Richard Sorce
Richard Sorce deu os primeiros passos na música, quando aos oito anos começou a aprender acordeão, mas confessa que a sua preferência foi sempre o piano. Conta-nos que, segundo a sua mãe, desde criança tinha o “ouvido colado ao rádio” e que, independentemente do que estivesse a fazer, quando certas melodias passavam, toda a sua atenção se focava na música.
“Lembro-me que desde o início das aulas, mostrava ao meu pai como certas músicas que eu tinha de praticar soavam melhor quando eram reharmonizadas ou embelezadas com fatores de acorde adicionais. Sinceramente, não sabia porquê, já que na altura não tinha qualquer formação em teoria e harmonia musical.”
Por volta dos dezoito anos começou finalmente a aprender piano (felizmente, digo eu).
Hoje é professor no Ramapo College e na Universidade William Paterson desde 1999. Fez parte do corpo docente da Universidade de Nova Iorque como professor de Teoria, Treino Auditivo, e Composição e foi ainda diretor do programa de Teoria Musical.
Perguntámos-lhe o que acrescenta a vida de um músico, ser professor de música.
Richard Sorce – Partilhar as nossas experiências profissionais com músicos universitários é uma experiência muito gratificante, e em que somos realmente obrigados a passar esse conhecimento para a próxima geração de músicos.
Recorda-se da primeira peça que compôs, mas também se recorda que veio mais tarde a perceber que se tratava de uma variação de um trabalho existente que terá ouvido algures.
Mas a primeira peça verdadeiramente original intitulou-a Windsong, é uma obra para piano solo.
Artes & contextos – Consegues identificar o momento em que a tua criatividade, associada ao teu gosto, se virou para a música brasileira?
R.S. – Depois dos meus primeiros anos com o acordeão, passei para o piano e estudei os clássicos; juntamente com estas aulas também estudei teoria e prática auditiva. Alguns anos depois de terminar o liceu, entrei num conservatório como licenciado em piano e, posteriormente, num curso de teoria e composição. Embora a minha concentração fosse na Tradição da Europa Ocidental, também tinha interesse no jazz e na música atual e, como resultado, formei a primeira de muitas bandas em que incorporei a “melhor” música atual, bem como algumas peças brasileiras que tinham aparecido nas tabelas de vendas. Foi nessa época que me senti inspirado para tentar escrever músicas de influência brasileira. Acredito que a primeira melodia brasileira que me chamou a atenção foi Meditation. (N. da R. Meditação, de Tom Jobim).
Bossambal Brazil, (Bossambal é um neologismo criado por Richard formado por: Bossa, Samba e Baladas) o quarto disco de Richard Sorce, continua a senda da exploração e reconfiguração dos sons brasileiros que o apaixonaram há muito. O Samba a Bossa Nova e as Baladas, são fonte de inspiração e matéria-prima para este, afinal, músico de Jazz.
A&c – Neste teu quarto álbum, continuas devoto ao Samba e à Bossa Nova. Adaptas a musicalidade brasileira ao teu Jazz ou adaptas o teu jazz ao Samba e à Bossa?
R.S. – Adapto o Jazz.
Este disco é uma viagem de 3 caravelas em sentido contrário, desta vez partem de Monte Pascoal carregadas de bossas, sambas e baladas. Sorce, o comandante desta expedição, opta pela ausência das palavras e aponta para harmonias doces, arranjos delicados e cria um mar de açúcar para melodias mágicas e improvisos, de sopros, pianos e guitarras.
Como um sextante afinado, no leme temos uma secção rítmica fabulosa, um som de baixo yoga e percussões translucidas.
O tema Ballad for Claudio é daqueles para ouvir, ouvir e ouvir.
A&c – A sonoridade de Bossambal é notavelmente diferente dos discos anteriores, a começar pelo grave que o envolve e pela forma como a bateria brilha nesse fundo. Foi opção estética, aconteceu por acaso?
R.S. – Quando entro numa sessão de gravação começo apenas com piano, baixo e bateria; a não ser que haja linhas de baixo específicas ou gestos de bateria, os músicos estão a ler apenas a partir de uma partitura (melodia e alterações de acordes). No entanto, referirei que todas as notas são escritas para a secção de metais. Normalmente, tocamos a peça uma ou duas vezes, discutimo-la, e no terceiro passo é gravada para “ficar”. Todos os músicos que uso são profissionais a tempo inteiro e podem ler virtualmente qualquer coisa que eu lhes apresente. Exceto quando nos preparamos para uma atuação ao vivo, raramente ensaiamos. Nos últimos três álbuns, usei o mesmo baterista e baixista; conheço-os bem e sei que a sua interpretação será o que eu pretendo; ocasionalmente, poderei orientar a sua atuação, mas não acontece muitas vezes. O que se ouve no último master, relativamente ao som do baixo e da bateria é o resultado da mistura e, claro, o facto de eu deixar os músicos tocarem o que sentem, é a essência da melodia. Então, acho que se pode dizer que é um pouco de ambos: uma escolha estética e um acaso.
