A arte de Juan Carlos Savater
A evolução e o estilo deste pintor basco é uma metamorfose sem fim. Nos seus primeiros trabalhos há reminiscências de Bosch e elementos surrealistas, bem como um sentido de humor que não se encontra tão presente no seu trabalho posterior; nalguns casos, as formas expressionistas são evidentes, e nos seus retratos são reconhecidos elementos realistas e, nalguns casos, também a abstracção. A sua obra mais recente, Pequeños robles de la sierra ou Proezas magistrales, está enquadrada no que tem sido chamado de “realismo místico”.
Aqueles que não precisam de lentes verbais para se aproximarem do quadro podem fazer muito bem, dispensando as seguintes palavras. Por outro lado, quem quiser passar por estas lentes verbais antes ou depois desta breve selecção de pintura, use-as se e só se elas lhe permitirem clarificar o seu olhar e aprofundar a sua compreensão, não só da pintura mas também do mundo a que esta obra singular se dirige, que é o nosso e não é nosso.

Nascido em San Sebastián em 1953, Juan Carlos Savater estudou na Academia Real de Belas Artes de San Fernando, em Madrid, onde reside atualmente. Realizou exposições individuais na galeria Sen da capital, Caja de Ahorros Municipal de San Sebastián, nas galerias Madrid Alençon, Estiarte, Moriarty, Trama e Antonio Machón; nas galerias Atlântica no Porto, Berini em Barcelona, Dieciséis de San Sebastián, Bretón em Valência, Miguel Marcos em Barcelona, Leandro Navarro em Madrid, Sala Fundación BBK em Bilbao, Espacio Caja de Burgos e Monasterio de Santo Domingo de Silos, entre outras.
Colectivamente, expôs em galerias de renome nacional e internacional, entre as quais se destacam O Museu Am Ostwall, Die Internationale Kunstmesse em Basileia e Wissenschaftszentrum em Bona em 1984; a 19ª Bienal de São Paulo e Dynamiques et Interrogations (Arc, Paris) em 1987; a Bienal de Veneza e a Exposição Mundial 88 em Brusbane (Austrália) em 1988; Prospect 89 em Frankfurt, Albright Knox Art Gallery em Nova York, Universidade de Houston, Universidade de Washington, University Art Museum na Califórnia e 6A Montenapoleone em Milão.
Tentarei agora fazer uma introdução ao seu trabalho com base em cinco conceitos.
Pluristilismo
Há artistas que mais cedo ou mais tarde descobrem o seu meio, o seu ambiente, o seu estilo e não param de executar variações sobre o mesmo assunto. Pelo contrário, há outros cuja evolução do estilo é uma metamorfose sem fim. A obra de Juan Carlos Savater pertence sem dúvida a esta segunda linhagem, ao ponto de, por vezes, parecer não ser do mesmo autor.
Um dos critérios que norteia esta breve exposição é precisamente o de oferecer uma visão deste pluristyle, que é diversidade e riqueza expressiva.
Se nos deixarmos embalar pela pintura com que abrimos esta selecção, Mapa da Pequena Terra, que nos lembra uma das obras-primas de Ángeles Santos (1911-2013), Um Mundo (1929); ou pararmos em Cárabo, Rosa e Mulher Morta e, sobretudo, Penvern, podemos reconhecer reminiscências de Bosch (1450-1516) e elementos surrealistas, como objectos fora do contexto ou de uma dimensão sobrenatural, bem como um sentido de humor que não está tão presente no seu trabalho posterior. Em que medida é o humor incompatível com a espiritualidade?

Esta espiritualidade é palpável no Retrato Imaginário de N. Berdiaev, no qual percebemos formas expressionistas. No entanto, nos retratos introspetivos e penetrantes de Fernando Savater e Sara, reconhecemos elementos realistas.
Ao contrário de Dia a dia, cujo estilo é mais abstrato. A sua obra mais recente, da qual seleccionei aqui a maioria das obras, desde os Pequenos Carvalhos da Montanha até Proezas Mágicas, talvez pudesse ser colocada dentro daquilo a que chamaram “realismo místico”.
Nietzsche escreveu que “a serpente que não muda a pele está morta”.
Apesar desta variedade estilística ou, se preferir, do pluristilismo, como veremos, há elementos em comum que percorrem e atravessam todo o trabalho de J. C. Savater: a presença da natureza e, em particular, da paisagem; o simbolismo, romantismo e religiosidade; a transfiguração do quotidiano para o sublime; a pintura como exercício espiritual através do qual se acede a outro modo de ser. Dentro desta aparente diversidade bate uma unidade profunda: a vida, a memória, a trajetória de Juan Carlos Savater. Escreveu com razão: “O pintor dá vida à sua pintura com aquilo que lhe dá vida”. A sua obra é a sua autobiografia velada, e ainda está em construção.

