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23 de Julho, 2021
Uma Casa de Bonecas
Durante o mês de julho no Teatro da Trindade Inatel o encenador João de Brito leva ao palco da Sala Estúdio Uma Casa de Bonecas do norueguês Henrik Ibsen.
Et Dukkehjem (no original) é uma peça em 3 atos, publicado em 1879 com contornos do Realismo tanto na sua dramaturgia como em posteriores encenações. Um texto que causou desconforto na sociedade por retratar uma perspetiva do feminino e da posição da mulher-dona-de-casa sujeita às regras do homem, seu marido. Mulheres que eram tratadas como Bonecas, primeiro pelos pais, depois pelos maridos… até que Nora (interpretada por Madalena Almeida) toma posição e decide quebrar as regras do jogo – Ibsen decide dar-lhe voz forte e eco aos desejos e ambições, tornando-a um símbolo de mulher independente e emancipada. (Relembro que a Madame Bovary fora publicada em 1856).
Nora Helmer é uma típica housewife muito cheia de vida e do que parece ser superficialidade, nela não se encontram rasgos profundamente filosóficos ou de grandes contradições é quase uma criança irrequieta – acentuada pela forma condescendente como o marido, Torvald Helmer (José Mata), a trata – minha pequena Cotovia – algo que ela aceita e age de forma infantil, sem maiores responsabilidades, preocupada apenas em satisfazer pequenos prazeres do dia a dia, como comprar presentes e preparar a festa de Natal.

Helena, doméstica dos Helmer (Inês Ferreira da Silva) em Uma casa de Bonecas, de João de Brito
Fosse apenas esta superficialidade a essência da personalidade da Senhora Helmer, tal como acontece com as restantes personagens – traços meramente gerais, pouco contraditórios, pouco profundos, adequando-se ao estereótipo da sua posição social – e este texto, Uma Casa de Bonecas, seria mais um manuscrito a ser trabalhado por Realistas e Naturalistas, mas sem grande impacto no Teatro.
A diferença está, e é nela que João de Brites foca a sua encenação, nas camadas de Nora, não apenas simples e mulher leal ao marido enquanto se preocupa com o quotidiano, mas também a pessoa, que numa situação de crise arregaça as mangas e faz por resolver os problemas que a vida traz.
A família Helmer passara por alguns constrangimentos económicos e Nora ajudou o marido a superar a situação fazendo pequenos trabalhos artesanais, entretanto Helmer adoecera, obrigando-os a passar um ano na Itália, em tratamento. Também a personagem de Madalena arranja solução para lidar com a imprevista despesa: pedira um empréstimo a Nils Krogstad (Luís Lobão), um agiota e funcionário do banco a que pertence Torvard. Ao pedir este empréstimo Nora falsifica uma assinatura, um crime que desonraria tanto a ela como ao marido, que no momento em que a peça decorre está em vias de ser promovido e de despedir Krogstad por este ter cometido o mesmo crime no passado.

Senhora Linde (Diana Nicolau) e Nils Krogstad (Luís Lobão) em Uma casa de Bonecas, de João de Brito
Com total desconhecimento de Torvald Helmer a sua mulher contrai a divida, desculpando-se com dinheiros e apoios do seu falecido pai e seguem para Itália. Após este período de descanso-tratamento voltam à sua terra natal e à normalidade do quotidiano, todos exceto Nora, que tem um segredo em mãos e uma dívida para pagar, vai fazendo-o com alguns trabalhos e poupanças. O enredo complica-se quando Krogstad se apercebe que uma das assinaturas da nota de dívida é falsa e que iria ser despedido. Rapidamente assistimos a uma pressão e chantagem deste agiota com a nossa personagem principal.
O enredo ganha muito mais interesse quando Torvald descobre o que se passa, e da atitude totalmente desproporcional que ele toma, culpando a mulher por tudo e querendo ver-se livre dela para de alguma forma se tentar proteger. No momento seguinte temos uma reviravolta – com uma mudança de intenções muito bem gerida pelo já experiente ator José Mata – “A dívida fica sem efeito, Nora estás perdoada!”
Depois de humilhada de tal forma pelo marido, Nora – e é neste momento que o texto se torna muito interessante – toma ação e é ela a deixar o marido com um discurso extremamente progressista para a época em que foi escrito.
Este é o enredo principal, e de certa forma o mais importante, pelo menos para os dias que correm, existem outras ações e personagens que adensam um pouco a trama, mas como a Professora e crítica de teatro Eugénia Vasques muitas vezes diz: Uma encenação é uma leitura do mundo, e é esta a leitura que João de Brito faz, e quer passar. Não complica muito, nem foge do texto, recorta algumas partes enfatiza outras, no fim vemos um espetáculo que gira em torno da interessante performance de Madalena Almeida, que o conduz como se fosse o centro do mundo – e é, pelo menos para esta encenação.
Escolher um clássico é sempre um trabalho muito mais fácil, principalmente se não o quisermos contrariar, é sempre um ponto seguro, e quem o vai ver sabe sempre que sairá do Teatro com sentimento algo completo, pois já lá está a estrutura que funciona. A questão que se coloca é: Que clássico? Para dizer o quê? A resposta que nos é dada por este espetáculo é a do reforço da independência e emancipação da mulher na sociedade, defesa de direitos tão básicos como igualdade entre seres humanos.

Nora Helmer (Madalena Almeida) em Uma casa de Bonecas, de João de Brito
Este texto, hoje, continua a fazer sentido, continua a gritar no século XXI que já não estamos no século XIX, em que atitudes machistas e patriarcais já estão ultrapassadas, e este espetáculo com esta encenação quer-nos relembrar disso.
Acima salientei o facto do livro de Gustave Flaubert ter sido publicado 23 anos antes, a ideia da mulher moderna já estava a ser pensada e reivindicada, já era necessária a sua libertação, Ibsen acrescenta-nos este texto, que também ele esteve envolvido em polémica e foi vitima de tentativas de adaptação para públicos mais conservadores.
O teatro é, entre tudo o resto que pode ser, uma plataforma de comunicação e movido, entre muitas outras coisas, por ideias políticas, quem assistir a este espetáculo percebe que no fim não são os grandes ideais e as grandes revoluções megalómanas que podem mudar tudo, se nada for mudado dentro das nossas casas, com os nossos pares. A personagem de Madalena diz-nos que temos que mudar as pequenas coisas e a maneira como nos relacionamos com os nossos, com quem está do nosso lado…
Ainda bem que este espetáculo existe.
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Lisboa, 1999. Tenta encontrar respostas através do Palco. Vê o teatro como um aliado da história e filosofia para resolver (ou não) os problemas do mundo.