
A PROPÓSITO DE TEATRO0 (0)
9 meses atrás
Também o tempo torna tudo relativo.
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Breve reflexão sobre Teatro
Imagem em destaque: Ruby Diamond Concert Hall – Florida State University, de David Mark por Pixabay
No período conhecido como Renascimento, a Europa saía da Idade Média feudal e abraçava o Humanismo. O capitalismo nascente da nova classe burguesa incentivou o consumo da arte. Os artistas passaram a ser considerados eruditos e não simples artesãos. As artes fizeram proveito de uma nova forma de o Homem se encarar e encarar o Mundo, com novas ideias, visões, descobertas e invenções.
Apareceram as primeiras companhias teatrais, começaram a ser utilizadas grandes estruturas cénicas e apareceu em Inglaterra a cena (ou palco) Isabelina, um alongamento do palco (proscénio) pela plateia adiante que o rodeia por três lados, proporcionando uma maior proximidade do público ao palco, criando uma maior cumplicidade entre este e os atores. Nesta época o cenário e o guarda-roupa passaram a ser preocupações.
No Barroco que se seguiu, os palcos continuaram a aperfeiçoar-se e a tornar-se móveis e grandiosos. Criou-se o academismo, voltaram as unidades de tempo e lugar definidos por Aristóteles e nasceu a Ópera. Molière pôs mulheres em palco. Durante o século XVII e XVIII vários mecanismos eram adicionados à infraestrutura interna do palco, permitindo através de carris e roldanas, por exemplo, a mobilidade de cenários e, logo, uma maior versatilidade em cena.

Imagem de Wolfgang Eckert por Pixabay
Com o Romantismo de finais do século XVIII a arte abandonou (de vez?) os academismos. A pintura saiu dos ateliers para retratar vida e emoções, a escultura ganhou movimento, perdeu a polidez e perfeição de acabamentos, e o teatro incorporou tudo isto. Tal como nas outras artes, a emoção sobrepôs-se à razão, as mitologias da antiguidade foram trocadas por assuntos reais contemporâneos tratados de forma chocante e as unidades de tempo e lugar foram banidas; a liberdade verbal abandonou a erudição e as regras do bom gosto com o recurso ao calão e a expressões populares. Começou a utilizar-se a energia elétrica e os ambientes considerados excessivos e supérfluos do Barroco, foram trocados pela maior atenção à luz, uma maior dinâmica do ator e simplicidade cenográfica.
Continuando a modernização, foram introduzidos mecanismos hidráulicos e iluminação artificial. Os cenários e os figurinos tinham passado a ser pensados para cada peça; a complexidade e o rigor das caracterizações históricas e sociais levaram ao aparecimento do encenador, responsável pela conjugação dos diferentes sistemas sígnicos em palco, e do diretor.

Passava-se, entretanto, pelo realismo e naturalismo, com o forte compromisso para com a descrição fiel da realidade crua e cruel e para com a veracidade dos textos, como contraponto ao Romantismo emocional e interpretativo.
No início do século XX vários fatores influenciaram uma forte revolução nas artes teatrais: por um lado, os estudos sociológicos e os recentes estudos da psicologia, também uma nova área de estudo; a evolução política e a ascensão do fascismo na Alemanha, e um crescente inconformismo causado pelas desigualdades sociais; por outro, a crescente popularização da imprensa, das revistas, com a divulgação e a crítica; o recente aparecimento do cartaz, da fotografia e do cinema. Repudiava-se então, o que eram considerados os excessos do realismo/naturalismo, de retórica e subordinação ao texto. Saíram desta linhagem os expressionistas, os futuristas, os dadaístas, os surrealistas, Walter Gropius, (1883-1969) autor do projeto “Teatro Total”, e a própria Bauhaus, (Staatliches Bauhaus) chamando a atenção para a arte em si e para a expressão de sentimentos e emoções nos temas sociais, ao contrário da simples imitação.
O Homem libertava-se de ultrapassadas regras éticas e morais; o expressionismo exalta a cenografia e valoriza pela primeira vez o subconsciente; temos a comédia social e satírica com o inconformista Bernard Shaw (1856-1950) por exemplo; o teatro experimental, surrealista e psicológico de Cocteau (1889-1963); os existencialismos com Brecht (1889-1956), influenciado pelo formalismo russo; os vanguardistas com o realismo social de Samuel Becket (1906-1989), e Eugène Ionestco (1909-1994) com o Teatro do Absurdo, da solidão e da insignificância do Homem.

