Juan Sanches pinta o seu dia a dia, pinta aquilo que recebe e sobra no seu interior, aquilo que precisa de ser exorcizado. Todo o artista quando pinta ou escreve, transporta para o suporte que escolheu, pela linguagem que melhor por si fala, o que traz fechado, e que de outra forma não conseguiria “dizer”. E precisa de o fazer.
Ates & contextos – Como é que começaste a pintar?
Juan Sanchez – Comecei com 8 anos. Tinha um mestre na escola, e com ele ficávamos, no Inverno. Sou de uma aldeia muito pequena, atualmente quase desabitada. Via-o pintar, e também quis. Comprei um curso por correspondência, do CEAC, e o primeiro quadro que tentei copiar foram os “Lírios” de Van Gogh. Já nem me lembro de como ficou! Já a exercer medicina, fui para a Faculdade de Belas Artes, onde estive 5 anos, em Salamanca. Uns anos mais tarde, fiz o exame para Psiquiatria de infância e adolescência, e vim para Lisboa. Fiquei absolutamente fascinado! Não podia ter escolhido outra cidade! Na altura (há 23 anos) estava muito decadente… Mas o rio, e esta luz… incrível!
Aquilo que é o Juan, a pessoa, ajuda a entender o intrínseco do Juan, o pintor. Por isso, tentámos escavar quem é Juan Sanchez, o homem que veio de uma pequena aldeia espanhola, e se tornou um homem destes Mundos.
A&c – Ajuda-nos a saber um pouco de ti em pessoa. Que música ouves?
J.S. – Oiço de tudo! Clássica, Flamenco, Jazz e MUSE. Já os vi em Lisboa 3 ou 4 vezes! Também já conheci muitos artistas de Jazz e levei-os à minha aldeia para tocar.
A&c – E o que lês?
J.S. – Leio todos os dias, sobretudo todas as noites. Gosto muito de literatura histórica. É um escape acompanhando a pintura.
A&c – Acreditas na sorte?
J.S. – Sim! O Euro milhões anda por aí… (Risos) Sim! A sorte também se procura. Bem, sempre tive sorte na vida. Sou um sortudo! Vivo bem, tenho muita sorte. Espero não ter enchido isto tudo do meu mundo… falo muito! Sabem, tenho um carinho muito grande pelas minhas raízes, claro! A aldeia está muito envelhecida, estão sozinhos, é muito depressivo… é dramático… a depopulação. Fico triste. Fico com saudade… com preocupação.
Juan é pedopsiquiatra de profissão. Acompanha crianças e jovens com problemas diversos, pessoais e familiares e das suas conversas com os pacientes, tenta desvendar a origem ou o foco desses problemas. Tenta encontrar, por detrás das palavras que jorram, a chave que revelará o seu real conteúdo, muitas vezes calado, abafado por realidades alternativas com que as crianças preenchem os espaços escuros das suas crónicas diárias.
Mas Juan, não pode partilhar com ninguém aquelas conversas que, muitas vezes o angustiam, o sobrecarregam. Então pinta. Pinta todos os dias, como nos disse na breve conversa que tivemos, rodeados pelos seus quadros expostos nas paredes do MAC. “Pinto todas as tardes. Todos os dias do ano. Fim de ano, bem… (Risos). No meu atelier, meto música, e lá estou durante 3 horas…”
“É aqui (aponta para os quadros) que ponho aquilo que vejo. Lidar com os problemas daquelas crianças… é preciso libertar as frustrações. Libertar o que tens dentro e fora, descarregar a ansiedade e libertar a mente.”
Pede às crianças que desenhem, a linguagem que melhor entende e que se especializou em “traduzir”. Segundo Juan, [as crianças] não te dizem os problemas que têm em casa, mas desenham-nos. Tal como os pássaros no último quadro de Van Gogh…
A&c – Algumas vezes associaste a tua arte a algum trabalho com as crianças?
J.S. – O desenho é uma ajuda na comunicação e relação com as crianças. As crianças colocam as suas preocupações nos desenhos. Nós estamos atentos a estas. O desenho aplica-se nas avaliações psicológicas e processos terapêuticos. Fiz intervenções em grupo com adolescentes com problemas do comportamento com técnicas pictóricas (grafitis, dripping…) no Hospital do Barreiro. No Hospital Dona Estefânia com adolescentes diabéticos insulinodependentes e no hospital de dia de psiquiatria do Hospital Santa Maria. As terapias expressivas facilitam a comunicação e relação destes jovens onde a palavra não está disponível para a expressão de afetos e emoções.
Nesta exposição que titulou como Mundos, traz-nos isto tudo.
Todos estes mundos aqui expostos são uma profusão gestualista de manchas de cor, onde – com algum destaque para os azuis, os amarelos, e os vermelhos, as primárias, as essênciais, de onde germina tudo o resto que a luz desperta – o artista constrói e reconstrói o seu universo interior.
