizer o quê? A resposta que nos é dada por este espetáculo é a do reforço da independência e emancipação da mulher na sociedade, defesa de direitos tão básicos como igualdade entre seres humanos.
Este texto, hoje, continua a fazer sentido, continua a gritar no século XXI que já não estamos no século XIX, em que atitudes machistas e patriarcais já estão ultrapassadas, e este espetáculo com esta encenação quer-nos relembrar disso.
Acima salientei o facto do livro de Gustave Flaubert ter sido publicado 23 anos antes, a ideia da mulher moderna já estava a ser pensada e reivindicada, já era necessária a sua libertação, Ibsen acrescenta-nos este texto, que também ele esteve envolvido em polémica e foi vitima de tentativas de adaptação para públicos mais conservadores.
O teatro é, entre tudo o resto que pode ser, uma plataforma de comunicação e movido, entre muitas outras coisas, por ideias políticas, quem assistir a este espetáculo percebe que no fim não são os grandes ideais e as grandes revoluções megalómanas que podem mudar tudo, se nada for mudado dentro das nossas casas, com os nossos pares. A personagem de Madalena diz-nos que temos que mudar as pequenas coisas e a maneira como nos relacionamos com os nossos, com quem está do nosso lado…
Ainda bem que este espetáculo existe.
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Lisboa, 1999. Tenta encontrar respostas através do Palco. Vê o teatro como um aliado da história e filosofia para resolver (ou não) os problemas do mundo.