A&c – Bossambal Brazil é também um disco sem palavras. Foi com a intenção de dar mais espaço à linguagem melódica dos instrumentos?
R.S. – Sem dúvida. Com exceção de algumas áreas que contêm vocalização, a minha intenção com este álbum era mantê-lo virtualmente instrumental, com solos mais curtos, menor duração e sem palavras. Devo admitir também que ao longo dos anos tenho notado que as faixas mais longas são as que menos passam nas rádios “comerciais”, e eu não queria que o álbum realçasse a voz, que tende a conquistar mais atenção em qualquer gravação.
Richard arranja os seus temas, mas se pudesse escolher livremente, chamaria Claus Ogerman para os seus arranjos. Quanto a tocar ao vivo, prefere ambientes de jazz, com público que aprecia o “lado mais suave” do jazz e prefere interpretar os seus temas, by the book, mas com solos estendidos.
A&c – O que faz de Bossambal Brazil um álbum de Jazz e não um álbum de Samba, Bossa Nova ou Baladas?
R.S. – Não o considero um álbum de jazz no sentido típico. Vários críticos ao longo dos quatro álbuns referiram-se ao meu trabalho como híbrido (gosto disso!). O facto de as melodias permanecerem praticamente inalteradas ao longo das faixas e não serem improvisadas da forma que habitualmente uma melodia de jazz seria, desqualifica o meu trabalho como sendo típico de um estilo de jazz; no entanto, o solo ou as secções de solistas são improvisações de mudança de acordes; algumas das progressões de solo estão nas progressões que suportam a melodia/melodias da música enquanto em muitos casos escrevo uma progressão de acordes completamente diferente para o solista.
Assim, nesse sentido poder-se-ia dizer que existe um elemento de jazzístico em muitos dos meus arranjos. Relativamente a Bossambal Brazil; é o mais comercial dos últimos quatro álbuns; por exemplo, a duração das faixas é bastante curta; os solos, quando há solos, não se estendem; a maioria das faixas tem a forma de uma canção facilmente reconhecível, e o elemento de vocalização em algumas das faixas serve um pouco como “doce para os ouvidos”.
A&c – Alguns autores brasileiros das décadas de 50 e 60 do séc. XX, como refere Jason Borge no paper Jazz and the Great Samba Debate, and Vice Versa defendem que existe um laço de sangue entre o “Samba do morro” e o Blues primitivo e Jazz. Concordas?
R.S. – Parece muito provável, tendo em conta as dificuldades enfrentadas por estas duas populações indígenas.
A&c – Muitos dos principais compositores do início da Bossa Nova, como Laurindo Almeida, Luiz Bonfá e Garoto, tinham formação erudita e profundos conhecimentos de harmonia, no entanto alguns autores argumentam que a Bossa Nova é o Samba Jazzificado. Qual é a tua opinião a este respeito?
R.S. – Pessoalmente, não acho que Bossa Nova seja um samba “jazzificado”. Como sabem, houve grandes críticas de muitos brasileiros à evolução do samba comercializado e, claro, a todo o conceito de Bossa Nova. Quando se analisa a estrutura melódica de muitas das Bossa Novas que se tornaram populares, é óbvio que é a base harmónica destas melodias muitas vezes simples que as torna tão apelativas. Sei que estas melodias são frequentemente fortemente sincopadas e que o conteúdo harmónico é muitas vezes considerado “harmonia jazz”, mas isto não é jazz ou música ” jazzificado “. Numerosas Bossa Novas e Sambas encheram as tabelas “comerciais” no passado e continuam a apelar a um grande público internacional; infelizmente, isso não se pode dizer da maioria dos padrões de jazz, e aí está a prova.
A&c – O que mudou na relação e fusão entre o samba e o Jazz desde Jazz Samba de Stan Getz e Charlie Byrd de 1962 ou Getz/Gilberto de 1964?
R.S. – Ao longo dos anos, parece haver uma superabundância de interpretação e apresentação virtuosas do jazz e samba padrões, tanto que grande parte da beleza da melodia perde-se na aparente necessidade do ou da artista em demonstrar o seu domínio da técnica instrumental. O meu trabalho e as minhas gravações evitam muito disso; o foco está na melodia, na harmonia, no ritmo e na forma, não no virtuosismo.
Richard gosta de Literatura e de Pintura e lê essencialmente Biografias, Filosofia e Ciência.
Escreve canções e compôs diversas músicas para poemas de peças corais, mas poesia propriamente dita, não.
A&c – Nunca imaginas outras palavras para os temas que interpretas?
R.S. – Não.
A&c – Ouvimos o disco e o tema de eleição é o Balade for Claudio, que sabemos ter uma história. Podes contar-nos pormenores sobre este tema?
R.S. – Conheci Claudio Roditi há alguns anos no Blue Note em Nova Iorque depois de ele me ter ligado por sugestão de um conhecido de ambos. Depois da atuação, ele e eu sentámo-nos durante algum tempo e conversamos sobre a sua a performance, e foi nesta altura que lhe entreguei uma cópia de Samba para a Vida.
