Paul Schrader, realizador da prequela da série Exorcista, Dominion, de Cães Selvagens e Cat People, desta vez, traz até nós First Reformed, um drama tenso e introspetivo com Ethan Hawke no papel de Toller, o reverendo de uma igreja protestante, com aquele nome, de uma pequena vila Nova Iorquina que está a celebrar 250 anos de existência.
A história apoia-se no dia a dia de Toller na igreja, e na sua relação consigo mesmo, ou os seus demónios e com a sua fé, e começa com um monólogo (que acaba por acompanhar todo o enredo) de Toller em voz-off durante uma missa por ele presidida. Toller que expressa a sua dor através das palavras escritas e entre copos de Whisky, decide escrever um diário, durante doze meses, porque, diz, é melhor escritor, que orador, e é no papel que melhor consegue expressar os seus sentimentos. São estas palavras que guiam o espectador.
No fim da cerimónia, é-nos apresentada Mary, interpretada pela brilhante Amanda Seyfried que – grávida durante as gravações – recorre a Toller, pedindo-lhe que fale com Michael (Philip Ettinger), seu marido, que pretende que ela, grávida do seu primeiro filho, aborte. Toller acede e dirige-se a casa de Mary, onde, sentado frente a frente com Michael, sem obstáculos entre eles, numa leitura que tanto pode ser de confronto como de cumplicidade, agarram, durante mais de dez minutos, o espectador, no primeiro grande diálogo do filme.
Ativista e defensor do ecossistema, Michael sente-se em desespero, não é capaz de suportar a dor de trazer um filho ao mundo, o mesmo mundo que aos seus olhos, é doente terminal. Discutem sobre o ecossistema, o ativismo ambiental e as repercussões das ações do Homem no mundo. O confronto emocional que aqui se gera, leva-nos a conhecer o passado dramático de Toller, um ex-militar, capelão, casado, e que havia perdido o seu filho na guerra, para a qual ele próprio o havia “encaminhado”. Tenta por isto, mostrar a Michael que a dor de perder um filho é muito maior do que a dor de trazer um ao mundo. A dicotomia na sua vida, do passado para o seu presente, tem, no entanto, um elo, a igreja.
First Reformed é um filme de palavras, mas também de silêncios, com Toller como narrador omnisciente e é através dos monólogos que nos oferece, que podemos experienciar um confronto connosco mesmos, acompanhando-o a enfrentar a mais dura e crua natureza humana, nos momentos mais difíceis, onde nem a esperança parece oferecer salvação.
A culpa e o remorso, são dois conceitos sempre presentes neste filme e sobre isso conversa com Esther (Victoria Hill), com quem se havia relacionado, e que é funcionária da associação Abundant Life, uma irmandade cristã de solidariedade e apoio social e responsável pela organização das comemorações que aí vêm. Conversam sentados frente a frente no refeitório das instalações, tendo como fundo – um dos geniais pormenores que Schrader oferece – um painel com uma parte do 2º Livro dos Atos dos Apóstolos, do Novo Testamento.
Ao contrário do que defende que não devemos recalcar a culpa, Toller vive diariamente em culpa consigo mesmo; doente, leva um estilo de vida pouco saudável, tendo na base da sua dieta o álcool. Toller sabe que tem culpa, mas não sente o remorso. Ou tenta. Fecha os olhos e deixa-se guiar pela sua fé, e pela mão de Deus. É com Ele que comunica diariamente e partilha os seus pensamentos mais íntimos, e a sua grande inspiração é Thomas Merton, um abade que viveu no século XX e que regia a sua vida de acordo com a paz, e o ecumenismo. Schrader estabelece uma ligação entre a personagem fictícia de Toller e a real de Merton, ao criar uma sintonia entre ambos, para suporte da personagem de Hawke e das suas crenças e dúvidas.
Toller, ao longo do seu diário, vai analisando os seus próprios pensamentos e palavras previamente escritas, chegando a rasgar páginas pela vergonha íntima e desconforto, que lhe causa o confronto com os seus próprios fantasmas. A sua doença vai-nos acompanhando ao longo do filme como uma sombra negra.
Interpretado por Cedric the Entertainer – que pela primeira vez na sua carreira utilizou o seu nome verdadeiro (Cedric Kyles) – o pastor Jeffers diretor da Abundant Life, é uma espécie orientador, de Toller, que com algum pragmatismo para lá da fé, tenta manter Toller com os pés na Terra.
Encontramos pormenores de que são muito mais do que isso, como a diferença entre o primeiro e o último diálogos entre Toller e Jeffers. No primeiro, no seu escritório, Jeffers recebe Toller calorosamente e pede explicitamente que deixe a porta aberta, e que se sente confortavelmente num sofá. No segundo no mesmo local, Jeffers recebe Toller sentado à secretária e pede-lhe que feche a porta, enquanto lhe indica secamente, uma cadeira junto à sua secretária.
Pelo meio, Toller foi “triturado” pelo cinismo de Ed Balk (Michael Gaston), o dono de grande empresa, classificada entre as mais poluidoras do ano e que irá patrocinar o evento, com a cumplicidade interesseira de Jeffers, marcando o desenvolvimento das personagens e da sua relação, ao longo do filme…
Dicotomias e contrastes percorrem a trama. Toller e Mary têm uma ligação espiritual, mas enquanto Mary, apesar de partilhar as ideias de Michael, é otimista e tem esperança, Toller, vê o mundo escuro, poluído, infestado pela ação humana. Vê-o pelos olhos de Michael, mas também e cada vez mais, pelos seus próprios olhos: os de um homem doente, angustiado, que sabe que o seu tempo de vida é curto e que se sente cego pela fé e pelo credo, não conseguindo libertar-se dos filtros que esta lhe impõe e que o impedem de ver mais e melhor.
Michael suicida-se.
A partir daqui, é evidente a mudança de espírito de Toller e os seus confrontos internos agudizam-se. Consegue ver para além da sua fé, e começa a questionar a sua crença, a Abundant Life, e as motivações de Jeffers, por quem nutria confiança. O mesmo homem que acreditava que não devíamos sentir culpa, começa a penitenciar-se pelas suas ações, e por tudo aquilo que poderia ter feito.
A excelência do filme não passa só pela sua história. A fotografia, dá-nos uma uniformidade sombria e fria, e sem muitos apontamentos de cores quentes, a tela transmite um realismo sóbrio, com um forte pendor para a imagem centrada. A música, praticamente ausente, surge brilhante no final com Leaning on the Everlasting Arms.
Schrader realizou um drama intenso apelando ao confronto com a nossa própria natureza humana, com a nossa fé ou a falta dela e como interferem na nossa forma de ver o mundo, colocando-nos muitas vezes em posições extremas.
O final que First Reformed reserva por detrás de uma trama tão complexa e genial, leva-nos à pergunta tão simples e tão pesada que Michael fizera a Toller, e que nunca mais o abandonou: “Irá Deus perdoar-nos?”.
O final da fita é… Paul Shcrader.
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Estreia dia 12 de julho
Licenciada em História da Arte, apaixonada por arte e fotografia, com o lema: a vida só começa depois de um bom café, e uma pintura de Velázquez.
