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«Los disfraces del fuego» [desvendados por Manuel Iris]0 (0)
7 de Novembro, 2017
Manuel Iris[1], poeta, ensaísta e académico mexicano reconhecido desde cedo pelos seus pares e pelos leitores, manobra e talha a palavra com veemência mas também com subtil delicadeza.
Longe dos chavões de uso fácil, o autor opta por uma linguagem límpida e eficaz, que nos remete para o sonho e a reflexão ativa, uma espécie de contemplação enérgica da vida.
Existem aqui janelas entreabertas sobre uma atmosfera onírica, que mostram claramente o que faz dele um autor tão carismático e genuíno, que cuida de todos os pormenores estéticos da palavra como bandeira, da semântica, da sonoridade também, apelando, a meu ver, às obsessões íntimas recorrentes tão frequentemente destacadas na sua obra: o silêncio, o amor, a beleza, a morte. Temas que mastiga, molda e redefine com mãos de escultor, ou uma malha que vai construindo pacientemente qual um tecelão. Todas as linhas acabam por se cruzar num xadrez imprevisível de emoções, conhecidas ou reinventadas com novas cores. Será chuva, neve, frio ou fogo, mesmo que pintado numa nuvem.
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Manuel Iris.
Este livro pode ler-se seguindo as recomendações do autor, ouvindo os acordes surpreendentes e assimétricos de Arvo Pärt, ou deixando que a própria música da palavra ampare os textos e desenhe no ar uma melodia de inflexões variáveis; a respiração assegura o ritmo conferindo solidez à leitura. A minha perceção é de que a musicalidade intrínseca da sua obra é quanto basta para que todos os seus poemas, excertos ou fragmentos, possam nadar livremente de boca em boca. Há todo um grafismo propositado no qual autor e editor (Ediciones Atrasalante) planeiam milimetricamente estes disfarces, quiçá permitindo-lhes permanecer distanciados da luz e manter-se tal como foram assumidos desde a primeira letra: máscaras, véus, ilusões. A edição é sóbria, com uma colorida e iluminada ilustração de capa, um peixe ondulante da autoria de Natalia Luna.
Tentando encontrar um sentido claro para as suas opções estéticas e a escolha dos temas dos seus livros, deparamo-nos com um texto escrito pelo próprio Manuel Iris, no âmbito de uma conferência:
“(…)Em Bogotá, enquanto uma senhora me vendia umas empadas e me preguntava, falando de poesia de modo muito casual, para que serve isso, uma jovenzinha ao seu lado, que a ajudava a vender, respondeu-lhe, como que desculpando-se perante mim, que ‘o rapaz faz poemas, que são para falar de amor, de coisas bonitas’. Esta é uma resposta cheia de boas intenções, que agradeço e aprecio. Creio que a beleza é fundamental na poesia e pessoalmente não posso entender nada sem ela. No entanto, dizer que o poeta é útil porque faz coisas bonitas é pouco mais que transformá-lo num criador de objetos decorativos, e a função do poema é infinitamente mais profunda, ainda que parta da necessidade de acrescentar um objeto belo à realidade. Assim, confrontamo-nos não apenas com uma pergunta armadilhada (para que serve a poesia) mas também com uma resposta igualmente ardilosa (para dizer coisas bonitas) (…)”
(O presente texto foi lido como parte de uma conferência sob o tema “Função prática da poesia”, no III Encontro Nacional de Jovens Escritores, Monterrey, Nuevo León, México, em Agosto de 2011).
Pormenor da capa de Los Disfraces del Fuego
Passando diretamente à minha impressão pessoal e epidérmica de Los disfraces del fuego, destaco que a obra se compõe de quatro partes, unidas por um fio condutor indefinível que se confunde com o próprio manuseio das palavras e das sensações.
Tintinnabuli
Ouvia-a escutando Für Alina, de Arvo Pärt, como recomendado pelo autor. Diria que se trata de uma ode ao silêncio, na qual o eu lírico o interpela, ao próprio silêncio, rasteirando-o e instando-o a transformar-se em ruído, em respostas sonoras. Porém, este mantem-se inerte, incorrupto e gélido, em consonância com a música, gerando melodia na mente do leitor, sem deixar de ser silêncio e quietude, ausência e escuridão. E o autor termina esta secção com os versos possíveis sobre silêncios que vão inundando as veias com pássaros transparentes.
