Infância, Adolescência e Juventude
Produzido pela David & Golias, Rúben Gonçalves e Escola de Dança do Conservatório Nacional e distribuído pela Zero em Comportamento/ Projectos Paralelos, o documentário sobre o dia-a-dia, a dinâmica e a atmosfera da escola — no ano letivo de 2014-2015 — foi filmado através de um veículo que muitos de nós designamos por documentário, nomenclatura que parece no entanto ter-se tornado incompleta para alguns profissionais do setor que preferem a apelação de “cinema verdade1” ou “cinema direto2”.

Rúben Gonçalves assina, em 2018, a sua obra de estreia como realizador, com esta longa-metragem de 96’ em que procura refletir os oito anos de escolaridade (do 2º ciclo do ensino básico ao secundário) cujo mote principal é a dança, principalmente a dança clássica e contemporânea.
Para muitos, este universo só é conhecido à superfície, através dos espetáculos onde brilham os bailarinos mais experientes, as coreografias mais complexas e os coreógrafos de renome internacional. Porém, para se atingir esse nível de diferenciação são necessários vários anos de entrega e de renúncias, longas horas de aprendizagem e treino, e uma morfologia propícia à prática da dança clássica, para além de uma vontade inabalável.
A genética tem uma palavra a dizer numa área artística onde as características físicas de base dos praticantes, desde a mais tenra idade, definem, entre aptidões inatas e outros critérios, quem pode ser admitido ou não numa escola deste tipo e com tal nível de exigência. Não parece ser fácil cumprir um sonho quando a nossa determinação é posta à prova diariamente, através de posições anatomicamente improváveis.

O realizador deixa a câmara escutar e captar a realidade — a palavra e o gesto — sem interferir, sentir os dias como são, em sombras opacas e rotinas, pausas e vagares, perceber o esforço, o rigor, a superação e a evolução individual.
O que vemos não é realista: é real. Não há representação. Uma dúzia de alunos e uma dezena de professores de diversas nacionalidades desfilam neste filme com a sua verdade e secretismo, comunicando através de um vocabulário específico de ballet cheio de pliés3, battements4, fouettés5, fondus6, soutenus7 ou echappées8.
A regra é: disciplina e contenção; mas crianças são crianças, mesmo quando submetidas a uma padronização de movimentos e postura, à formalidade mais austera. A câmara segue o interior da escola, o piso revestido de linóleo, onde não se pode entrar de sapatos, a gestão do espaço, a comunicação com os alunos.

Os mais pequenos dedicam várias horas semanais às técnicas de dança clássica em unidades de 45 minutos. O treino, diário, é rigoroso, desde o 5º ano (1º ano da escola); os miúdos parecem muito concentrados e são raros os momentos de descontração que presenciamos.
Mais para a frente é integrada a dança contemporânea que se mantém no ensino secundário, onde as aulas de técnicas de dança passam a ter a duração de 90 minutos. O aproveitamento nas outras disciplinas e a motivação própria também são importantes; o filme mostra-nos o ambiente nas aulas de música — “ora batam lá o compasso: baixo, fora, cima!”— nas aulas de inglês, de desenho ou de matemática: crianças e adolescentes bailarinos não deixam de ser alunos e é-lhes exigido e ensinado aquilo que lhes corresponde pela idade e nível de escolaridade.

Muitos dos alunos desta escola seguem a carreira artística, como bailarinos ou coreógrafos, e boa parte deles é integrada em elencos de importantes companhias de bailado, dentro e fora de Portugal. O momento da entrada no mundo do espetáculo é também evidenciado no princípio e no fim do documentário, visto dos bastidores. Há nervos, técnicas de relaxamento, empatia, abraços silenciosos e diálogos minimais entre um e outro movimento da coreografia, antes de entrar em palco.
Alguns alunos alcançam recorrentemente prémios internacionais muito disputados e significativos. A carreira do bailarino clássico, cuja dança tem sempre acompanhamento de música clássica, solicita e absorve recursos físicos e emocionais a um grau inimaginável. Implica paixão, sofrimento e constância durante toda a vida.

