A figura humana, real ou surrealizada, nas mais variadas situações e perspetivas, enche as paredes brancas do Mac, em cenários de cor e movimento, registados na tela por Martinho Dias. Cada tela conta uma história, uma crónica, faz um retrato e quase sempre demonstra um ponto de vista.
Natural da Trofa, Distrito do Porto, onde vive e tem o atelier – localização em que a principal vantagem que afirma ter é espaço – não só físico – o artista, que em 2009 deixou o ensino para se dedicar em exclusivo à pintura, conta dezenas de exposições em Portugal e no estrangeiro e tem vindo a ser reconhecido através de prémios e distinções diversas.
Define-se como alguém reservado que gosta de realizar coisas que, mesmo podendo parecer inúteis, possam ter alguma utilidade para os outros. É simpático e tem sentido de humor; gosta de cumprir objetivos, não promessas. Nas suas palavras “não suporta o espírito de rebanho, o excesso de deferência, abusos de poder e a teimosia crescente em colocar tudo e todos à mercê de inocentes gráficos, números, tabelas, estatísticas, estudos de mercado, etc, etc, tudo isto, apesar da concordância geral de que o sucesso está na aposta e respeito pelas qualidades de cada Ser individual”.
E tudo isso deixa claro nas suas obras.
Artes & contextos – O que o inspira?
Martinho Dias – Estar bem comigo mesmo e com os que me são mais próximos. Depois disso, a inspiração surge em qualquer lugar e circunstância, sem a procurar. Em estado bruto, não falta inspiração no nosso presente e no nosso passado, e também no nosso futuro. Poder reconfigurar tudo isto e criar algo que interfira no outro, é inspirador.
A sua pintura é gestual e vigorosa, no entanto, cada obra é estudada e planeada antes da passagem à tela, onde é derramada de uma forma enérgica e definitiva, através de uma paleta riquíssima em que por vezes a cor em si mesma é mais importante do que a sua “legitimidade” e onde o fundo cumpre a função de equilíbrio cromático. A comunhão da cor base em pequenas cadenciações entre os personagens nalgumas telas, transforma o todo num só e cria uma mancha tendencialmente homogénea denunciando cumplicidade ou um processo de anulação do individual.
Vemos emoção e sentimento, afirmações e críticas ou constatação da disrupção social numa seleção de cenas aparentemente arbitrárias, fotografadas pelos olhos do artista e revelada pelas suas tintas em partilhas improváveis de argumento.
Ao contrário do que gostava, diz-nos, não tem muito tempo para visitas a museus e exposições, mas também admite que não tem tido conhecimento de muitas coisas que verdadeiramente o cativem. “Os padrões de “qualidade” daquilo que deve ser mostrado parece estarem a repetir-se há demasiado tempo”, afirma.
Enquadrados pela tela que não basta, mas que guarda tudo o que importa, estão retratados momentos onde parece estar tudo o que o mundo tem a dizer dali; outros que são apenas pormenores de uma cena maior, muito maior, da qual ele escolheu mostrar aquilo que diz por tudo o resto.
A&c – Em relação a cada obra, qual é o momento em que sente que “cumpriu”, quando a termina ou quando a expõe?
M.D. – Os dois momentos são importantes. Quando dou a obra por terminada, – e como não quero vê-la de castigo contra a parede – procuro colocá-la em relação com os outros, ver qual é o seu poder de sedução, como se afirma, (ou não), noutros contextos fora do atelier.
É um pouco como fazer um bolo e partilhá-lo com alguém.
As manchas de cor que compõem as feições, os corpos e os objetos denunciam ilusórios movimentos impertinentes de aglutinação e cisão que se decompõem numa ordem caótica e se restauram com o sentido todo que um ponto pode ter.
Escolhe o enquadramento sem desperdícios, e as personagens ali retratadas são tanto mais frenéticas quanto mais nos aproximamos da tela, tanto mais individuais quanto afinal deslocadas, como um todo coerente, composto de anomalias.
As personagens escondem-se ou revelam-se umas por detrás das outras, os objetos transfiguram-se e mudam de lugar, através de movimentos que acontecem quando não estamos a olhar, (e como Schrödinger tinha razão) das manchas de cor vivazes e impressionistas.
Martinho Dias retrata cenas reais, oníricas, imaginadas e surreais e em algumas das obras todas estes modelos se misturam, se confundem.
São crónicas, retratos, relatos e até anedotas, em que sobressai um muito saudável brincar com coisas sérias. Ele é arauto e anjo revelador, crítico mordaz, castigador, provocador irónico e cínico.
A&c – A maioria das suas obras são críticas ou opiniões. Deseja que entendam a sua mensagem, ou agrada-lhe que eventualmente cada pessoa tenha a sua interpretação?
M.D. – Não se tratará bem de “mensagem”, mas antes de uma ideia ou ponto de vista que gostaria que o espectador a conseguisse ler. Depois, cada um poderá partilhar ou não dessa visão e acrescentar algo – isso é positivo. Cada um é livre de fazer a sua própria interpretação, mas o meu objectivo é que cada pintura possa ser legível – não de uma forma linear e hermética, naturalmente.
A&c – Já realizou trabalhos a partir de textos de músicos… e a partir de uma música, já fez?
M.D. – Sim, é verdade, já me coloquei no papel de intérprete a pintar e a procurar interpretar pinturas que músicos/ compositores (Victorino D’Almeida, Eurico Carrapatoso, Trovesi, Kepa Junkera, entre outros), imaginaram e descreveram por palavras – isto para o meu projeto “Pinturas Escritas”.
Mas ainda não fiz nenhum trabalho a partir de uma música. Se o fizer, procurarei alguma correspondência entre as formas visuais e as formas sonoras e o modo como estas dão vida à composição e, sobretudo, à ideia base do compositor acrescentando depois a visão do pintor.
A&c – Quais foram os primeiros pintores que na sua infância/juventude realmente o impressionaram.
M.D. – Júlio Pomar, seguido de David Salle, Joan Mitchell, Sigmar Polke e Helnwein.
Paroxetina, o nome que o artista deu a esta mostra, remete-nos para um composto farmacológico antidepressivo e sim, esta exposição de beleza pictórica e cromática superiores, de coerência formal e técnica excecionais, pode muito bem simular os seus efeitos e sem contraindicações.
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A exposição estará patente no MAC – Movimento Arte Contemporânea até ao dia 16 de dezembro
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Jornalista, Diretor. Licenciado em Estudos Artísticos. Escreve poesia e conto, pinta com quase tudo e divaga sobre as artes. É um diletante irrecuperável.