A&c – Achas que a cor que enche o mundo das crianças influencia a cor das tuas telas?
J.S. – As crianças refletem aspetos afetivos e emocionais através da cor. Então tem reflexo nas minhas obras, mas sobretudo a cor das minhas obras é influenciada pelas sensações da natureza, estações do ano, passeios no monte, o mar, o rio…
A&c – Mundos, porquê?
J.S. – Bem, por isto tudo. A minha vida é um paradoxo, sabes… A minha aldeia está a ficar deserta, só temos 2 crianças… e depois há aí os outros mundos. A Síria, a Palestina, o Mediterrâneo, uma fronteira mortífera… Precisamos de gente! Gente de outros mundos! Precisamos de estar abertos! Lisboa, sempre o foi, não pode deixar de ser.
A&c – Como é que a cidade de Lisboa se tornou uma inspiração para a tua obra?
J.S. – Eu vivo em frente ao mar, na linha do rio. Tenho ali todas as mudanças do rio, o seu reflexo. Mudei as cores [das obras] desde que vim para Lisboa. É automático. Interiorizo esta sensação de viver junto ao rio… jogo com as cores da tela, com as manchas, jogo com o que a tela me diz… é divertido! Mesmo que estejas a pintar coisas sérias. Bem, temos de falar das coisas sérias do mundo, do que se passa. Não podes estar indiferente! Pintar paisagens só para pendurar numa parede e ficar bonito… não faço isso! De todo!
A obra de Juan Sanchez atingiu há muito a maturidade, aqui exposta na plasticidade desconstrutiva de formas supostas ou imaginadas num abstracionismo vigoroso a que facilmente se chamaria expressionista. Porque sim, porque há em toda a sua obra um gestualismo expressionista que é a sua força motriz, mas que é também, atualmente uma etiqueta fácil para obviar caminho a uma observação mais honesta de uma multiplicidade de códigos plásticos linguísticos.
As etiquetas são tão dispensáveis quanto uma sua renovação. Nenhum artista atual se sente muito à vontade a enquadrar-se numa delas, porque se calhar, nascidas do crepúsculo oitocentista do academismo, esgotaram-se.
Podemos chamar ao código de Juan fauvismo abstrato ou futurismo expressionista? Freudianismo, talvez?
Por detrás do gesto há uma intenção que pode ou não ser consciente ou intencional no sentido estético, mas que nas telas de Juan se transforma numa melodia harmónica de tons rasgados sobre texturas acidentais tão necessárias ao código, quanto cada tom, de cada cor, em cada mancha; sobre a tela casta ou texturada.
A&c – Por detrás do abstracionismo das tuas obras há algum processo estrutural ou é tudo arbitrário?
J.S. – Parto da tela em branco e impregno com espaços de cores limitados e organizados. Há um processo estruturado quase clássico de composição respeitando diagonais, verticais, horizontais e aspetos arbitrários, manchas de tinta sobre esta estruturação para facilitar a imaginação e estabelecer um diálogo entre as manchas e as sensações e emoções.
Nas telas de Juan, vemos em cada mancha de cor signos se calhar indecifráveis, símbolos compostos por sinais espontaneamente arrancados a momentos irrepetíveis, mas reais, do seu âmago. Na totalidade de cada tela há um panfleto semiótico com uma mensagem maior que parece sempre por terminar. Parece haver sempre mais qualquer coisa a dizer, na emergência da mensagem seguinte, na próxima tela e numa crónica que se adivinha interminável.
A&c – Quando terminas um quadro, sentes que ele é teu ou agora já é o do mundo?
J.S. – É muito das pessoas! Eu ponho aqui as minhas emoções, vivências…, mas deixo muitas portas abertas para que as pessoas possam fazer as suas interpretações e criar as suas histórias. É preciso ter tempo para olhar, observar…
As telas de Juan Sanchez contêm uma intensidade cromática e um equilíbrio estético notáveis, que se fazem ultrapassar em muito os índices normalizados. Porque ele é livre, como gosta de se afirmar, e mais do que o cânone impera a sua própria intensidade emocional, a sua ligação à música, o seu apego à aldeia a perecer ao longe; o amor à luz de Lisboa e mais, muito mais do que tudo isto as conversas com as crianças e jovens em que tudo dá e donde afinal tudo recebe.
A&c – Diz-me três nomes…
J.S. – Goya, Velásquez e El Greco.
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Entrevista e composição: Laura Carvalho. Texto: Rui Freitas.
Juan Sanchez volta ao MAC, onde volta sempre, como se volta à casa de família, ao ambiente onde nos sentimos em casa. Até dia 20 de junho.
Licenciada em História da Arte, apaixonada por arte e fotografia, com o lema: a vida só começa depois de um bom café, e uma pintura de Velázquez.