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19 de Janeiro, 2017
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Silêncio.
Como pode Deus manter-se em silêncio perante a mágoa e agitação da alma de um Seu filho que tão desesperadamente espera respostas e orientação?
Desde o princípio do sec. XVI, quando Francisco Xavier desembarcou no Japão para pregar o cristianismo, que os missionários eram, em geral, bem-recebidos naquele país e cerca de 300000 japoneses de todas as classes se converteram à nova fé.
Em 1641, após o estabelecimento do regime Tokugawa, foi emitido o Édito de Expulsão (o primeiro era de 1587) banindo o cristianismo, considerando que desafiava o poder do Xogunato então estabelecido e que despoletou uma perseguição impiedosa aos cristãos da ilha, que eram torturados e instigados a abjurar, como única forma de evitar a morte, que ainda assim muitas vezes não conseguiam.
A história narrada por Shusaku Endo um japonês católico, passa-se entre 1640 e 1643. O livro que em 1988 impressionou Martin Scorsese foi publicado em 1966, traduzido para inglês em ’69, passou pela primeira vez ao cinema em 1971 pelo realizador japonês Masahiro Shinoda com o título Chinmoku / Silence e novamente em 1996 pelo Português João Mário Grilo como Os Olhos da Ásia.
Scorsese que já andou diversas vezes em torno da religião e dos conflitos morais, demorou quase três décadas a cozinhar esta obra onde, como católico, e em coautoria com Jay Cocks, usa a sua própria fé e convicção para nos expor à, tão religiosa quanto filosófica questão sobre o silêncio de Deus perante o sofrimento dos homens.
O realizador leva-nos de uma forma desafiadora e imersiva aos limites da fé, (talvez a sua), marcada neste caso, pelo terror perante os martírios da carne, e a agitação interior e o sofrimento do espírito, em face da dúvida, e fá-lo de uma forma explícita, violenta, coerente e sim, apesar de tudo elegante.
Rodado próximo de Taipé em Taiwan, em ambientes de uma beleza estética sublime, azul pastel e cinzento do céu enevoado, do mar e das rochas ou castanhos e verdes sombrios das montanhas, onde raramente se vê a luz do sol e as paisagens são áridas e silenciosas, os ambientes escuros, reforçando o tom dramático e pesado da narrativa. Uma lição soberba sobre o chiaroscuro por Rodrigo Prieto.
Dois jovens padres jesuítas portugueses, Francisco Garupe (Adam Driver) e Sebastião Rodrigues (Andrew Garfield) são confrontados por parte do seu superior, o padre Valignano (Carán Hinds) com notícias de que o seu mentor e confessor, o padre missionário também português Cristóvão Ferreira (Liam Neeson), após muitos anos no Japão, perseguido e torturado cedeu, cometeu apostasia e abjurou. Ter-se-á devotado a Buda e casado com uma mulher local, permanecendo em silêncio há vários anos.
Rogam ao superior que lhes permita ir ao Japão procurá-lo, convictos de que se trata de uma falsidade para denegrir a imagem e a fé de um homem que arriscou a vida para espalhar o cristianismo, certos de que nunca abjuraria, e aquele, renitente, consente.
Partem para Macau, conseguem um intérprete (Tadanobu Asano) e transporte e chegam ao Japão onde se embrenham nas montanhas acabando por ser acolhidos pelos Kakase Kirishitan (cristãos escondidos), populações convertidas que viviam em grutas, refugiadas dos militares que as perseguiam e onde passavam as mais duras privações.
Os dois padres engrossam naturalmente a mole dos perseguidos, passando eles também a sofrer com o frio a fome e a miséria geral a que estão sujeitos os povos das montanhas, acompanhados por Kichijiro (Yosuke Kubozuka) o barqueiro que os transportara.
Enquanto que Garupe tem uma fé de firmeza inabalável, Rodrigues deixa-se afetar pelo sofrimento abnegado das vítimas da perseguição, que sonham com o paraíso depois da morte. Reza e pede orientação, e de Deus só tem silêncio.
Decidem empreender a busca separados e é o caminho de Rodrigues que passamos a acompanhar.