Endgame, de Samuel Beckett , Alan Mandell © The Los Angeles Times
Com o futurismo soviético e com Brecht sobretudo, surgiu a mensagem política e de propaganda, e o teatro como forma de luta. Em Itália advogava-se o poder da força e da indústria; em França sentia-se total concordância com o expressionismo alemão e Antonin Artaud (1896-1948), anarquista e surrealista, acreditava que o teatro deveria sair das salas para as ruas e para as fábricas, em estados de encenação interativa e textos coletivos.
A partir da década de 60/70, dava-se início ao abandono de quase todas as regras preconizadas até então. O encenador e diretor Josef Svoboda (1920-202), torna-se um dos primeiros a encarar a cenografia como parte integrante da acção dramática, aplicando espelhos, projecções laser e adaptação da luz a contextos dramáticos específicos; misturando performances ao vivo com projeções em ecrã, associando imagens televisionadas, e sons distintos com imagens apresentadas no local, multiperformativas.
Com a arte total, com o recurso à multimédia passou a usar-se em palco a reprodução e difusão eletrónica, a imagem em cena com o uso dos ecrãs de televisão, a cena dentro da cena; também o próprio cenário e o palco ou a ausência dele alargaram conceitos, com o surgimento dos happenings e do palco urbano, com a interação direta com o público e introdução deste no espetáculo; a genuína e interior liberdade de expressão; a criatividade “provocada” pelas novas possibilidades; a integração da luz com o som, com o movimento e com o próprio ambiente – estava em curso a Revolução Cenográfica e iniciava-se então uma nova disciplina: a cenografia.

A Lição, de Eugène Ionesco – Sara Barros Leitão e Miguel Seabra, Teatro Meridional (Lisboa)
Desde os happenings, à expressão conceptual, tudo pode ser representado “performativamente”. Os artistas passaram a integrar nas suas performances teatrais valências técnicas, cénicas e temáticas, aparentemente sem limites. Para além do vídeo, recorreram a variadas formas multimédia, criaram espetáculos transmitidos em direto e em simultâneo em diferentes locais, cenários urbanos, cenografia industrial ou natural, e cada vez mais a interação com o público e participação deste (como La Fura dels Baus), utilização de robôs e cenários compostos por um painel de monitores de vídeo transmitindo imagens distorcidas por ímanes em palco, ou aquários como fundo, pelo académico Nam June Paik (1932-2006) são disso exemplos.
Com a eletrónica e o digital, usados tanto na representação, como na divulgação, e difusão, abriu-se um amplo leque de novas expressividades, mas a questionar-se por força destas o sentido de medium, ou seja, onde começa e acaba o teatro para passar a ser outra coisa. Qual é a forma da mensagem artística?

Imagem de PIRO por Pixabay
Aristóteles considerava que “a tragédia deve corresponder a uma só revolução solar como tempo. A ação deve passar-se num só lugar”. O teatro começou por ser o evoluir de uma peça confinada a um palco, onde o ator evoluía comunicando num único sentido com o público, recetor estático numa plateia. Hoje nenhum destes elementos é estanque e qualquer um pode alterar o seu estatuto no decorrer da performance. Começou a usar-se a expressão Artes Performativas, e a ser necessário repensar todos os conceitos anteriores e olhar para a estética a partir de novas perspetivas. Reforçava-se a, já surgida no início do século, evidência da necessidade de “reinvenção” do conceito de arte e reinterpretação da linguagem estética, na medida em que, entre outras coisas, quebrava-se indelevelmente a, já há algum tempo dúbia linha separadora entre ator/palco vs. público/plateia.
Na mesma bandeja poderão incluir-se os happenings e a arte conceptual, que a seu tempo também exigiram um lugar e forçaram a abertura de conceitos.
O teatro em si compõe e apresenta-nos um “caldo” de elementos comunicativos como talvez nenhuma outra forma de expressão artística ou não, de comunicação no seu todo e em conjunto, nos proporciona num só meio, ou através de um só medium. Este universo combina-se num grupo de sistemas extremamente dinâmico, que evolui em si e que cresce com o evoluir da técnica/tecnologia e das novas apetências por renovação inerente às artes.
Quando assistimos na televisão a uma peça de teatro filmada “ao vivo” qual é o medium através do qual nos chega a mensagem? O conceito torna-se eventualmente confuso ou ambíguo. Estaremos a ver teatro ou televisão? Walter Benjamin (1892-1940) definia como aura aquilo que faz com que uma representação seja única, aquele momento, aquele local e a necessidade de o autor se “adaptar, ao longo da representação, às exigências dos espectadores“ fruto da submissão “aos testes óticos” como ele referia – a apreciação do público in loco.

Então uma peça de teatro gravada para a televisão e visionada à posteriori não é teatro? É, segundo o autor, proporcionando, por falta da aura, a “ilusão em segundo grau”. A mensagem não é direta, mas está presente. O filósofo da comunicação Marshall McLuhan (1911-1980) por outro lado, afirmou que: “com a TV, não é tanto a mensagem que é enviada, mas sim o mensageiro”. Então em que fica um écran num palco? Qual é o mensageiro e a quem se dirige a mensagem em primeiro plano? A evolução das artes em geral e do teatro em particular, não se coaduna com definições estanques e se calhar nem sequer com definições. Aristóteles achava que a arte expugna o real das suas imperfeições criando um mundo melhorado, fantástico e infinitamente belo, trazendo aos homens a felicidade, contribuição para a sua realização. Os artistas em geral fazem disto a verdade todos os dias em todos os tempos e o teatro continuará sempre a ser Teatro.
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Jornalista, Diretor. Licenciado em Estudos Artísticos. Escreve poesia e conto, pinta com quase tudo e divaga sobre as artes. É um diletante irrecuperável.