Los disfraces del fuego
Citando o Antigo Testamento, e depois Jorge Luis Borges, MI lança o mote e justifica amplamente a ideia de que as repetições estarão sempre presentes na vida, de que nada de novo existe e que os ciclos se sucedem ininterruptamente, sendo que não restam memórias das primeiras coisas.
O silêncio, a nudez, o amor, o esquecimento, a realidade, constam do rol inesgotável dos disfarces que desfilam ante os nossos olhos. Uma mulher nua é o seu próprio disfarce. E como parece que tudo é mais verdadeiro face ao fogo, é diante dele, no último segundo, que caiem todas as máscaras.
Em Balada anonima, onde o mar é ardente, “nada” como palavra na boca de um recém-nascido ou “obscuridade” enquanto nome, tudo parece resvalar para o caos, o abismo, o vácuo. Já em Ecos reencontramos a repetição das coisas da vida, ciclos que se dobram sobre si mesmos, círculos infindos de afetos e silêncio mesclado com pudor, nesse disfarce tão soberbo que é o amor.
De la memoria começa com texto corrido em prosa poética mantendo a enumeração dos ciclos e do déjà-vu, porque a memória tem também essa função, a de nos transportar para outra dimensão temporal ou espacial, de nos permitir sentir a mesma música com ouvidos diferentes, até de outras épocas. A memória funciona, em suma, como um ângulo distinto para viver o mesmo espaço no qual estamos no instante presente.
¿Detrás de la belleza apresenta-nos a beleza como o disfarce mais transitório do eterno.
Mas foi preciso chegarmos à Declaración de amor para encontrar o esboço da rota direta para o prazer, responsabilizando metaforicamente o corpo da amada por essa intensa expectativa.
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Manuel Iris com Los Disfraces del Fuego.
Fuga
Parece-nos um breve aviso ao leitor: tudo aquilo que somos e que vemos, que sentimos nas ruas, que tocamos, acaba por abandoná-lo, e é esse abandono com aviso prévio que se assemelha a uma fuga.
Réquiem
Fiel à sua própria sonoridade poética, ao seu ritmo compassado, MI recomenda-nos que voltemos ao tema inicial: Für Alina, de Arvo Pärt.
Fecha-se assim uma etapa, percorrendo caminhos conhecidos, as tais repetições cuja essência é tantas vezes aflorada neste livro. As pegadas são as mesmas e antecedem a leitura, apenas a profundidade do passo, a marcha, a intenção, podem levar-nos por novos e insuspeitáveis trilhos.
A morte é senhora deste espaço onde no entanto nasce uma flor aos pés do enforcado. Ela, a morte, seja qual o for o rosto com que surge – o amor, o acidente, a doença, a voz do assassino – é mais um dos muitos silêncios que se podem sentir entre os batimentos cardíacos; ela volta a lugares onde não existem sons, e sabemos que a sua visita é apenas um regresso anunciado. É uma vela que se apaga mas que se acende já em outro lugar.
Ajuda-nos a manter viva e disponível a todos esta biblioteca.

Por todos estes motivos mas também por aqueles, mais importantes, que só se abarcam com o manuseamento do livro, Manuel Iris afigura-se-nos como um dos imprescindíveis poetas contemporâneos, muito para além das línguas e das culturas hispânicas.
[1] Prémio Nacional de Poesia Mérida (2009); Prémio Regional de Poesia Rudolfo Figueroa (2014); autor de Cuaderno de los Sueños (Tierra Adentro, 2010) e coautor de Overnight Medley, juntamente com o poeta brasileiro Floriano Martins (ARC Edições, Brasil, 2014).
Escrevo crónicas, contos e poesia. Ensaio palavras entre linhas e opino sobre cinema, preferencialmente africano e lusófono. Semeio letras, coleciono sílabas e rumino ideias.