Uns dias depois voltou a ligar-me para me dizer o quanto gostou de ouvir o álbum e, sobretudo, a primeira faixa, Escrita No Vento, dizendo-me também que começou o dia a ouvi-la! Para minha surpresa, ele compôs Samba for Sorce. Eu retribuí escrevendo Ballad for Claudio que ele interpretou no Shanghai Jazz em Nova Jérsia. Ponderamos a sua aparição no Bossambal Brasil, mas como sabem, isso não era para acontecer. (N. da R. Cláudio Roditi faleceu em janeiro de 2020, com 73 anos).
Escrita No Vento conquistou o Prémio de Melhor Canção Brasileira de 2017 na The Sounds of Brazil Radio, nos Estados Unidos. Fui recentemente informado pela mulher de Claúdio que Ballad for Claudio passará a fazer parte do arquivo está em processo de criação.
A&c – Hoje em dia no Brasil, quando um iniciante pega num violão já parte com um avanço em termos harmónicos que parece ser algo que nasce com ele. Como entendes o facto de, em meados do século XX a música no Brasil ter evoluído para estruturas harmónicas tão complexas, e a naturalidade com que essa complexidade alastrou para todo o universo musical brasileiro sendo adotada por todos os músicos?
R.S. – Ontologia: tempo e lugar. Os sons, ou estruturas harmónicas como estamos a discutir, fazem parte do ouvido coletivo brasileiro, assim como os sons de Viena do século XVIII faziam parte do ouvido Vienense, e assim como os sons da música popular do século XXI fazem parte dos “Millennials” e da “Geração Z” e assim por diante. Como exemplo, por mais erudito que um compositor americano possa ser, considere-se, por exemplo a música russa do século XIX, ela ou ele nunca seria capaz de captar em pleno a essência do espírito russo; simplesmente não está no seu mundo. Isto pode parecer excessivamente subjetivo, mas acredito que a paleta harmónica que existe na música brasileira é reflexo da expressão, das visões e das paixões brasileiras.
A&c – Vês o jazz com influências brasileiras com outro naipe de instrumentos menos convencionais?
R.S. – Para além da proliferação de instrumentos sintetizados, não vejo quaisquer alterações que possam vir da utilização de instrumentos acústicos atuais. Nas minhas gravações, as únicas partes sintetizadas são as cordas (pelo menos por enquanto).
A&c – Alguma vez pensas até que ponto a tua música poderia ser reformatada se fosses ao Rio de Janeiro, passear pelo Bairro do Estácio, onde o Samba moderno floresceu, para respirar o ar, pisar as ruas e beber um copo de e com as pessoas que o inspiraram?
R.S. – Penso ocasionalmente, e mais uma vez menciono a ontologia. Como não-brasileiro, não acredito poder captar verdadeiramente a essência da música brasileira, mas estar lá poderia certamente ter um profundo efeito na interpretação.
A&c – Suponho que este disco tenha sido feito durante a pandemia Covid-19, como correram os encontros e desencontros com os restantes músicos e técnicos para a sua execução?
R.S. – A gravação de Bossambal Brasil começou em junho de 2019. Consegui terminar todo o acompanhamento e a maior parte da mistura antes do “lockdown”. No entanto, as misturas finais e a masterização tiveram de ser feitos remotamente.
A&c – Como te vês nesta fórmula cada vez mais generalizada em que cada músico de uma banda grava a sua parte de um tema, no seu próprio estúdio doméstico e depois tudo é misturado para a produção final? Tudo isto remotamente.
R.S. – As poucas vezes que tentei este processo de músicos gravarem faixas e enviarem ficheiros para mais tarde serem misturados com faixas dos outros músicos provou ser muito menos “musical” do que quando pelo menos a secção de ritmo primário (bateria, baixo, piano) foi gravada em conjunto e depois ter outros instrumentos, por exemplo, secção de trompa, guitarra, percussão, vocais e solistas em overdub no estúdio. Assim, para responder definitivamente, não me interessa, nem incorporo o processo de partilha nas minhas gravações.
A&c – Diz-nos um compositor de fora do teu universo, que verdadeiramente aprecies.
R.S. – Virtualmente todos os compositores do período de prática comum, os períodos romântico e pós-românticos e os impressionistas.
(N. da R. – Período de Prática Comum na História da Música, é o período ente 1650 e 1910)
A&c – E uma Banda?
R.S. – Chick Corea; Earth, Wind and Fire; Banda Nova.
A&c – Crias, compões, tocas, escreves e ensinas. O que há na tua vida como diversão, para lá da música.
R.S. – Criar, compor, tocar, ensinar e escrever livros; é tudo. Para mim, é tudo o que preciso.
A&c – O que perguntarias a Óscar Castro-Neves?
R.S. – Perguntar-lhe-ia se ele pensa (como alguns pensam) ou se considera os nossos estilos semelhantes.
A&c – