(Imagem em destaque – Samuel Rohrer, 6 de Novembro de 2017)
É tudo uma questão de equilíbrio
Suíço residente em Berlim, Samuel Rohrer tem-se afirmado como um dos mais criativos e originais bateristas / percussionistas da actual cena europeia. Músico de grande versatilidade, tanto capaz das mais subtis pinceladas atmosféricas como de intensos “grooves”, encontramo-lo em contextos tão variados como um certo jazz nórdico muito associado ao “som ECM”, entres outros “jazzes”, a improvisação total sem barreiras estilísticas ou, mais recentemente, a música electrónica exploratória, contando ainda com colaborações com o conhecido DJ Ricardo Villalobos ou artistas como Laurie Anderson ou Nan Goldin. Também produtor, fundou em 2012 a editora Arjunamusic Records, na qual tem lançado, desde então, a maior parte do seu trabalho. Conversámos com ele sobre alguns dos seus principais projectos e inspirações e, sobretudo, sobre a sua abordagem criativa…
Na biografia do teu “site” pessoal és descrito como “nómada e cidadão do mundo”, um músico que, com grande curiosidade e de modo muito espontâneo, “viaja” por toda uma série de diferentes paisagens, musicais e não só, e parece sentir-se em casa em praticamente todas elas. É como se houvesse uma espécie de incorporação orgânica de todas essas experiências que, depois, contribuem gradualmente para moldar um músico genuinamente versátil. Não será, em última análise, difícil (ou mesmo impossível) traçar uma linha precisa que separe experiências musicais de experiências não-musicais?
Quanto mais toco e me concentro em criar música, menos me interessam formas dadas à partida ou interrogações quanto à origem das coisas. A ênfase deve estar, para mim, na pura expressão. A forma musical vem essencialmente de se ter experiência com música, é uma questão de sensibilidade em relação ao tempo e à dramaturgia. Mas o modo como o conteúdo é tratado e moldado pode advir de toda e qualquer espécie de fontes ou experiências, e muitas delas podem nada ter que ver com música. Em última análise, é uma questão de gosto e de como são filtrados e conjugados todos os ingredientes. Som combinado com dinâmicas, pulsação / fluidez, estabilidade / flexibilidade, com texturas e timbres, com técnica e sempre com uma visão abrangente em relação a onde estamos no seio do processo de composição. Tudo isto pode contribuir no sentido de uma criação pessoal. Sobretudo quando somos capazes de deixar para trás qualquer espécie de vontade. Para mim, os melhores momentos surgem quando diferentes camadas se articulam entre elas, mas, ao mesmo tempo, cada uma continua a valer por si. Isto funciona quando todas essas camadas forem livres em relação a quaisquer estilos ou ideias pré-concebidas. E, assim, tudo entra subitamente em ressonância.
Neste contexto, é uma questão de interacção sem que a individualidade seja perdida. A minha maneira preferida de viajar é aquela em que não tenho destino final marcado. Dispomos de um quadro temporal e da nossa própria presença e dedicamo-nos por inteiro ao que vier. Acabaremos por ir dar a lugares inesperados. O mesmo acontece na música. Entramos numa prisão assim que temos expectativas. Para mim, a verdadeira improvisação é sinónima de transporte de energia sem forçar ou trazer ideias previamente pensadas. E, mesmo quando o resultado sónico desta energia é muito subtil, a intensidade envolvida pode ser enorme. Viajar no sentido de se estar em constante movimento é o melhor ensinamento possível: deixarmo-nos ir sem saber o que virá de seguida até aceitarmos tudo isso.
Poderias referir algumas das tuas principais inspirações (musicais e não só, incluindo outras formas de arte, filosofia, etc.)?
Em boa verdade, essas inspirações estão sempre a mudar. No início fui muito influenciado por John Coltrane e Wayne Shorter, por exemplo. Mais tarde, tornaram-se muitíssimo diversas: posso referir Stravinsky, John Cage, Bartók, Ligeti, Hannah Arendt, Anselm Kiefer, Sebastião Salgado, Marina Abramovic, os escritos de Castañeda… Passar tempo na natureza, a filosofia hindu, a arquitectura no geral, o meu avô… Descobri Georg Friedrich Haas recentemente… Estou agora a ler um livro sobre a memória e a energia da água em livre flutuação. Temos a tendência para forçar aquilo que é suposto ser totalmente livre a ter uma forma (ao falar nisto, regressamos à questão da improvisação: se a música flutuar, sempre em movimento e ligada a todas as possibilidades, então torna-se verdadeiramente livre e rica). Em última análise, as fontes de inspiração são incalculáveis, é impossível reduzi-las a apenas algumas. Inspira-me sobretudo mergulhar no processo criativo, assim como o encontro com certas pessoas.
