
Romain Lecornu, Depois de nós, o dilúvio0 (0)
11 de Maio, 2021
Romain Lecornu
O universo de Romain Lecornu inspira-se nos seus territórios circundantes, bem como nas profundezas da Terra. O artista inspira-se tanto no que está diante da sua porta como nos vestígios enterrados nas paisagens em redor, nos lugares malditos, nas entre-periferias, ou no no-man’s-place da cidade.
Em Romainville, o ambiente é caracterizado pela omnipresença mística de Cheetos e latas de Redbull. Assim as obras dão à luz casulos de alumínio e murmúrios de Cheetos a dançar num céu tempestuoso.

Romain Lecornu, Perruches, 2021 ©
Tal como Robinson numa ilha deserta após o dilúvio, o artista assume-se como homo sapiens-sapiens, e leva-nos através dos estratos e épocas do nosso planeta. Percorre-o, olha para ele, explora-o, mergulha as mãos na lama em busca de tesouros antediluvianos. Utiliza os seus olhos de caçador-colector e escava todo o tipo de materiais. Ele faz emergir animais secos, fossilizados, sapos, ratos, cobras, gatos, por vezes em partes do esqueleto ou peles.
Quanto aos humanos, perdemos-lhes o rasto, sem ossos ou ADN, apenas os restos de t-shirts ou capuzes velhos que descoloriram superfície da terra. Encontrando o seu lugar na mesma prateleira, alguns destes achados são também ofertas, enferrujadas, degradadas, desintegradas; quer seja de anteontem ou há sete mil anos, cada elemento já passou pela porta de outro espaço-tempo. Todos eles chegam ao local com as suas marcas e cicatrizes e são galvanizados pela sua nova história comum após a passagem do artista.
Romain envia mensagens atirando latas para o mar e começa a construir novos altares como se a nova era precisasse de novas crenças. As nossas velhas camisolas queimadas numa fogueira são encontradas penduradas na parede como se em memória de um antropoceno caído.
A presença de cada objecto não é aleatória, mas também não depende de um cenário. Romain Lecornu cria ambiguidade ao misturar temporalidades dentro da mesma peça. Passado, presente, futuro: por vezes assistimos a mutações e metamorfoses. Algumas peças de fruta ainda estão em decomposição, algumas velas estão a arder, derretendo e criando novas peles.
Como as ametistas podem proteger-se sob a matriz, o artista encasula as suas construções sob uma neve artificial. As gárgulas moldadas em chumbo tornam-se guardiãs dispersas do espaço. As árvores mortas crescem em caixas de cerveja, como renascimentos radioativos após a catástrofe. Há, algures, algo que nos mantém no limite. Uma magia afiada.

Romain Lecornu, Dead or alive, 2020 ©
O trabalho do artista remete-nos às nossas origens, às pegadas daqueles que pisaram este solo antes de nós, que o habitaram antes de nós, que o destruíram antes de nós. Ele arranca as crostas e pode muito bem arranhar até ao núcleo. Ontem, hoje, amanhã, devemos sentir-nos transportados à vista destas peças que atravessam todos os estratos sob os nossos pés, desde o Jurássico até ao bebé pós-apocalipse.
Sobrevoamos todos os tempos e todos os estados, do semi-morto ao quase-morto; o artista envia-nos de volta ao Depois, à Morte, ao Amanhã, mas deixa sempre uma porta aberta, uma luz de néon acesa para não termos medo. Isto assume todo o seu significado quando, por detrás do vidro sujo, as luzes de néon se decompõem “SERÁ MELHOR DEPOIS DE AMANHÔ. Esta luz, como um convite para o além, uma mão estendida para depois de amanhã. Porque lhe dizemos que não vai melhorar esta noite ou amanhã. Depois de amanhã, depois de amanhã, o dia que não vai acontecer agora ou amanhã ou nunca. Depois de amanhã, deixará de chover. Será melhor depois de amanhã, quando nos recuperarmos da noite passada.
Mantenham os olhos bem abertos, o artista não deixa de nos oferecer pistas psicadélicas, agáricas ou cetamínicas voadoras num prato. São parte integrante das obras e são um convite a perder o controlo, a reinvestir o homo-erectus que já não somos e a surfar no fio tenso da poesia, andando sobre o xtc. Como depois de uma má trip de LSD, as maçãs de setembro transformam-se em monstros de olhos cor-de-rosa. Bem-vindo. O enfeitede Natal partido, afiado como uma pedra, ecoa as asas afiadas da borboleta por toda a sala. Agora há os nossos invernos tristes, os seus Natais espúrios e os espinhos que abandonaram a árvore.
O calor da Primavera e o cheiro de flores frescas, a abóbora do Dia das Bruxas que apodreceu na janela, as velas que arruinaram o bolo, os sapos esmagados no alcatrão quente e o bicho-papão no armário. Todas as estações do ano combinadas. Levados pelo baço da neve quase carbónica, em frente das salas, sentimos o vento que arrancou as folhas das palmeiras, a areia que cobre os nossos pés, sentimos o iodo e a neve, vemos a névoa e por detrás dela, as árvores carbonizadas, o casulo aberto no seu ramo, caverna escura e estalactites, pequeno ninho de dragões, little dragon nest, joias de pedra, lantejoulas falsas, moscas-ágaricas, flores frescas, dias tristes, animal morto. As nossas pupilas azuis dilatadas reflectem-se nas nossas retinas inconsoláveis.
Por isso, não se preocupem, porque já acabou e será melhor depois de amanhã.
Depois de amanhã, deixará de chover.
Será melhor depois de amanhã, quando tivermos recuperado de ontem à noite.
Depois de amanhã, primavera.
Depois de nós,
o dilúvio.

Romain Lecornu, Last dive, 2020 ©

Romain Lecornu, Teenage Fantasy, 2021 ©

Romain Lecornu, My little dragon nest, 2021 ©

Romain Lecornu, Unknown Death, Walking on xtc, 2020 ©

Romain Lecornu, C’est déjà fini (détail), 2021 ©

Romain Lecornu, C’est déjà fini 1 (détail), 2021 ©

Romain Lecornu, Amour (détail), 2021 ©

Romain Lecornu, Insomnia 2, 2020 ©

Romain Lecornu, Alpha 7, 2020 ©

Romain Lecornu, CA IRA MIEUX APRES DEMAIN :), 2019 ©

Romain Lecornu, D O O M 3, 2020 ©
Este artigo foi traduzido do original em francês por Redação Artes & contextos
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