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19 de Fevereiro, 2021
Cesariny e Cruzeiro Seixas
Artur Cruzeiro Seixas partiu em Novembro de 2020, deixando em nós uma eterna saudade daquele que é considerado o “último surrealista português”. A sua arte é amplamente extensível, desde a sua mestria plástica, à magia da sua poesia. Assumidamente homossexual, algo raro para a época, tinha uma belíssima relação de amor, do mais puro, com Mário Cesariny . Dois dos mais notáveis artistas no panorama português, deixaram um marco na história da arte nacional, ilustrando as mais viscerais emoções que lhes corriam nas veias.
À sua relação, o documentário Cruzeiro Seixas: As Cartas do Rei Artur, foi dedicado. Outrora disponível na RTP Play, mas, presente na plataforma de streaming Filmin, conta-nos, através das cartas que ambos trocavam, uma incrível história de amor.

Cruzeiro Seixas 1980 Papel Fotográfico 17,2 x 23,5 © Pepe Dinis – Museu Calouste Gulbenkian
Ora platónia, ora quase carnal, a paixão era ardente, e incendeia os corações de quem a lê. Realizado por Cláudia Rita Oliveira, a história dos surrealistas é-nos apresentada de um ponto de vista muito pessoal, com declarações do próprio Cruzeiro Seixas, que nútria amor eterno ao seu querido Mário. Apesar do documentário ter sido, inicialmente, dedicado à obra de Seixas, o nome de Cesariny vinha, persistentemente, à tona, e era mencionado envolto no mais dos carinhos e emoções. Ao longo de 57 diários, compostos por apontamentos, citações, colagens, fotografias e os desaforismos, Cesariny é uma linha central nas memórias de Cruzeiro Seixas, onde a profunda admiração que por ele nútria, é mais que notória.

Cartas de Mário Cesariny para Cruzeiro Seixas
Inevitavelmente distante de Cesariny, de um ponto de vista terreno, a história de amor que os unia, mas, que nunca havia sido consumada, vive da memória de Seixas. «Amei muito o Mário, o que não quer dizer que fôssemos amantes, não fomos». Após a doação do seu espólio ao Centro de Estudos do Surrealismo da Fundação Cupertino de Miranda, em Famalicão, Artur por lá vivia, com desgosto. Chega, no documentário, a fazer uma menção interessante: Picasso teve Paris, e a ele calhou-lhe Famalicão. Aquele que não gostava de ser apelidado de artista, diz-nos «condecorar um surrealista… é um ato surrealista».
Descontente com muito daquilo que havia preenchido a sua vida, no passado, e no presente, Cruzeiro Seixas, era um homem simples, recatado, crítico e objetivo, e que assumia uma tristeza quase crónica. Os seus olhos eram cristais quando referia aquele que aspirava ser, se comparava, e amava perdidamente. A relação de Seixas e Cesariny é tão bonita e apaixonante, como obsessiva e confusa.
Inconformávelmente conformado com a vida, Artur nunca quis ser nada em concreto. A pintura já não o apaixonava, tal como a escrita. Nunca foi tão rico quanto os seus contemporâneos, mas também não o quis. Quem lê e vê Seixas, através da sua arte, não o reconhece nos últimos anos de vida. Um homem com um fogo a apagar, continuava a olhar para o seu passado através de Cesariny, como um objeto de retrospetiva.

Mario Cesariny, Foto © Fundação Cupertino de Miranda
Cruzeiro Seixas vivia, em persistência, no passado, nas memorias que por lá andavam. Cesariny, era um homem em constante mutação, vivia no presente, continuava com o espírito criativo ativo. A velhice foi ingrata para ambos, mas, provavelmente, Cruzeiro Seixas foi um mártir maior. Nos últimos anos de vida, Cesariny abriu as portas à intimidade, e, no seu documentário Autobiografia, fala-nos de Artur:
O Artur do Cruzeiro Seixas é como se tivesse um cérebro dividido: metade é todo luz, porque faz coisas muito belas, e a outra metade é uma confusão total, não se percebe nada; quando aquilo se baralha, é de fugir.» Apaixonado pela vida, pelas pessoas, o que mais lhe doía era a perda constante dos amigos que haviam composto o seu viver.
De um dos cadernos de Artur, temos acesso a esta citação:
O Cesariny acusava-me duramente de não assumir a minha homossexualidade perante os meus pais. Mas que ideia tem da liberdade das pessoas? Eu acho que os meus pais tinham o direito de ter a visão da vida que tinham, e isso nunca me impediu de ser mais livre na prática da homossexualidade que o foi o Cesariny.
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Dois amantes, distantes, viviam em constante saudade e sede de estar perto. Ler a sua arte, e antes, ler as suas pessoas, é das coisas mais belas que se pode fazer, quando se olha para Artur Cruzeiro Seixas e Mário Cesariny. Eternamente admiráveis, jamais inesquecíveis, o Surrealismo e a arte em Portugal fazem-lhe uma ovação que irá durar para sempre
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Licenciada em História da Arte, apaixonada por arte e fotografia, com o lema: a vida só começa depois de um bom café, e uma pintura de Velázquez.