Toques do Caramulo

Toques do Caramulo – UP Remexe
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14 de Novembro, 2017 0 Por Rui Manuel Sousa
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Também o tempo torna tudo relativo.

Este artigo foi inicialmente publicado há mais de 5 anos - o que em 'tempo Internet' é muito. Pode estar desatualizado e pode ter incongruências estéticas. Se for o caso, aceita as nossas desculpas.

Passados já 9 meses do seu lançamento vou falar-vos de um disco com um “Toque” muito especial e que provavelmente passou mais despercebido do que seria recomendável.

Com toda a energia e talento a que os “Toques do Caramulo” sempre nos habituaram a música de tradição é-nos apresentada em “Mexe” de uma forma tão leve e suculenta que só nos apetece dançar, com os pés e com o resto do corpo. Diria mesmo que é na dança das orelhas que este “baile” conquista a sua maior dimensão, de facto ouvir “Viras” interpretados desta forma limpa e com arranjos tão inovadores tem a sua magia e desafio qualquer um a tentar ficar indiferente ao “Vira do Avelal”, “Vira da Macieira” ou “Vira Bairrês”, virou!

Há na sonoridade deste disco uma leveza onírica que se dá magnificamente bem com a força bruta da tradição. Da habitual facilidade do grupo em desarranjar a simplicidade para rearranjar de forma inteligente e evoluída com resultados tanto inesperados como sensacionais já nós sabemos há muito. Seria aqui que perguntaria ao Luis Fernandes, responsável pelos arranjos, se não é nesse jogo de criação e inovação que está a maior parte do prazer, ao que quase de certeza iria ter uma resposta assertiva. Neste novo trabalho tudo isso se mantém, mas há claramente um passo em frente, ficamos com a sensação que para além da recolha e reinterpretação de canções tradicionais há também uma intenção conceptual em “Mexe” quer pela sua coerência sonora quer pelas variadas histórias, participações e surpresas que encontramos ao longo do disco.

A primeira canção “O Lugar de Macieira” tem logo uma participação muito especial e significativa, a de Eliseo Parra! A voz principal é secundada por um coro polifónico de luxo. Segue-se “Padre Nosso dos Músicos” que é uma recolha local feita em 2006 com a voz de David Fernandes em formato de ladainha/reza, aparece na faixa 2 e depois novamente com mais desenvolvimentos nas faixas 6 e 9 musicadas com a técnica o Som da Aura* por Hermeto Pascoal em 2009.

*Para Hermeto Pascoal o Som Da Aura é a vibração sonora da alma de cada um, reflectida pela sua fala, que faz a ligação entre mente e corpo

 

Padre-nosso dos Músicos

Padre-nosso que organizais festas,
Santificado seja o vosso dinheiro,
Venha a nós o vosso arame,
Seja feita a nossa vontade tanto no salão como no coreto,
Perdoai-nos algum toque falso,
Ou alguma nota desafinada
Assim como nós vos perdoamos o pedido de abatimento no preço,
E livrai-nos de festas gratuitas e a seco.

Amem!

A faixa 3 “Pena Verde” foi o tema escolhido para canção de apresentação do disco.

Alegria a 100%!

 

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Em “Maria Alice” fala-se de abandono por causa das tabernas, hoje em dia o abandono é ainda um problema apesar das tabernas estarem em extinção. O arranjo é desconcertante e remete-nos para a actual tendência de nos desligarmos da realidade e de desvalorizar o contacto pessoal. Ironicamente, notamos a dada altura uns pozinhos de “Dragostea din tei”, sucesso mundial do grupo O-Zone que marcou o início deste novo milénio, que caminha a passos largos para a quase total virtualização social e ainda não chegamos ao primeiro vintém de anos.

