A Presença das Formigas
Alma, entrega e paixão na música portuguesa, parte 1
Conheci o grupo “A Presença das Formigas” em 2009 no Fórum Municipal Romeu Correia em Almada numa das eliminatórias do festival Cantar Abril e que viriam a vencer na categoria “Criação de Canções da Liberdade” relativo ao “Prémio José Afonso” com o tema original o Rei – a morna indiferença. Bastou-me ouvir um pouco para saber que estava na presença de um dos projetos mais promissores em termos artísticos e culturais da música portuguesa. É do trajeto do grupo desde 2009 até aos dias de hoje que vos vou falar um pouco, em duas partes, correspondendo cada parte a cada disco lançado até então, Ciclorama em 2011 e Pé de Vento em 2014.
Como o mercado não é dado a grandes simpatias com projetos que não cheguem rapidamente ao consumidor e de forma agressiva ou que não sirvam de suporte às exigências atuais de share na televisão, apenas em 2011 com uma edição de autor apoiada pelo IPJ, (Instituto de Apoio á Juventude da Região Centro), com selo “Disco Antena1” editaram o primeiro trabalho discográfico que tem por nome Ciclorama. O disco foi recebido pela crítica em Portugal de forma entusiasta e no estrangeiro não passou em claro conseguindo uma crítica excelente na prestigiada “Prog Magazine” escrita pelo crítico britânico Sid Smith:
The Presence of the Ants (as their name translates into English) take Portuguese traditional music and infuse it with a muscular hint of prog and folk- rock. The instrumentation’s largely acoustic, with plenty of intricate dovetailing and forceful dynamics. With a tone occasionally reminiscent of the rustic escapades of gentle Giant or PFM’s bucolic seasonings, the band demonstrate a feather-light, capricious interplay that employs exotic tonal colourings from electric piano, intriguing percussive accents, and truly radiant vocal harmonies.” – Sid Smith, Prog Magazine
Mais algumas críticas desta feita em Portugal:
No resto, não se sabe. Mas, em matéria de música, ninguém tenha dúvidas que a dieta de A Presença das Formigas é de requintadíssimo “gourmet”. Naquela mesa, só entram os melhores produtos de confecção tradicional e de origem local ou internacional.” – João Lisboa, Expresso
Folk nacional progressivo e colorido que constitui, seguramente, um dos mais interessantes e ousados discos portugueses de 2011.” – Luís Rei, Crónicas da Terra
Ciclorama trouxe consigo um novo perfume o exercício lúdico perpetrado pela banda em cada tema tem algo de fresco e surpreendente e o resultado é deveras original.
O disco abre com Encontrei um pensamento, uma frase de guitarra acústica em ostinato com um motivo grave de piano em sincopa, os pratos criam dinâmica até ao momento em que entra a voz da Teresa Campos a dizer:
“Encontrei um pensamento mesmo no meio do chão
(…)
Afinal eram mil milhões e pico, quase me deu um fanico! “
O tema tem como base rítmica o baixo, bongós e ferrinhos (!), um cavaquinho a usar uma harmonia pouco habitual para o instrumento mas muito bem conseguida e lá para o meio do tema aparecem declamadas pelo Manuel Maio algumas frases ao jeito intervencionista, referências ao “vírus da ganancia” ao “engordar dos gigantes” enquanto a Teresa vai cantando por cima, fazendo o diagnóstico aos pensamentos adoentados. Segue-se o tema com participação da Amélia Muge A menina da canastra. A canção começa com um bonito trabalho de guitarra clássica e ao entrarem as vozes da Teresa e da Amélia soltam-se aromas de fumaça, rosmaninho, avelã, sendo embaladas pelo violino e pelas flautas. O tema termina com uma espécie de cânone com várias frases cantadas em valsa. O terceiro tema O meu amor viu tempestades é inspirado nos relatos da Epopeia dos Humildes de António dos Santos Graça de 1952. A canção para além de continuar a originalidade e qualidade dos arranjos instrumentais e vocais dos temas anteriores tem um belo poema da autoria de Manuel Maio que realço, em que a amada de um pescador diz:
“O meu amor sabe os caminhos duros que nos livram da miséria
Ele sabe o quanto custa a faina e eu sei quanto custa a espera
