Também o tempo torna tudo relativo.
Este artigo foi inicialmente publicado há mais de 8 anos, pode estar desatualizado.
Entre pautas e estiradores
Quando Goethe afirmou que «Arquitetura é música petrificada», estava certamente longe de imaginar que, séculos mais tarde e a quilómetros de distância, a fusão entre ambas seria estudada com afinco obsessivo por investigadores[1] e o tema explorado com deslumbramento por leigos e interessados nas duas artes, nas duas matérias, ambas filhas da aritmética.
Ao longo desta jornada, que atravessa continentes e épocas, da qual este texto é apenas um tímido apontamento de viagem, procurei reunir alguns dos exemplos mais exuberantes desta fusão de linguagens e de gramáticas. São nomes que fazem parte da minha história pessoal, recente ou ancorada na infância, e nos quais nos poderemos todos rever um pouco.
Chico Buarque é o primeiro encontro da viagem, antes de tudo como compositor e letrista de exceção, logo como escritor e escultor da palavra cantada e escrita, palavra-prosa, palavra- poema; Chico teve também uma fugaz relação (formal) com a Arquitetura, curso que chegou a frequentar antes de se deixar absorver pela música. Da sua obra diversificada na chamada MPB, entre samba e bossa nova, Chico construía verdadeiros edifícios de ideias, sobrepostas, transpostas para o quotidiano, com uma malha irrepreensível de rigor e uma emoção universal e humanista.

Ao seu conhecido tema Construção, bem a propósito, associa-se uma força rara, elástica, feita de materiais resilientes, que não deixa de constituir simultaneamente um manifesto crítico e uma demonstração clara de resistência, além de um objeto estético de inestimável valor.
Chico não se tornou arquiteto, mas se o fosse teria certamente levado para a profissão essa liberdade e subtil rebeldia que guiaram os seus passos na música, e, mais recentemente, na literatura.
Logo penso em André Mingas. Como não fazê-lo? André Mingas faz parte da minha educação musical de base; ele soube, como ninguém, fundir semba com jazz, sobrevoar estilos sem se tornar escravo de nenhum. Livre de etiquetas e de condicionalismos rígidos, André cantou o amor, a mulher, o desejo, a terra, em várias línguas, sempre com aquela dicção que lhe era tão característica, e aquele modo de entoar inconfundível, como se fosse fácil fazê-lo, como só ele sabia e intuía. Ele reinventou consoantes, pronúncias, modos de dizer e de articular, casou sons com sílabas com suavidade e elegância. Assim como Chico, André (à semelhança do irmão Ruy, músico e diplomata) provinha de uma família de artistas, predominantemente, tendência que se manteve nas gerações seguintes (Katila, Ângela, por exemplo).
E voltamos a esbarrar na eterna e gasta questão, sobre a hipotética prevalência dos genes sobre a educação e o meio, as interações sociais. Neste caso, fruto da genética ou influências ao logo da vida, provavelmente nunca André teria escapado a este destino que o levou até todos nós e muito para além de nós. Destaco alguns dos seus mais belos temas (É Luanda, Tons de azul, Esperança e O que eu quero), em que a palavra é usada com delicadeza e paixão, equilibrada por melodias flirtando com semba, jazz e, claramente, a bossa nova.
Mas se André foi um músico marcante, foi também arquiteto e docente, conhecido e reconhecido no meio entre Luanda e Lisboa, tido como um comunicador carismático e versátil, dono de um grande coração, cujas aulas eram sempre muito concorridas. (E eu também lá estaria nas primeiras filas do anfiteatro, com toda a certeza, se fosse possível atravessar esse portal do tempo que nos colocasse agora no mesmo espaço físico, por teletransporte).
E nesta peregrinação de programa aberto, faço uma paragem obrigatória e respeitosa junto à figura de Iannis Xenakis, o músico, arquiteto e matemático francês de origem grega e naturalidade romena, cuja obra foi analisada e observada, há alguns anos, numa Conferência em torno do tema «Evocando Xenakis – A Música no Espaço: Diálogos entre Música e Arquitetura» dedicada a aprofundar uma reflexão sobre a relação próxima entre Música e Arquitetura. Iannis foi um exemplo transparente de como Música e Arquitetura se fundem e se influenciam mutuamente, artes que dialogam num nunca acabar de intromissões e penetrações mútuas. Arquiteto e engenheiro civil de formação, tendo chegado a trabalhar em estreita colaboração com Le Corbusier, foi também um aplicado estudioso de composição, tendo incluído nas suas obras musicais numerosos elementos de Arquitetura e da Matemática.
Depois de Brasil, Angola, França (e eu propus um passeio interminável, lembram-se?), aterro, deslizando, num arquipélago com o qual partilhamos língua, sentimentos, sabor e História. Uma terra marcada pela emigração, que olha para o futuro através do mar e da saudade, e desenha o seu lugar entre a Europa e a África, num caminho muito seu, longe da solidão autárcica a que alguns a quiseram condenar.
Apetece dizer simplesmente, como Mário Fonseca, esse grande nome da poesia cabo-verdiana: Mon Pays est une Musique.