Este chega a uma vila de pescadores, onde é traído, repetidamente pelo barqueiro Kichijiro, o seu Judas pessoal, que repetidamente lhe pede a absolvição, que Sebastião lhe vai concedendo com dúvidas profundas do seu merecimento.
O preço pela sua denúncia são 300 moedas de prata o que o leva a pecar envergonhado comparando-se a Cristo que por cem vezes menos foi traído por Judas enquanto na sua mente febril e atormentada clama “eu não te vou abandonar”.
Capturado pelo Inquisidor Inoue (Issey Ogata), é mantido numa prisão na montanha ao ar livre, que nos transporta tenuemente para Apocalipse Now, junto de outras vítimas do regime e obrigado a assistir aos mais criativos métodos de tortura e assassinato que vão da decapitação, à crucificação junto ao mar esperando o afogamento lento pela maré; homens e mulheres são envolvidos em palha e queimados vivos, ou a sádica tortura e morte lenta provocada pela suspensão de cabeça para baixo num poço, com uma incisão numa veia do pescoço que vai drenando lentamente.
A narrativa assume traços de crueldade que deixariam mal algumas histórias cunhadas como terror, mas Scorsese respeita os limites e deixa de fora sabiamente a exposição ao horror das cenas mais duras, com tratamento cinematográfico superior do já, e nunca demais referido, Rodrigo Prieto.
Inoue, o seu carcereiro é um velho e sádico Samuray, senhor de um humor negro cortante que promete a libertação aos convertidos que pisarem uma placa com uma imagem vagamente parecida com Cristo, ou se ele próprio o fizer. Sebastião sente-se repetidamente abandonado por Deus e Inoue, convencido que o levará à apostasia, reserva pare si a tortura psicológica de testemunhar tudo isto, em vez da martirização, enquanto ele se questiona se valerá a pena abjurar em nome de uma causa maior e implora (mais e mais) ajuda a Deus, que não lhe responde que não lhe dá uma indicação. “Estarei a rezar ao silêncio” pergunta-se.
Uma mensagem legível à luz de qualquer convicção, com a angústia pelos assomos da dúvida, o medo do abandono, a solidão interior, mas que aqui insinua obviamente uma discussão em torno da fé e dos seus limites, que tem marcado a vida do realizador, que disse em entrevista “The subject matter presented by Endo in his book has been in my life since I was very, very young“.
Será afinal este filme um auto de fé de Martin Scorsese?
Um filme sofisticado, complexo e provocador a partir de uma obra que toca também de uma forma franca na difícil assunção da divergência cultural como raiz de confronto entre dois dogmatismos feitos antagónicos, ou entre a cultura do Japão de Endo e a sua religião. Mas para Endo a fé é impensável sem a dúvida e o silêncio nada diz. Ou diz?
Muito boa realização e montagem, cinematografia/fotografia soberba, excelente elenco com destaque para os desempenhos de Andrew Garfield, Issey Ogata e Yosuke Kubozukabons
Ajuda-nos a manter viva e disponível a todos esta biblioteca.

Realizado por Martin Scorsese
Baseado na Obra de Shusaku Endo
De Martin Scorsese e Jay Cocks
Cinematografia de Rodrigo Prieto
Com Andrew Garfield, Adam Driver, Liam Neeson, Tadanobu Asano, Ciaran Hinds, Issey Ogata, Shinya Tsukamoto, Yoshi Oida, Yosuke Kubozuka
Jornalista, Diretor. Licenciado em Estudos Artísticos. Escreve poesia e conto, pinta com quase tudo e divaga sobre as artes. É um diletante irrecuperável.
Isto deve ser um fogão daqueles !!!
Deve ser um filmaço!!!! Sempre quero ver o Liam Neeson a fazer de padre português. Muito bom, Rui Freitas
Sério? Não conheço esse actor, grande lacuna
Andrew Garfield
Só vi esta semana. De facto grande obra (mais uma) do mestre Scorsese. Não sendo um exercício tão óbvio, estabelecer um paralelo entre a actualidade e esta época de conquista cristã e entender, principalmente, o esforço feito pelos japoneses para enquadrar a “invasão” é fantástico. Optimo filme.
Li a crítica depois de ver o filme (como quase sempre). Gostei das duas coisas! Muito!