Intelecto e coração
Envolves-te em projectos de grande abertura, nomeadamente de improvisação total, e diria que és um daqueles músicos que chegam com frequência àquilo a que Craig Taborn (referindo-se a um estado ideal para abordar este tipo de criação musical mais espontânea) descreveu como uma «combinação entre o racional e o irracional», na medida em que te deixas levar (ou libertar), mas sem comprometer um certo sentido composicional da música que vai emergindo no momento. De modo semelhante, numa entrevista recente, falaste em «combinar intelecto e coração», assim como na capacidade de, ao mesmo tempo, «analisar e não saber de onde vem e para onde vai a música». Terias algo mais a dizer a respeito desta maneira de abordar a criação musical? É que são muitos os músicos que, mesmo no domínio da improvisação livre, tendem a ser ora demasiado cerebrais e ligados a estratégias ou formas previamente trabalhadas, ora demasiado “anticomposicionais” e centrados apenas num nível imediato (básico) de interacção, sem chegarem a contribuir para a construção de uma “narrativa” distintiva…
Como dizes, trata-se de uma questão de equilibrar todos os ingredientes necessários à criação de algo completo. Espontaneidade não implica falta de solidez, permite-me antes flexibilidade e subtileza, assim como não recear a tensão que posso produzir num determinado contexto. Tensão e distensão. Precisamos de ambas. Além disso, o significado de qualquer palavra que eu possa proferir pode mudar consoante o contexto da sua aplicação. Ou justamente ao contrário. Flexibilidade não significa reagir constantemente a tudo o que acontece. Pode também significar tranquilidade, escutar com muita atenção e mergulhar lentamente em algo novo. Tem muito que ver com a consciencialização. E com a escuta. Escutarmo-nos a nós próprios e não apenas aos outros é essencial. Escutar o todo. Muitas vezes, é como sentir que damos um passo atrás e que escutamos do exterior. Isto requer uma grande confiança nos restantes músicos. E mesmo de um não-consenso pode resultar música de grande profundidade. Na verdade, não é fácil falar sobre isto, até porque se trata de um processo em que o intelecto nem sempre tem um papel relevante. É até difícil para quem cria este tipo de música. Encontrar palavras que a capturem de forma adequada não é nada evidente, correndo-se até o risco de, na tentativa de o fazer, cair na banalidade.
O que significa realmente para ti a noção de “liberdade” musical (ou criativa)? E a de “improvisação”? Crês que estas noções são por vezes mal interpretadas?
O meu ideal é de ser o mais livre possível em tudo o que faço. Esta é uma das maiores aspirações que podemos ter na vida: tornarmo-nos seres livres, de mente livre. O facto de o nosso cérebro nos dizer a toda a hora que devemos experienciar e exprimir tudo intelectualmente condiciona profundamente a nossa visão das coisas, dos outros e de nós próprios. Urge, por isso, a fim de romper com isto e avançarmos no sentido dessa liberdade, conseguirmo-nos desligar de tudo aquilo que queremos e tentamos ser, o que não é nada fácil. Ao mesmo tempo, a liberdade assusta-nos, pelo que procuramos de imediato formas e regras às quais nos possamos agarrar. Diria que experienciar a absoluta liberdade na música se tornou para mim a essência da criação musical, mas isso está longe de significar que vale tudo.
Talvez seja até o oposto: quanto mais livres formos, maior poderá ser a concentração em relação àquilo que realmente queremos dizer. É provável que se trate de uma concentração na presença. E, aí, as coisas acontecem. Temos de ignorar ideias de sucesso ou fracasso, ganhar ou perder. Há mesmo que combater um certo tipo de astúcia. O astuto sabe sempre a resposta, mas não é capaz de reconhecer que, muitas vezes, não há sequer pergunta. Por outro lado, há uma astúcia intuitiva que não precisa de perguntas ou respostas, que é livre em relação ao intelecto. E, para mim, a complexidade não significa que algo seja difícil, mas talvez que é inexplicável ou até “misterioso”. Não me interessa tanto ouvir música difícil, mas música difícil de explicar e impossível de capturar, e que até pode ser muito simples. É aí que reside aquilo a que chamo mistério e que tanto me atrai. É provavelmente isso que me mantém activo, à procura. Criar o desconhecido sem ter essa pretensão. Gosto de simplificar sem deixar de criar uma certa complexidade.