As duas partes da “Senhora do Livramento” contribuem para a ideia da conceptualização do disco, ao estilo rock-sinfónico a parte 1 tem um solo de acordeão “floydiano” e passagens de harmonia absolutamente saborosas com coros e violoncelo. Nesta 1ª parte Luís Fernandes divide os arranjos com Manuel Maio que também toca bandolim. A parte 2 é cantada em uníssono com os instrumentos, com um violino e acordeão sempre ao despique nas partes não cantadas. É um tema muito rico em termos rítmicos, começando com adufes e depois com a bateria sempre em constante evolução. Este é um bom exemplo de como uma bateria convencional pode encaixar tão bem com instrumentos não eléctricos.

O último tema “Passar de Mão” que conta a história de uns Senhores da Bairrada que aliciam os músicos e cantores da região com comida em troca de alguma música gravada, enfim uns verdadeiros “Giacomettis” da zona do leitão e dos rojões. No final temos a faixa escondida, é só esperar um pouco para ouvir e ficam a saber donde afinal vem o nome do disco.

Toques do Caramulo

Resumindo é um disco bem-disposto, muito alegre e com arranjos deliciosos de ouvir. Foi co-produzido por Manuel Maio e Eliseo Parra, que, para quem não sabe, Eliseo é um cantor e músico ímpar, uma das mais importantes e influentes personagens da música de fusão tradicional em Espanha. E agora pergunto eu:

  • Porque que motivo se deu ao trabalho Eliseo Parra de co-produzir um grupo português?

A resposta é simples, Eliseo reconhece o talento que vai brotando nesta grande Iberia e faz questão do o apoiar pois sabe que é nele que está a essência da verdadeira beleza da música.

Uma última palavra para a d’Orfeu que continua na sua demanda cultural por terras lusas e que é indissociável do grupo “Toques do Caramulo”, parabéns a ambos por este disco. “Mexe” é tão orelhudo quanto um burro mirandês que eu cá sei. Falámos tanto de orelhas que já agora aproveitamos para saudar a 16ª edição do festival “O Gesto Orelhudo” que decorreu no passado mês de Outubro numa co-produção da d’Orfeu com o Município de Águeda e o Centro de Artes de Águeda, com um cartaz cheio de coisas tão boas de ver e ouvir!

 

Créditos:

Toques do Caramulo:

Luís Fernandes – voz, acordeão, flauta, viola braguesa
Pedro Martins – bandolim, violino, coros
Miguel Cardoso – contrabaixo, coros
Alex Duarte – guitarra, flauta, coros
Gonçalo Garcia – bateria, percussões, coros

Músicos convidados:

Eliseo Parra – voz (O Lugar de Macieira) e percussões
Sónia Sobral – acordeão (Senhora do Livramento I)
Ana Conceição – violoncelo (Senhora do Livramento I)
Manuel Maio – bandolim (Senhora do Livramento I e II) coros, adufe, teclado (Passar de Mão)
Rui Ferreira – cavaquinho (Pena Verde), adufe

Outras participações:

David Fernandes, Hermeto Pascoal e Aline Morena
(Padre Nosso dos Músicos / Aura do Som)

Lara Figueiredo, Aníbal Almeida, Francisco Almeida, Ricardo Coutinho, além de Luís Fernandes e Miguel Cardoso, gravados por Rui Oliveira
(Lencinho, Palminhas, Pé com Pé – faixa escondida)

Manuel Maio e Luís Pedro Silva – captações
Rui Ferreira – mistura e masterização

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Gonçalo Abade e Gonçalo Garcia – apoio às gravações
Ana Filipa Flores – multimédia
Micaela Cipriano – design

Toques do Caramulo

Gravado entre fevereiro e maio de 2016, no estúdio de Eliseo Parra em Candeleda (Espanha) e nos estúdios do DeCA – Universidade de Aveiro (Portugal).


 

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Musico, entusiasta de cordofones que gosta de falar de música, da sua alquimia e do seu indelével sentido cultural.

Jaime Roriz Advogados Artes & contextos