Cesariny e Cruzeiro Seixas
Artur Cruzeiro Seixas partiu em Novembro de 2020, deixando em nós uma eterna saudade daquele que é considerado o “último surrealista português”. A sua arte é amplamente extensível, desde a sua mestria plástica, à magia da sua poesia. Assumidamente homossexual, algo raro para a época, tinha uma belíssima relação de amor, do mais puro, com Mário Cesariny . Dois dos mais notáveis artistas no panorama português, deixaram um marco na história da arte nacional, ilustrando as mais viscerais emoções que lhes corriam nas veias.
À sua relação, o documentário Cruzeiro Seixas: As Cartas do Rei Artur, foi dedicado. Outrora disponível na RTP Play, mas, presente na plataforma de streaming Filmin, conta-nos, através das cartas que ambos trocavam, uma incrível história de amor.
Ora platónia, ora quase carnal, a paixão era ardente, e incendeia os corações de quem a lê. Realizado por Cláudia Rita Oliveira, a história dos surrealistas é-nos apresentada de um ponto de vista muito pessoal, com declarações do próprio Cruzeiro Seixas, que nútria amor eterno ao seu querido Mário. Apesar do documentário ter sido, inicialmente, dedicado à obra de Seixas, o nome de Cesariny vinha, persistentemente, à tona, e era mencionado envolto no mais dos carinhos e emoções. Ao longo de 57 diários, compostos por apontamentos, citações, colagens, fotografias e os desaforismos, Cesariny é uma linha central nas memórias de Cruzeiro Seixas, onde a profunda admiração que por ele nútria, é mais que notória.
Inevitavelmente distante de Cesariny, de um ponto de vista terreno, a história de amor que os unia, mas, que nunca havia sido consumada, vive da memória de Seixas. «Amei muito o Mário, o que não quer dizer que fôssemos amantes, não fomos». Após a doação do seu espólio ao Centro de Estudos do Surrealismo da Fundação Cupertino de Miranda, em Famalicão, Artur por lá vivia, com desgosto. Chega, no documentário, a fazer uma menção interessante: Picasso teve Paris, e a ele calhou-lhe Famalicão. Aquele que não gostava de ser apelidado de artista, diz-nos «condecorar um surrealista… é um ato surrealista».
Descontente com muito daquilo que havia preenchido a sua vida, no passado, e no presente, Cruzeiro Seixas, era um homem simples, recatado, crítico e objetivo, e que assumia uma tristeza quase crónica. Os seus olhos eram cristais quando referia aquele que aspirava ser, se comparava, e amava perdidamente. A relação de Seixas e Cesariny é tão bonita e apaixonante, como obsessiva e confusa.
Inconformávelmente conformado com a vida, Artur nunca quis ser nada em concreto. A pintura já não o apaixonava, tal como a escrita. Nunca foi tão rico quanto os seus contemporâneos, mas também não o quis. Quem lê e vê Seixas, através da sua arte, não o reconhece nos últimos anos de vida. Um homem com um fogo a apagar, continuava a olhar para o seu passado através de Cesariny, como um objeto de retrospetiva.
Cruzeiro Seixas vivia, em persistência, no passado, nas memorias que por lá andavam. Cesariny, era um homem em constante mutação, vivia no presente, continuava com o espírito criativo ativo. A velhice foi ingrata para ambos, mas, provavelmente, Cruzeiro Seixas foi um mártir maior. Nos últimos anos de vida, Cesariny abriu as portas à intimidade, e, no seu documentário Autobiografia, fala-nos de Artur:
O Artur do Cruzeiro Seixas é como se tivesse um cérebro dividido: metade é todo luz, porque faz coisas muito belas, e a outra metade é uma confusão total, não se percebe nada; quando aquilo se baralha, é de fugir.» Apaixonado pela vida, pelas pessoas, o que mais lhe doía era a perda constante dos amigos que haviam composto o seu viver.
De um dos cadernos de Artur, temos acesso a esta citação:
O Cesariny acusava-me duramente de não assumir a minha homossexualidade perante os meus pais. Mas que ideia tem da liberdade das pessoas? Eu acho que os meus pais tinham o direito de ter a visão da vida que tinham, e isso nunca me impediu de ser mais livre na prática da homossexualidade que o foi o Cesariny.
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Dois amantes, distantes, viviam em constante saudade e sede de estar perto. Ler a sua arte, e antes, ler as suas pessoas, é das coisas mais belas que se pode fazer, quando se olha para Artur Cruzeiro Seixas e Mário Cesariny. Eternamente admiráveis, jamais inesquecíveis, o Surrealismo e a arte em Portugal fazem-lhe uma ovação que irá durar para sempre
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Licenciada em História da Arte, apaixonada por arte e fotografia, com o lema: a vida só começa depois de um bom café, e uma pintura de Velázquez.