Aqui encontro Frederico Hopffer Almada, conhecido por Nho Nho (porventura o seu alter ego), arquiteto e músico (na mesma medida e com o mesmo à vontade, a mesma convicção e entrega), que se move com naturalidade nesses dois mundos.
É difícil ficar imune ao sabor dos ritmos de Cabo Verde (a morna, omnipresente, mas também a coladeira, o batuque e o funaná); no arquipélago quase todos têm uma forte ligação à música, dela se nutrem e nela se expressam.
Frederico é um artista multifacetado: o seu primeiro CD, intitulado Nhara de Santiago, em homenagem à sua primogénita, do qual ouvimos alguns excertos, é igualmente um tributo à terra, uma vez que Nhara é também uma planta da ilha de Santiago (e aqui redescobrimos a influência da geografia na música, a mesma geografia que é a primordial arquitetura). Frederico inclui neste trabalho rigoroso alguns dos compositores e intérpretes mais marcantes ao longo de várias épocas; passa pela morna, incontornável linguagem nacional, mas também pelo funaná, ritmo que se popularizou no período pós-independência e se expandiu para além de Santiago. É um artista apegado a Cabo Verde e à ilha de Santiago, que exalta incessantemente. Aos amigos e à família, também e sobretudo. A sua voz é redonda, sensual e bem timbrada. Lembro aqui dois dos seus temas, Terra Madrasta e Nha Terra Escalabrode, pela interpretação contida, experiente e madura, pela sonoridade forte do acordeão – são temas que falam de saudade, emigração, seca, que associamos, hoje e sempre, ao povo cabo-verdiano; espero em breve poder assistir a um espetáculo ao vivo deste intérprete profundamente ligado às suas raízes (o qual, curiosamente, tem também uma relação com a Roménia, onde estudou, o que, na minha mente, o liga também a Iannis Xenakis).

Será arquitetura mais arte ou mais técnica, mais magia ou mais rigor? Ocorre-me que a componente estrutural que dá vida ao sonho do arquiteto é assimilável ao ritmo que faz sobressair e dá suporte à melodia. Como na Ópera de Sydney ou na Casa da Música do Porto, Arquitetura e Música, entre estiradores e pautas, são sonhos que ordenam o espaço dos humanos. Emoção e nichos de prazer e bem-estar que se apoiam na técnica e nos saberes múltiplos dos homens, nas suas desmultiplicadas dúvidas e desejos.
[1] Nomeadamente na dissertação de mestrado de Lídia Tauleigne Roque sobre o tema «Arquitectura e Música – uma Visão Estruturalista
Ajuda-nos a manter viva e disponível a todos esta biblioteca.

Talvez seja do seu interesse: DESCULPA! UMA HISTÓRIA SOBRE BULLYING
0
Escrevo crónicas, contos e poesia. Ensaio palavras entre linhas e opino sobre cinema, preferencialmente africano e lusófono. Semeio letras, coleciono sílabas e rumino ideias.