Praça Paris leva-nos facilmente a perdermo-nos na realidade das personagens e a ver o mundo através dos seus olhos. Lucia Murat traz até ao espectador uma das emoções mais perturbadoras do ser humano: o medo. Glória (Grace Passô) e Camila (Joana de Verona) representam mundos opostos, o que nos leva a testemunhar duas realidades completamente diferentes, e com a mestria de Murat, estar na pele de cada uma das personagens. Nas palavras da realizadora “O filme trabalha o medo e a paranoia numa relação entre duas pessoas com histórias e classes sociais diferentes.”
A brilhante Joana de Verona, encarna Camila, uma psicóloga portuguesa, de classe média, que vive e trabalha no Brasil. Já Passô apresenta-nos Glória, uma mulher habitante do Morro da Providência, com um passado conturbado e que a persegue até então: violada pelo próprio pai, mantem uma relação com Jonas (Alex Brasil), seu irmão, que está detido. Esta conjuntura leva-a a procurar ajuda psicológica, e a encontrá-la em Camila.
Ambas trabalham na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e é lá, no consultório de Camila, que se encontram para as sessões de terapia. As sessões ocorrem sob uma luz ténue e uma sombra que percorre o espaço, com o foco de luz, normalmente aplicada de perfil, o que torna este local perfeito para o desenrolar das cenas, emocionalmente, bastante intensas. Vamos conhecendo as personagens, e percebendo não só o seu passado, mas o seu medo do presente.
No decorrer de cada sessão, Glória vai continuando a falar do seu passado, o qual, vai deixando Camila cada vez mais perturbada e paranoica. Há uma transmissão clara, e sufocante, da ansiedade da psicóloga, que cresce cada vez mais ao ouvir as histórias de Glória. Camila começa a confrontar-se com o presente, e com o país em que vive. Nunca havia convivido com a violência e o perigo, que o Brasil de atualmente vive, numa escala ascendente acelerada.
A relação com Deus e com a Igreja é chave neste filme. Glória, membro da Igreja Evangélica, tem escrito na sua porta de casa a palavra “Deus”, que nos coloca numa atmosfera de reflexão. “Aqui se faz, aqui se paga” é algo que Glória profere e que tolda a forma como a personagem vive o mundo que a rodeia.
A narrativa tem uma dinâmica muito intensa, colocando a tónica na violência, no racismo e nos dois mundos paralelos que se espelham: o dos ricos e o dos pobres. Não há meio termo, e as duas mulheres representam isso mesmo. Nos olhos de Glória há uma tristeza, mas algo de fulminante capaz atrair a atenção do espectador. Já Camila, entra numa espiral descendente e de difícil retorno.
Da preocupação à paranoia, acontece um processo de rápida decadência do seu ser, o que faz com que a portuguesa perca o seu namorado e se embrulhe no vício do tabaco e dos antidepressivos. Camila tem uma boa vida, um trabalho estável, mas tudo se envolve com o mundo em que passa a viver, de facto. A psicóloga passa cada vez menos tempo a contemplar a vista da cidade que lhe é oferecida através do seu varandim, e agora acede ao mesmo de uma forma descontrolada e preocupada. Tranca-se a sete chaves, e o medo persegue-a.
A relação estritamente profissional que ambas deveriam ter, perde-se quando Glória almeja ter a vida de Camila, ser ela mesma, e não ter de viver assombrada com o seu passado, presente, e até, o seu futuro. Transmite à terapeuta o seu sonho: sonhou ser ela, viver como ela, falar como ela. Isto coloca Camila noutro patamar de preocupação, mas agora com ela mesma.
Há um ataque ao Morro onde Glória vive, e Jonas é dado como o culpado. A sua irmã é agredida pela polícia, na tentativa de “arrancar” a verdade e uma confissão.
Este momento marca o degradar progressivo de ambas as personagens: Glória apercebe-se que o irmão tem repercussões cada vez piores na sua vida, e Camila vive agora assombrada com a ideia de que Jonas pudesse orquestrar algo contra ela. Jonas é extremamente protetor de Glória, e não admite, de forma alguma, que alguém tente aproximar-se dela, ou moldar o seu pensamento. Este ódio que ele nutre por Camila, e também por Samuel (Digão Ribeiro), muda a forma como os restantes vivem com Glória. Por parte da psicóloga há uma incapacidade de convívio, cada vez maior com a irmã de Jonas, e o medo que a persegue aumenta.
O breaking point de Camila dá-se quando esta descobre no telemóvel de Glória, um vídeo de uma mulher a ser agredida e humilhada. De alguma forma, Camila revê-se na rapariga.
Onde levará o abismo para o qual Camila se atirou sem saber quando saiu de Portugal? Ao som do fado, inicia e termina este filme trazendo uma sensação de nostalgia que nos envolve e nos imerge, de uma forma mais intrínseca nesta crua teia.
Ajuda-nos a manter viva e disponível a todos esta biblioteca.

Estreia amanhã, dia 4 de outubro
Licenciada em História da Arte, apaixonada por arte e fotografia, com o lema: a vida só começa depois de um bom café, e uma pintura de Velázquez.