Creio que as coisas só funcionam realmente quando nos abrimos às infinitas possibilidades que estão, a toda a hora, por todo o lado, aceitando o risco de nos podermos perder e não encontrarmos nada de interessante. Mas, uma vez mais, há o cérebro e as expectativas a querer ditar aquilo que está certo ou errado. Para se ser um verdadeiro improvisador, na vida ou na música, é preciso, antes de mais e como já disse, ter a capacidade de nos escutarmos a nós próprios. É aí que reside o primeiro passo para a tal liberdade, o que nem sempre é fácil. O sistema em que estamos envolvidos não nos quer ver livres, antes pelo contrário. O mundo está repleto de distracções. Tem de haver alguma razão; há certamente quem, ao contrário de nós, lucre muito com isso.
Risco de queda
Fala-se, com frequência, da improvisação enquanto “prática social”, assim como de uma dimensão “espiritual” da improvisação. Identificas-te com alguma destas noções? Se sim, em que sentido?
Uma vez mais, é uma questão de equilíbrio entre o racional e o irracional. E acredito que o lado irracional é bem maior, porque é mais leve. Tudo o que é racional é pesado, requer espaço e a nossa atenção, visto que o intelecto o liga a tudo aquilo que conhecemos (há meios para, até certo ponto, nos libertarmos desses constrangimentos e permitirmos que as coisas sejam realmente aquilo que são, mas isso seria mais uma longa história…). O irracional, precisamente essa dimensão espiritual, está logo aí, vazio. E pode tornar-se toda a espécie de coisas. A verdadeira improvisação é profundamente espiritual porque deixamos que a música aconteça através de nós. É um estado de absoluta concentração ou vai até além disso, ainda que não deixemos de estar conscientes e preparados para tomar decisões, inclusive mudanças de direcção. Quanto à questão social, a improvisação poderia, de facto, contribuir para o modo como encaramos a sociedade e as relações. Mas tenho dúvidas de que a maioria das pessoas esteja disposta a isso. Também aqui, a aparente segurança e as estruturas previamente aprovadas parecem mais importantes do que a liberdade que arrasta consigo um maior risco de queda.
Actualmente, lideras ou co-lideras grupos como o trio electro-acústico Ambiq (com Max Loderbauer e Claudio Puntin), um duo com o pianista holandês Harmen Fraanje, um trio com Klaus Gesing e Björn Meyer e os quartetos Noreia (também com o Claudio, Peter Herbert e Skúli Sverrisson) e com Daniel Erdmann, Frank Möbus e Vincent Courtois. O que podes dizer sobre estes projectos? Há planos para uma gravação do duo com Fraanje? E que mais projectos virão num futuro próximo?
O meu principal projecto é a editora, até porque é nela que procuro agrupar a maioria dos grupos em que estou inserido. É ambicioso, claro, sobretudo tendo em conta que o mercado para este tipo de música é bastante restrito e que o nome e a reputação de uma editora não é, regra geral, algo que se construa de um dia para o outro. Mas é justamente a longo prazo que prefiro pensar: criar algo que valha a pena e que possa continuar a ter real interesse no futuro e não apenas gravar um disco por surgir uma oportunidade; tem de haver algo mais do que isso. De momento, estou a trabalhar num novo conceito para um outro álbum a solo e começámos aos poucos a gravar alguma música nova com os Ambiq. A editora BMC, de Budapeste, convidou-me para gravar no próximo ano, com Harmen Fraanje e Iain Ballamy. Gravarei também, ainda este ano, com Eivind Aarset e Jan Bang. E continuarei a tocar regularmente com Nils Petter Molvaer, em duo e em trio (com Eivind Aarset).
Poderias falar-nos um pouco do teu álbum a solo “Range of Regularity”, e nomeadamente a respeito do seu processo criativo?
Foi desenvolvido a partir de improvisações. Gravei-me durante muitas horas e a certa altura apercebi-me de que me interessava ir além da habitual gravação e edição e passar a todo um trabalho de produção. Fui ouvindo aquilo que gravara em busca de material que me surpreendesse e sobre o qual me interessasse trabalhar. Foi algo que senti que, mais tarde ou mais cedo, teria de fazer. No entanto, não tenho dúvidas de que, em futuros trabalhos a solo, irei regressar a uma abordagem livre deste tipo de edições a posteriori. Também para poder tocar mais ao vivo. Quero mesmo evitar “loops” ou “samples” preparados, inclusive em gravações. Quando toco, tenho apenas duas mãos, pelo que, embora esteja a trabalhar no sentido de ter um vasto leque de possibilidades sonoras, as camadas são reduzidas. Mas também não pretendo que isto se torne apenas uma performance de bateria. Interessa-me muito explorar as múltiplas possibilidades que hoje temos, mas sem me afastar demasiado do carácter acústico da percussão e de todas as diferentes sonoridades que esta oferece. Tenho também interesse no espaço entre a repetição regular e a irregular, na forma como surge e como essa repetição é sentida. Vindo de um contexto musical em que é frequente não haver muita repetição, criar uma música mais repetitiva, minimalista, mas ao mesmo tempo com constantes mudanças, levou-me a pensar em possíveis padrões livres dentro da própria regularidade.
