
Um Dia uma Vida – de Ruy Belo0 (0)
28 de Fevereiro, 2018
Marta Dias “conheceu” Ruy Belo na faculdade e a obra do poeta seduziu-a profundamente. A ponto de se questionar, “como não é Ruy Belo mais lido, mais estudado, mais consumido?”
Daquilo que de si depender, não continuará assim, mas para além das palavras do poeta há o que depois delas fica ou por elas é sussurrado, um homem empenhado e inquieto. Empenhado para com a sociedade: foi professor, ensaísta, tradutor, (traduziu entre outros, Antoine de Saint-Exupéry, Montesquieu, Jorge Luís Borges e Federico García Lorca) investigador, editor e até colaborou fugazmente como Diretor Adjunto do Ministério da Educação de então.
Na sua vida a sua vida tragicamente curta (1933-1978), foi um homem inquieto com o ser humano, com a existência e com a vida em si, com o tempo e o seu curso interminável e cíclico, com a solidão e o fim. Preocupava-se também com o país, com o seu destino, com o seu futuro, com o seu tempo.
Depois do sucesso de Toda a Cidade Ardia, a encenadora embrenhou-se no poema Um dia, uma vida – “um poema que me pareceu ter como premissa uma ideia simples e pessoal” – diz-nos, e não mais saiu.
Decidiu então partilhá-lo, adaptado à sua própria linguagem, a cenografia.
Durante três meses entregou-se ao texto a que acrescentou outros do autor e alguns da sua autoria. Teve o total e generoso apoio de Teresa Belo e de toda a equipa diariamente na construção da obra que trabalhou como se uma cantata barroca – nas suas palavras – estivesse a compor.

Um Dia Uma Vida – de Ruy Belo. Ana Brandão, Madalena Almeida, Miguel Lopes Rodrigues e Rui Melo ©Teatro Aberto
A peça desenrola-se ao longo de vinte e quatro horas, um dia, um ciclo completo, poderia ser uma vida, iniciando-se de noite numa qualquer praia, num espaço e num tempo de interiorização, com quatro pessoas que estão sós.
São quatro personagens que lhe surgiram espontaneamente com a composição do texto, que lhe foram “impostas” pela necessidade de dar forma aos sentimentos e uma fonte às palavras. Palavras que surgem como monólogos, confissões, devaneios para ninguém e para todos os que as ouvem na plateia.
Há uma cumplicidade insinuada entre as vozes e as pessoas vulgares que as dizem ou cantam como se de um coro se tratasse, um coro a vozes soltas, de solos, e o público que as testemunha.
As personagens falam para si e para o público, da boca de cena, vagueando pela praia ou no pontão de madeira, mas nunca em diálogo. Saem da sombra da noite ou do seu recanto quando o dia é luminoso, com as palavras do poema, para se dirigirem ao infinito, de onde o público os observa. Por vezes as vozes misturam-se ou complementam-se, as frases entrecortam-se ou sobrepõem-se, mas cada elemento daquele coro, “canta” como se estivesse só.
Um casal, que são uma médica, pessoa prática e pragmática e um pescador, “personagem edílica” e algo romântica que vive ao ritmo da natureza e dos seus ciclos, como os da vida. Acrescenta-se-lhes um sonoplasta, que atenta a tudo, a todos os detalhes e que tudo parece querer absorver, entusiasta com a natureza e com a passagem do tempo; e finalmente uma jovem youtuber, representando o desapego com o real de alguma juventude atual, aparentemente entusiasta com tudo, mas muito fechada sobre si a gerir a angustia provocada pela inquietude e volatilidade de um mundo filtrado por gadgets e mediado pela virtualidade de relações efémeras e cibernéticas.

Um Dia Uma Vida – de Ruy Belo. Ana Brandão, Madalena Almeida e Rui Melo ©Teatro Aberto
Desde noite cerrada, ao nascer do dia, que com o sol a continuar o seu curso até à noite seguinte e com o mar como fundo em vídeo, Ana Brandão, Madalena Almeida, Miguel Lopes Rodrigues e Rui Melo, dão voz a Ruy Belo e a Marta Dias que confessa ter a poesia no seu ADN e que mais do que dizê-lo, o interpreta, dando-lhe corpos e faces de pessoas vulgares. Como Ruy Belo.
Ajuda-nos a manter viva e disponível a todos esta biblioteca.

Encenação e Dramaturgia de Marta Dias;
Cenário e figurino de Marisa Fernandes;
Vídeo de Eduardo Breda e
Desenho de Luz de Marta Dias e Alberto Carvalho.
Na Sala Vermelha do Teatro Aberto
Jornalista, Diretor. Licenciado em Estudos Artísticos. Escreve poesia e conto, pinta com quase tudo e divaga sobre as artes. É um diletante irrecuperável.