(…)
O meu amor viu tempestades, viu o mar salivar
Um milhão de maresias tantas almas tragar, ceifar, sepultar
(…)
O meu amor sabe os caminhos que habitam o meu coração
e neles navega dia a dia enquanto no mar se arrasta em solidão”
O 4º tema é a canção que arrebatou o prémio José Afonso em 2009 de que já falamos atrás, conta com uma interpretação vocal completamente arrebatadora da Teresa Campos, e com apontamentos de bandolim e flauta de fino recorte melódico e rítmico:
“(…)
O rei vai nu de tristezas, vai nu de incertezas
Veste a armadura da fiel sentença
A da morna indiferença”
O tema seguinte Em tempos que já lá vão é um instrumental que com uma mistura peculiar de instrumentos, um oud, uma flauta kaval, uma braguesa e adufes, serve de introdução para o 6º tema Sátira à Leonor, cantado em dueto por Manuel Maio e Teresa Campos. O tema Mar de verde cheio e Terra são talvez os mais progressistas e lembram um pouco Genesis ou Pink Floyd nos seus tempos mais psicadélicos, muito ornamentados e com várias mudanças de andamento e de dinâmica. Em Mar de verde cheio sublinho a utilização do piano fender rhodes e da guitarra portuguesa. A melodia instrumental do tema Terra é adaptada da canção tradicional da beira baixa minha roda está parada – destaco o arranjo vocal suportado pela braguesa e o solo dividido entre uma gaita-de-foles e um saxofone. A Valsa do ainda é outro instrumental, que começa por ser uma balada à moda coimbrã e evolui para um valsa ao jeito dos bailes tradicionais contemporâneos. O tema Este rio este lembra um pouco a energia da música do José Afonso No comboio descendente e é uma festa de virtuosismo instrumental. A penúltima canção do disco é Fim do mundo num segundo, com belas frases de violino, coros, harmónicos de baixo elétrico e passagens cromáticas muito originais. Eis o início da letra:
“Disseram que ser sonhador provoca dor
Que pode ser grande o trambolhão
Disseram, alguém disse que é muita a chatice
Que faz mal ao coração”
A Presença das Formigas é nome de uma das canções de José Afonso e o disco termina com uma versão dessa mesma canção que penso ter sido feita para concorrer também ao festival Cantar Abril na categoria de “Recriação das Canções da Resistência” que corresponde a outro prémio em disputa o “Prémio Adriano Correia de Oliveira”. José Afonso por certo ficaria muito feliz por esta versão, pois sente-se que foi forjada com a vontade de quem faz um hino e com o cuidado e intenção de fazer algo digno de que todos se pudessem orgulhar. Pois podem ficar orgulhosos! Quase no final do tema é declamado um excerto do livro Levantados do Chão de José Saramago, no qual refere o estado da consciência de um tal Dr. Romano, delegado de saúde, que decreta um óbito por enforcamento em acto de suicídio tendo o morto várias marcas de tortura:
“Durma em paz com a sua consciência,
Fornique-a bem que ela bem os merece a si e á fornicação
(…)
Mas tome um conselho que lhe dou
Evite as formigas, sobre tudo aquelas que levantam a cabeça como os cães
É bicho de muita observação”
Eis a lista de músicos e de instrumentos que participaram no disco Ciclorama:
– André Cardoso / guitarras (clássica, cordas de aço e portuguesa), oud, cavaquinho, voz e coros
– Cecília Pessanha / flautas de bisel
– Filipa Meneses / piano, Fender Rhodes, acordeão
– Luís Arrigo / bateria, percussões populares, tímpanos e glockenspiel
– Manuel Maio / violino, bandolim, cavaquinho, voz e coros
– Miguel Cardoso / baixo elétrico, contrabaixo, viola braguesa, guimbarda, voz e coros
– Teresa Campos / voz
Como convidados:
– Amélia Muge / voz
– Fraser Fifield / gaitas-de-foles escocesa, saxofone soprano, low whistle e kaval
– Ricardo Matosinhos / trompa
– A. José Martins / sintetizador e percussões
– Danylo Gertsev / coros
Leia a segunda parte deste trabalho Aqui
Ajuda-nos a manter viva e disponível a todos esta biblioteca.
Outros artigos de Rui Manuel Sousa
0
Musico, entusiasta de cordofones que gosta de falar de música, da sua alquimia e do seu indelével sentido cultural.