Experimentalismo
Esta variedade de estilos é uma consequência do seu experimentalismo.
Tal como nas ciências, o experimentalismo na arte é essencial. Sem ela não há busca ou aventura, não há descoberta, não há tentativa e erro, não há novidade e não há encontro.
E este experimentalismo parece ser realizado não só no seu trabalho pictórico, mas também noutras facetas da sua vida,
uma vez que Juan Carlos Savater trabalhou como encenador em peças como Maria Stuart de Schiller (1994), Noite do Iguana de Arthur Miller (2008) e Próspero sonha com Julieta (2010), de Sanchís Sinisterra, todos eles dirigidos por María Ruiz.

Ainda ilustrou El diario de Job (1983) ou Historia de la filosofía, sin temor ni temblor (2010), ambos de Fernando Savater, e Padre e hijo (1986), de Miguel Ángel Bernat. E escreveu também livros de reflexão, como Certeza de ser (2012) e Um mais um igual a um (2014).
Transfigurar o quotidiano: em direcção ao sublime
Como Van Gogh, como tantos artistas ocidentais e orientais, as paisagens e os objectos representados por Juan Carlos Savater vibram com a emoção de os elevar. Portanto, dentro das categorias estéticas que têm sido utilizadas ao longo da história para definir a arte, a categoria que talvez esteja mais de acordo com a sua pintura é a sublime: a maravilha da existência, a vastidão das paisagens, a infinidade da natureza.
Talvez o filósofo que mais sugestivamente refletiu sobre este conceito seja Kant, que na Crítica do Juízo o contrapõe ao belo: primeiro relaciona-o com “a imensidão sem limites”, que na pintura de Juan Carlos Savater está ligada ao religioso e espiritual, que trataremos mais adiante. E salienta que “a satisfação no sublime não contém tanto prazer negativo como a admiração ou o respeito, que merecem mais ser chamados prazer negativo”. Kant escreve mais tarde algo em que devemos pensar: “O belo prepara-nos para amar algo sem interesse, mesmo a natureza; o sublime, para o valorizarmos muito mesmo contra o nosso interesse (sensível).

Poder-se-ia dizer que a pintura de Juan Carlos Savater, de facto, parece procurar através de uma mimesis particular que admiramos, respeitamos e valorizamos, tudo o que nos rodeia. Ao olhar e pintar e olhar e pintar de novo, é como se tivesse adquirido uma perspectiva adequada da realidade, ao ponto de poder dizer, como o grande pintor paisagista inglês John Constable: “Não, senhora, não há nada feio; em toda a minha vida não vi uma única coisa feia: qualquer que seja a forma de um objecto, luz, sombra, perspectiva, torná-lo-ão sempre belo”.
Remo Bodei, autor de um livro próximo desta poética, Paisagens Sublimes. O Homem na Face da Natureza Selvagem, escrito em A Forma do Belo, expondo o pensamento de Kant sobre o sublime:
“Ele refere-se, mais do que ao medo, ao que é digno de admiração e respeito, na medida em que mostra ao mesmo tempo a nossa desproporção e a nossa superioridade como seres racionais, como é o caso, mais do que se sabe, do “céu estrelado acima de mim” e da “lei moral em mim””.

Embora seja rigoroso em relação ao pensamento de Kant, não sei até que ponto é rigoroso em relação à pintura de Juan Carlos Savater. Pois nisto, como na obra do romântico alemão C. D. Friedrich (1774-1840) e de outra forma na pintura chinesa, o que muitas vezes sentimos é a finitude do ser humano face ao infinito da natureza. E este sentimento é o que nos leva a um sentimento de humildade, admiração, respeito e valor por tudo o que nos rodeia. Não é uma das funções da arte mostrar-nos a forma de sentir, valorizar e comportar-nos adequadamente?
Religiosidade sem religião
Duas presenças decisivas na pintura de Juan Carlos Savater são o já citado Caspar David Friedrich e o pintor americano menos conhecido Albert Pinkham Rider (1847-1917), também poeta, excêntrico e bem-humorado. Com Friedrich mantém em comum a omnipresente manifestação da natureza, a dialéctica entre o seu infinito e a finitude humana, a espiritualidade e as paisagens concebidas como alegorias. Este último é também partilhado com Pinkham Rider, o poder simbólico e alegórico da pintura, bem como os tons pálidos, austeridade, religiosidade e sobriedade que passam do modernismo para a abstração.