O pas de deux9 surge numa fase amadurecida da formação destes jovens (ensino secundário). A dança a pares em coreografias conjuntas, collants brancos, cenários escuros, tutus de renda e sapatilhas de ponta. Rapazes e raparigas movem-se ágeis como pássaros, leves como plumas. Eretos, verticais como fio-de-prumo, graciosos e elegantes, elásticos, disciplinados e harmoniosos. Raras vezes vislumbramos um sorriso ou uma nota de emoção: tudo é contido, interior, controlado. O rosto tem cortinas corridas e poucas vezes se vê uma face mais afogueada ou um cabelo fora do lugar; a laca doma as cabeleiras mais rebeldes.

A expressão é quase sempre (aparentemente) neutra, os abdominais estão contraídos e os pés esticados.
Há algo de militar nesta disciplina sem mácula e na ritualização dos passos, nos movimentos certos, infalíveis no compasso, não fora a suavidade do gesto. Não há lugar para o erro nem para a hesitação, pelo menos no espaço que os nossos olhos abarcam: o olhar e o semblante são uma máscara perfeita. Contudo há também uma incrível liberdade de movimentos, uma expressão corporal intensa e fluida que permite traduzir praticamente todas as emoções da terra, todos os estados de espírito.
Rúben acompanha com uma câmara quase invisível a vida destas crianças que rapidamente chegam à adolescência e logo à juventude, prestes a brilhar nos palcos nacionais e internacionais. Os mestres são rígidos, assertivos, mas afetuosos também, e por isso são reconhecidos. Há ramos de flores que circulam assim como graciosas “révérences[1]”, ligeiras vénias feitas com compostura e confiança em intenção do pianista, da professora e do público — diferentes para meninos e meninas — demonstrando respeito e gratidão. Nuno Feist, pianista e maestro, aparece de fugida num breve plano, as notas ao piano permanecem na fita.

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Ficaríamos certamente surpresos se quantificássemos todas as horas de formação específica em ballet clássico, dança contemporânea e matérias relacionadas até se atingir a excelência e se estar pronto para voar sozinho — ou em bando. Mas graças a um programa de aprendizagem altamente técnico e coerente e à dedicação de profissionais de topo, estes cisnes, gaivotas ou águias aprenderam a dominar o corpo e a calar cada tendão, músculo e articulação. Deslizam e voam pelo mundo, usando o talento próprio e honrando o nome da instituição que os formou e soube potenciar o melhor possível as suas capacidades naturais, dotando-os de competências sólidas e duradouras. Bailarinos são pássaros, feras, vento, chuva e o seu corpo é um para-raios.
1 Cinéma-vérité: termo cunhado por Edgar Morin (antropólogo, sociólogo e filósofo francês) em 1960.
2 Cinema-direto: expressão cuja autoria é atribuída ao cineasta italiano Mario Ruspoli, que a teria usado pela primeira vez em 1962, no Festival de Cannes.
3 Plié: flexão dos joelhos que assegura a flexibilidade e a maleabilidade de articulações, músculos e tendões, nomeadamente. É um exercício que compõe quase todos os outros, da barra; fundamental para amortecer os saltos.
4 Battement: designa movimentos da perna e do pé, executados com batidas; extensão total da perna e do pé e retorno à posição inicial.
5 Fouetté: chicoteado.
6 Fondu (battement fondu): movimento em que as pernas dobram e alongam.
7 Soutenu: sustentado.
8 Échappée: fugido/a. Exercício que corresponde a movimentar as duas pernas para uma posição de abertura.
9 Pas de deux: dueto de dança em que dois bailarinos executam passos de ballet juntos.
Escrevo crónicas, contos e poesia. Ensaio palavras entre linhas e opino sobre cinema, preferencialmente africano e lusófono. Semeio letras, coleciono sílabas e rumino ideias.
