Foto em destaque: Jaime Freitas e Vitória Guerra – © David & Golias
“(…) Sou um escritor que se tem ocupado muito a falar do eu, com grande escândalo daqueles que professam interesse pelo coletivo. Mas falar do eu, não é falar de mim. E falar de mim, isso tenho eu muita relutância em fazê-lo(…)”
Vergílio Ferreira
A longa-metragem é uma adaptação cinematográfica do romance homónimo de Vergílio Ferreira, com estreia marcada para hoje, 22 de Março nos cinemas, e já tem no seu currículo o prémio de Melhor Filme Português no 38º Fantasporto, sendo de prever que muitos mais se lhe seguirão, à medida que o filme for ganhando asas para outros festivais e latitudes.
O escritor, que também experimentou o cinema, exaltava o indivíduo e a sua liberdade mas tinha relutância em falar de si próprio, solitário que era, e discreto como grande parte dos criadores.
O romance data de 1959 e Alberto, o protagonista, é um jovem professor do liceu recém-chegado a Évora, onde, sombrio e introspetivo, procura alargar os horizontes dos alunos.
Fernando Vendrell transporta o enredo e o contexto geográfico-temporal para o cinema rodeando-se de um belíssimo elenco numa cidade envolvente, branca, com extensos rodapés e pormenores azuis ou açafrão, resplandecente, mas claustrofóbica e moralista na sua mentalidade coletiva e maledicência sufocantes, como é retratada no âmbito da época. Uma cidade infetada pela hipocrisia social.
A música arrepia suavemente e a fotografia é digna de nota, deixando antever um evidente contraste entre a luz da cidade e o carácter opaco da personagem de Alberto (Jaime Freitas), um homem de fumo preto, descrente e austero, fechado na sua própria individualidade e imbuído de uma certa ingenuidade; ele pretende ampliar o ângulo de visão dos seus pupilos e abrir os espíritos para “justificar a vida perante a inverosimilhança da morte. Que fazemos nós nesta vida se nascemos para o silêncio sem fim?”, interroga-se o professor a dada altura. Os seus questionamentos existenciais parecem no entanto ter pouco eco numa cidade onde reina um clima de suspeição permanente, numa visão algo cínica e prosaica, e onde os temas que reúnem consenso seriam “a cortiça, os adubos e as rações”.
“Já estamos a chegar, senhor engenheiro, é já ali”, é a frase que fica no ouvido do espectador e que marca a entrada desconfortável do professor e escritor (“senhor engenheiro”) neste microcosmos, assinalando um conflito com a cidade inóspita que o recebe. Na pensão onde se hospeda a sua classe profissional é alvo de desconfiança; assim, é com galharda relutância que o senhor professor se vê acolhido: professor remete para mente aberta e a ameaça da promiscuidade latente parece aterrorizar o espírito domesticado e aquietado do simplório proprietário. Apenas a mala sobre o leito parece sorrir no seu lar provisório. Também no liceu onde vai lecionar Alberto é recebido com indisfarçada curiosidade e alguma displicência; o Reitor (João Lagarto, no seu melhor) recebe-o com maneirismos carregados de ironia e condescendência, deixando escapar discretas ameaças mascaradas de avisos amigáveis, pois o pensamento livre não é bom conselheiro…
Não obstante, a sua marca vai-se tornando visível e a sua pegada deixa claras ramificações. Évora, definitivamente, não é uma cidade tão obsessivamente naufragada nas necessidades próprias da existência e os homens procuram mais longe, por vezes para além da própria vida. A morte e o drama rondam – a degenerescência da doença, a mão deformada e artrósica em busca de auxílio dos doutos, a pobreza rural endémica e visceral, a débil condição humana (simbolizada pelo romance de André Malraux disposto sobre a mesa).
Alberto atravessa classes sociais e o seu olhar calado, nunca consentindo, tudo observa: parece descomprometido mas não desatento. Este alter ego do escritor suga vorazmente matéria para a sua criação e deixa-se também contaminar pela sedução intensa das belas filhas do seu cicerone e amigo.
É um arrebatamento contido: as três filhas do Dr. Moura (Rui Morisson), tal feiticeiras com poderes insuspeitáveis, criam um ambiente de trágica sensualidade no qual o jovem professor se vai deixando enredar. Ou talvez não. Quem, nesta luta de desejos e veladas intenções sairá ileso? A virginal e etérea Cristina (Inês Trindade) de olhos enormes e talento para o piano, a arrebatada Sofia (Victória Guerra) que marca com passos provocantes uma trajetória de contornos imprevisíveis ou Ana (Rita Martins), de beleza febril mas apagada, que vive entregue a um casamento bizarro com o homem rudemente bom da samarra, o emotivo Alfredo (Dinis Gomes), agricultor, que afirma poeticamente que “as laranjas são a prova da existência de Deus”? Todas três são objeto da sua admiração, que lhe devolvem, enigmáticas e indecifráveis, intermitentemente. Cumplicidade, atração ou doce encantamento são parte do que têm para lhe oferecer.
No café habitual todos conhecem as preferências do senhor doutor, do senhor engenheiro e o forasteiro só tem que fazer o seu pedido uma vez para que fique imediatamente registado como uma imutável memória. No café os senhores finos de fora bebem café e os homens da terra, rurais ou citadinos, preferem uma refeição mais substancial ou uma bebida, a horas próprias ou impróprias.
Alberto caminha pelo empedrado de Évora de gabardina bege ou colete de lã escura. Entre o liceu e a pensão, entre as aulas, a escrita e a casa das insondáveis mulheres, conhece chuva e dias auspiciosos, jovens rapazes sedentos de ideias inovadoras ou amedrontados pela responsabilidade individual que emana da liberdade, conhece o entrudo, o ciúme e a dúvida. O seu amigo Dr. Moura pertence à elite local e leva-o a descobrir um mundo onde têm lugar a literatura e a música erudita, onde as mulheres têm asas para voar, até onde lhes é permitido. Dessa janela para o mundo vê-se a decadência e a desesperança, o desencanto também, mas são sempre as liberdades individuais, o livre arbítrio e o pensamento próprio que motivam o relacionamento do jovem professor com o outro.
O jovem Carolino (um angustiante João Cachola) surpreende-o com a sua ingénua ousadia perante a vida e a morte, uma temeridade feita de exaltação e de inocência. Ele vibra intensamente de paixão e curiosidade perante a vida, e paira sobre si a sombra da noite mais obscura.
“Évora é a quaresma, Lisboa o carnaval”. Depois do entrudo a tragédia apodera-se do ambiente carregado em que mergulham os laços que entretanto estabeleceu. O amor, a obsessão, as ilimitadas fronteiras da consciência, a lealdade e a morte são figuras com as quais será confrontado durante a sua permanência na cidade.
Alberto ou Vergílio Ferreira são uma persona una e indivisível que se sucede nesta narração, tão próxima da ficção quanto pode ser a própria vida, cujo carácter efémero é aqui incessantemente sublinhado.
Neste filme de realização madura e rigorosa – e muito sólidas interpretações – destaco igualmente os figurinos a cargo de Patrícia Dória.
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Vale a pena dizer como Sofia: “não sei nada, sou uma página em branco” e deixar que a vida se escreva em nós.
Aparição no site da produtora David & Golias
Escrevo crónicas, contos e poesia. Ensaio palavras entre linhas e opino sobre cinema, preferencialmente africano e lusófono. Semeio letras, coleciono sílabas e rumino ideias.