Parece-me reinar na nossa era uma obsessão com categorias e classificações. Será que um rótulo como “jazz” (ou algo como “jazz contemporâneo” ou “jazz criativo”) faz alguma justiça à tua própria música? E algo aparentemente mais aberto como “música criativa”? Na verdade, poderá alguma vez este tipo de rótulos fazer justiça à música (ou à arte, no geral)?
Se falamos de arte ou de qualquer outra espécie de criação inspirada, falamos de algo que emerge de um processo criativo. Como é que isto alguma vez se pode harmonizar com categorizações? E, além disso, estas não descrevem a música. Muito daquilo que é apelidado de criativo soa-me bastante previsível. Muitas vezes, a intenção por detrás da criação não advém da inspiração, pelo que nada tem que ver com a ideia de se ser criativo. De facto, usado como um simples rótulo estilístico, o termo “criativo” deixa de ter qualquer sentido. Algo como “música aventurosa” seria talvez um dos poucos rótulos que aceitaria, isto porque não se refere a estilos previamente determinados, mas a uma abordagem, a um estado de espírito. Não será que toda a genuína aventura inclui variadíssimas decisões e pensamentos de natureza criativa?
Concentrado na música
Apesar de se tratar de uma editora pequena, a Arjunamusic conseguiu, em pouco tempo, conquistar um espaço bastante próprio. É ecléctica, mas apresenta, ao mesmo tempo, uma forte unidade e coerência, decisiva para o seu equilíbrio e o seu carácter distintivo. Curiosamente, vejo aqui, também, afinidades contigo enquanto músico. Poderias falar-nos deste projecto, incluindo as motivações iniciais, o caminho já percorrido, bem como as perspectivas futuras?
Sabia que poderia ganhar muito em liberdade com este projecto, que implica, no entanto, uma grande responsabilidade. Deu-me toda uma clareza adicional, levando-me a seleccionar aquilo em que me envolvo com maior cuidado. Desde o início que sabia que não haveria necessidade de criar mais uma editora de jazz. Procurei antes algo que tivesse uma ligação íntima com a minha própria música. Na verdade, esta tem mesmo vindo a beneficiar, nomeadamente em termos de consistência, com este projecto. Trata-se de um processo constante, mas que me ajuda a ponderar melhor certas decisões artísticas: sendo eu próprio o editor da minha música, tenho de ter a certeza que aquilo em que vou apostar vale mesmo a pena; só assim as coisas podem funcionar. Deixo de estar dependente de terceiros, mas, ao mesmo tempo, a avaliação que faço da minha música requer um cuidado ainda maior. É um trabalho de composição a todos os níveis. Em última análise, a editora tanto simplifica como complica as coisas. Mas devo dizer que me atrai esta complexidade dentro da simplicidade. Há muitas ideias a aguardar florescimento. Nos próximos meses estarei mais preocupado em criar música nova e não tanto em questões editoriais. É importante conseguir manter um certo equilíbrio, a fim de não ser demasiado afectado pela logística ou pelo planeamento. Por enquanto só preciso de me concentrar na música…
Poderias também falar-nos um pouco da tua experiência com músicos portugueses? João Paulo Esteves da Silva é o primeiro nome que me ocorre a este respeito, mas sei que também tocaste com Carlos Bica, que, tal como tu, reside em Berlim. Mais alguém? Que impressões tens da cada vez mais dinâmica cena musical deste país? E o que comentas sobre o novo trio com João Paulo e Mário Franco, cujo disco de estreia, “Brightbird”, sairá muito em breve na tua editora? Não será este grupo um bom exemplo do tipo de liberdade a que aludíamos há pouco?
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Na verdade, não conheço assim tantos músicos portugueses, mas todos aqueles com que toquei são fantásticos. Gosto muito da sua abordagem poética à música e à improvisação. Com o João Paulo e o Mário, gravámos um disco com lançamento marcado já para daqui a duas semanas. Foi uma sorte termo-nos encontrado aos três. Existe entre nós um excelente equilíbrio entre uma abordagem aberta e destemida e o material melódico e harmónico improvisado que nos leva para certos terrenos comuns, mas que pode ser desconstruído a qualquer momento. Na verdade, ainda não tocámos muitas vezes juntos e tenho a certeza de que a música, assim como essa liberdade, pode ir ainda muito mais longe mal comecemos a tocar com maior frequência. Espero que isso possa acontecer já no próximo ano.
O artigo: É tudo uma questão de equilíbrio, foi publicado @Jazz.pt
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