Coleção de Espectadores
Raquel André levou à Sala Garrett do Teatro Nacional Dona Maria II o último espetáculo da sua tetralogia: Coleção de Pessoas. Primeiro colecionou amantes (Coleção de Amantes), depois colecionadores (Coleção de Coleccionador_s), artistas (Coleção de Artistas) e agora espectadores (Coleção de Espectador_s ).
Este projeto é muito mais que as apresentações feitas em palco, há uma continuação depois do espetáculo, Raquel criou uma exposição, há um livro e foi feita uma performance-conferência.
Cada um destes espetáculos é movido por uma questão inicial, respetivamente:
O que é intimidade?
Que memória guarda um objecto?
O que é ser artista?
O que é ser espectador_?
E na procura de cada uma destas questões começa o espetáculo, a génese teatral deste processo é o que revitaliza e reforça uma das essências do Teatro enquanto arte: comunicação de pessoas para pessoas sobre pessoas e através de… pessoas.

Nas três primeiras coleções vemos a Raquel no centro, ela é quem vai ter momentos de intimidade com alguém, é ela quem recolhe histórias de colecionadores, é o seu corpo que absorve fragmentos de criação de outros artistas, e seguidamente é ela a intérprete, quem está em palco a transmitir-nos todo este processo. Mas esta última peça, a Coleção de Espectador_s, Raquel André posiciona-se como um moderador, ou melhor dizendo um maestro das histórias e das representações dos espectador_s- ator_s.
Ao entrar no teatro é-nos entregue um convite para aceder a um dos 3 momentos deste processo criativo: o site www.collectionofspectators.com , sendo os outros dois o espetáculo que vamos assistir e o terceiro uma ocupação artística Espectador_Espectador_, no Centro Cultural Malaposta em novembro de 2020.
Há instruções, 23, mas que não são ordens, são antes sugestões, são incentivos à participação e alargamento do espólio de pessoas, uma tentativa de tornar o espectador ativo e participante.

Ao começar o espetáculo a Raquel aparece, e é encarnando a posição de moderador que nos guia e alerta para o local onde estamos, o Teatro Nacional Dona Maria II, as cadeiras, os dourados, o local em que estamos sentados que ardeu no incêndio de 1964. Um espaço onde há toda uma equipa a trabalhar, e toda ela tem nome, cada um dos intervenientes é apresentado, são todos iguais, todos importantes, e as suas imagens vão sendo projetadas nesta tomada de consciência de que o teatro não é só feito pelos atores ou por histórias, mas também por técnicos e por espectadores.
Uma constante deste espetáculo é o relembrar do estado das coisas, das diferenças de classe, de como há uns mais iguais que outros, durante a inspeção pela plateia do teatro é-nos recordada a presença do balcão presidencial, que já existia antes do incêndio, tal como a estrutura de balcões para dividir os espectadores por classes, no teatro nem todos viam o mesmo por se sentarem em zonas diferentes, será que continuamos todos a ver?

Após esta introdução, Raquel prossegue o espetáculo para nós espectadores, podermos ver o que nós, ou melhor dizendo eles, os espectador_s-ator_s, 11 entre mais de 70 escolhidos, dão voz ao que é sentido pela grande maioria. E é neste processo que Raquel se ausenta quase por completo do espetáculo, somos nós… eles… que com as suas histórias, as memórias de espetáculos passados dão corpo a uma encenação, em que os gritos pela cultura democrática, por um Brasil mais livre ou um relembrar o 25 de Abril surgem cruzados com Catarina e a Beleza de Matar Fascistas; As árvores morrem de pé; A Carta; Ensaios para uma cartografia;…


Esta relação entre a memória que um espectador tem e como ela se cruza em acontecimentos da sua vida particular e da vida social da cidade é, desde sempre (ou em particular desde os Gregos) o motor do Teatro. A própria ideia de juntar em ‘pessoas reais’ e contarem as suas histórias em palco é uma receita que com um pouco de sal e pimenta de estética e os ingredientes todos bem envolvidos dá um grande prato. Tomemos o caso do Teatro Documental da Argentina Vivi Tellas, ou as oficinas de Rui Catalão que originam espetáculos, como o Agora Nós!, e muitos outros exemplos…
O que me surpreendeu neste espetáculo, e que é a cereja no topo do bolo da Coleção de Pessoas, é o convite para, através de uma página web comunicarmos com outra pessoa que esteja presente na sala e dali criar um momento de convívio alongando-se fora de portas. Encontrem-se e conversem é o mote.
Se o teatro serve para pensar a sociedade, para provocar emoções, reforçar ou destruir regimes políticos, criar estereótipos ou destruí-los está muito bem, mas não é esse o desafio deixado, o desafio é algo tão simples quanto olhar em volta e perceber quem somos nós enquanto espectadores de teatro, e tomar consciência de quem nos rodeia, é perceber que há mais teatro além do espetáculo. Este conceito parece tão óbvio que nem faria sentido ser relembrado, afinal desde sempre que o exterior e o interior do teatro se cruzam, o próprio Teatro Dona Maria II tinha, nos tempos idos do século XIX, longos intervalos para que o momento social interferisse com o teatro.
Relembrar às pessoas que entram numa sala de teatro, que há pessoas nessa sala, e que o teatro é das pessoas, foi um gesto de altruísmo, o espetáculo quis dar lugar e espaço para as pessoas pensarem o que de facto é importante quando vão ao teatro, e este momento de reflexão comunitário é o que faz do Teatro e deste espetáculo algo de essencial…

No fim de contas, qualquer que seja a peça em qualquer que seja o teatro com quaisquer que sejam os artistas, é feita para nós…espectador_s
Ainda bem que este espetáculo existe.
Ajuda-nos a manter viva e disponível a todos esta biblioteca.

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Lisboa, 1999. Tenta encontrar respostas através do Palco. Vê o teatro como um aliado da história e filosofia para resolver (ou não) os problemas do mundo.