Assim, a pintura de Juan Carlos Savater é romântica em pelo menos três sentidos: primeiro, obviamente, porque é inspirada por pintores e temas românticos; segundo, porque aparecem fenómenos da imaginação romântica, tais como virgens, orações, cemitérios… e, sobretudo, pela forma como se manifestam; em terceiro lugar, porque parece pulsar na sua pintura uma vontade de dar sentido à falta de significado do mundo.
Não é durante o romantismo que os deuses fogem e a arte começa a ocupar o espaço por eles abandonado? Não é a arte a espiritualidade dos agnósticos, dos incrédulos e até dos ateus? Um dos pais da abstracção do século XX, Vasily Kandinski (1866-1944), abordou em certa medida esta questão em Do espiritual na Arte (1911). Talvez o pensador vivo que mais erudita e brilhantemente lidou com estas questões tenha sido George Steiner em ensaios como Nostalgia for the Absolute (1974) e, mais ambiciosamente, em Real Presences (1989) e Grammars of Creation (1990).

A arte é, portanto, a religião daqueles que não têm religião, uma fonte da qual emana um sentido, embora intermitente, de uma religião fora das instituições religiosas, na qual as pessoas acreditam cada vez menos. A religião, como nos recordou Mircea Eliade, vem etimologicamente de “religare, para estar ligada a algo”; no caso da pintura de Juan Carlos Savater, à natureza, que nos transcende, de onde vimos e para onde vamos.
Não é por acaso que o romantismo está nos antípodas do positivismo, que acredita que tudo pode ser transformado em “ciência”, entendida como factos mensuráveis, contabilizáveis e calculáveis. É por isso que a pintura de Juan Carlos Savater está longe dos ideais científicos e bastante próxima da proposta 6.52 do Tractatus de Wittgenstein: “Sentimos que, mesmo quando todas as questões científicas possíveis foram respondidas, os nossos problemas vitais não tocaram minimamente nelas. É claro que então já não há resposta; e esta é precisamente a resposta”.
Perante a profanação progressiva do mundo pelas ciências (aqui ousaria distinguir entre os cientistas que reconhecem o mistério, apesar da explicação, e os outros que não se espantam nem se espantam, o que, num certo sentido, implica a cessação do diálogo e do espanto), a arte lembra-nos que nem tudo é mensurável, contável e calculável, que para além dos dados segue o mistério subjacente da existência.

Exercícios Espirituais
Por este conceito entendemos as diferentes práticas com que um ser humano se desafia a si próprio a transformar-se de uma forma subjectiva e aceder a outra forma de ser. Para mim, os quadros de Juan Carlos Savater são, neste sentido, “exercícios espirituais”.
Qual é a finalidade destes exercícios espirituais? Dependendo de cada pessoa e das circunstâncias, as intenções e os fins podem ser variados: talvez uma ascese que, como diria Michel Foucault, “não é tanto uma renúncia como uma preparação para a incerteza do destino”; talvez elevar o olhar acima das vicissitudes da vida quotidiana, olhando para a natureza para compreender e aceitar o que aconteceu; talvez ordenar o estabelecimento de uma economia de desejos e de uma hierarquia de valores pela qual queremos agir…

Longe daquilo que possa parecer, estes exercícios espirituais na pintura e na arte estão presentes de um passado que eu não consegui determinar. Não entendo de outra forma esta afirmação de Friedrich durante o processo de pintura: “Devo render-me ao que me rodeia, unir-me às nuvens e às pedras para ser o que sou”. Importa o que é pintado, não só o que é representado, mas também como, mas ao mesmo tempo importa a operação que tem lugar na nossa subjectividade, a transformação que tem lugar em nós. A arte é um fruto humano da mesma forma que nós somos os frutos da arte.
Do mesmo modo, estes exercícios espirituais não pertencem apenas à cultura ocidental, mas podemos rastreá-los até ao Oriente. O fenómeno descrito por Friedrich, a contemplar até que o sujeito se funda com o objecto de uma paisagem, se conseguirmos falar correctamente nestes termos dualistas de “sujeito” e “objecto” em que estamos enredados com a gramática, corresponde ao que na cultura chinesa tem sido chamado “habitar uma pintura” (ver Sabedoria como Estética. China: Confucionismo, Taoísmo e Budismo, de Chantal Maillard).

Talvez a contemplação perfeita exija de nós, como teria exigido do artista antes, que nos fundamos com a paisagem, que desapareçamos nela para entender de uma forma mais ampla e profunda, em suma, para ser de outra forma. Não será esta uma forma de caminhar para a não-dualidade, de nos afastarmos da fragmentação do eu para o qual somos inexoravelmente atraídos pela experiência da vida moderna? Aprendamos, portanto, a “habitar a pintura”; a esta aventura de viver em consonância consigo mesmo e com o que nos rodeia é o que a obra de Juan Carlos Savater nos convida a fazer.


O artigo original Paisajes espirituales: sobre el arte de Juan Carlos Savater, foi publicado @ Descubrir el Arte
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Este artigo foi traduzido do original em castelhano por Redação Artes & contextos
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