Cosmologia da arte sonora
No início do século XX, vários pioneiros iniciaram uma viagem de exploração através dos fenómenos e processos do som. Uma via experimental que permitiu combinar as artes sonoras com as artes visuais. O Museu Reina Sofia propõe uma viagem vibrante através de uma selecção de formas, géneros, abordagens e singularidades que vão além das categorias pré-definidas de arte moderna e contemporânea até 1980.
À medida que os vários movimentos vanguardistas do século XX se foram desenvolvendo, o som emergiu no campo das artes visuais para explorar cantos criativos anteriormente desconhecidos. Os fenómenos e eventos audíveis foram transformados em materiais plásticos que podiam ser processados vocal e tecnicamente.
Coincidindo com o desenvolvimento tecnológico de novos meios de gravação e síntese de som, as artes sonoras começaram a convergir com as artes visuais, aproveitando também o vivo interesse que as paisagens sonoras da modernidade industrial e urbana e os sons do corpo fonatório (ruídos da boca, estalidos da língua, jogos com sopros, etc.) tinham despertado na sociedade.
Os criadores, ignorando as definições tradicionais das suas respetivas disciplinas, favoreceram uma série de experiências acústicas físicas e técnicas revolucionárias. Era como se uma espécie de membrana que costumava bloquear os ruídos deste mundo tivesse desaparecido dos seus ouvidos. Uma realidade audível pulsou com a vida da era acelerada e fragmentada das máquinas.
Estes sons anteriormente inadmissíveis expandiram e quebraram simultaneamente a construção muito bem definida de harmonia no sistema musical tradicional ocidental. Embora este sistema tivesse perdido o contacto com o mundo moderno, os seus protagonistas burgueses defenderam ardentemente a visão etnocêntrica das suas formas e estilos supostamente superiores. Mas os sons e os pensamentos há muito que se tinham libertado de um espartilho de regras cada vez mais rigorosas.
A partir desse momento, tudo no campo do som merecia ser examinado: todas as notações possíveis (desde arranhões feitos num disco a pegadas efémeras na areia), todas as formas de criação sonora (seja por máquinas mecânicas e electrónicas ou mesmo animais), todas as formas de encenação (mesmo num deserto ou completamente bêbado), todas as referências a estilos (desde música antiga não ocidental até às últimas tendências da música popular) e, claro, todos os efeitos acústicos (desde o silêncio a um ruído ensurdecedor).
A utilização do som como meio, deu origem às práticas mais originais e diversas imagináveis, formando como um todo, um universo muito heterogéneo de linguagens, espaços e processos sonoros multifacetados: da música fónica à síntese eletrónica, da poesia às invenções técnicas, da arte radiofónica às colagens cinematográficas, das ideias puras aos eventos multimédia, da pintura à performance ou dos encontros íntimos às composições espaciais.
Sob estes parâmetros, o Museu Rainha Sofia organizou a Disonata. Arte no Som até 1980, uma exposição que reúne quase duzentas gravações, pinturas, instrumentos, esculturas, partituras, modelos, manifestos, fotografias e filmes que foram desenvolvidos entre as primeiras experiências – feitas à luz das revoluções tecnológicas e ideológicas de, entre outros, futuristas, surrealistas e artistas do movimento Dada – e as cenas pós-punk de meados da década de 1980.
Uma vasta gama de projetos extremamente variados é implantada entre os dois pólos. O excecional Pavilhão Philips de 1958, por exemplo, com o seu espetáculo espacial multimédia, destaca-se, tal como uma grande variedade de peças com ligações mais ou menos explícitas a grupos e movimentos tais como lirismo, poesia sonora e visual, art brut, CoBrA, arte cinética, novo realismo, Fluxus, Zaj, arte conceptual ou Pop Art.
A exposição convida o visitante a descobrir múltiplas perspectivas com base no conteúdo e na estética das obras no espaço. Os responsáveis pela exposição pretendem iluminar a forma como as principais tendências e temas sonoros do século XX estão relacionados e se sobrepõem, bem como as descontinuidades. É uma exposição que se apresenta como uma verdadeira dissonância, uma composição que reflecte e ao mesmo tempo transforma as formas canónicas dentro da cultura sonora. Liberta os sons para ressoar com toda a sua intensidade e variedade entre nós e o espaço.
Isto não só amplia a nossa compreensão da arte sonora para além do conhecimento padronizado, mas também oferece ao visitante a possibilidade de se ver reflectido neles e perceber que o silêncio, os tons, o som e o ruído estão intimamente ligados ao nosso mundo de ideias. Em suma, é uma forma de descobrir que somos capazes de interpretar esse mundo pelos nossos ouvidos, talvez até mais do que pelos nossos olhos. É por isso que as experiências sonoras que têm sido feitas desde o início do século passado são ainda hoje tão vibrantes e fascinantes como sempre.
De 23 de setembro de 2020 a 1 de março de 2021
Este artigo foi traduzido do original em inglês por Rui Freitas
O artigo original foi publicado em @Descubrir el Arte
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