Prazer Camaradas
Filmado em 2018, foi presença portuguesa no Festival de Locarno em 2019, e, no mesmo ano, no DocLisboa. Realizado por José Filipe Costa, somos transportados para um coletivo de memórias nacionais, tradições que persistem e assuntos mal discutidos, que ainda hoje são considerados tabu.
Uma das primeiras reações que obtive ao filme foi «imagina ouvires os teus avós a falar abertamente das suas experiências sexuais… agora, perspetiva-o no big screen». Ora, é isso, e muito mais. Este formato de documentário, bem encenado e cujas personagens da vida real souberam dramatizar, não pode, nem deve ser pragmatizado.
Estamos num Portugal pós 25 de abril, numa cooperativa ribatejana, como tantas outras, por esse país fora. Um Alentejo, onde Costa nos propõe ouvir os testemunhos de portugueses e estrangeiros que conviveram por lá, na mesma altura. Com base em memórias escritas, e conversas com muitos destes «protagonistas» da história, conhecemos homens e mulheres, uns de personalidade bem vincada, outros mais recatados, e escutamos as suas experiências de vida, num Portugal revolucionário, mas ainda tão conservador.
E, foi através das histórias que os unem, como pano de fundo, que se começaram a desenlaçar conversas sobre namoricos, intimidades e relações. Aqui, estão expostos temas, que, na sua maioria, percorrem a sexualidade feminina, a opressão e repressão da mulher, o assédio, o abuso sexual, o aborto e a necessidade do consentimento. Mas, o realizador não se esqueceu de apontar a masculinidade tóxica em que muitos homens, particularmente à época, eram criados, e citando uma personagem do próprio filme, os rapazes «já eram pequenos tiranos em crescimento».
A presença de mulheres estrangeiras, que ali estavam por opção e livres de escolha, solteiras e longe de pensarem em constituir família, chocava, fortemente, com a vida destas portuguesas que desde cedo assumiam o papel de cuidar da casa, dos filhos, e dos próprios maridos, perdendo o direito a terem uma vida para si próprias.

Durante todo o filme, existem diversas cenas absolutamente cómicas e irónicas, com o objetivo de serem altamente críticas para com as situações representadas. Mas, são as outras que trazem consigo pesos emocionais fortíssimos. Destaco a cena que as várias mulheres, no tanque, lavam lençóis brancos, símbolos de pureza e virgindade, e relatam as suas primeiras experiências sexuais, a sua inocência, desconforto e pleno desconhecimento de toda esta realidade. Contam ainda que as mães não se atreviam a falar sobre sexo, ou pelo menos, sobre o que fazer quando este surgisse.
Conhecemos histórias de abuso e superação, como a de Olga, que, já numa idade mais velha, deixou o marido para, finalmente viver e conviver com o seu corpo, exatamente como ela queria. Libertou-se dessa prisão que lhe trazia tanta infelicidade, e estava a agora dona e senhora de si mesma.
Conhecemos os intervenientes já idosos, e os homens permanecem com uma mentalidade tacanha e de pouca compreensão, à exceção de alguns. Contrastando com as mulheres, que demonstraram uma maior liberdade em falar sobre o tema, e um brutal crescimento ao nível dos papeis de género, já não assumindo que todo o trabalho doméstico deveria recair sobre elas.
Este filme percorre as várias vertentes da sexualidade, mas também da feminilidade e do empoderamento feminino. A presença de mulheres estrangeiras trouxe o contraponto e a outra face da moeda, de mulheres que viviam, e vivem mais livres e consciencializadas para a necessidade de uma mudança drástica nos padrões de género.
Vale muito a pena ver e discutir e refletir sobre Prazer, camaradas! , que nos traz assuntos que, surpreendentemente, ainda são pouco ou nada falados, e muitos deles absolutamente encobertos.
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Licenciada em História da Arte, apaixonada por arte e fotografia, com o lema: a vida só começa depois de um bom café, e uma pintura de Velázquez.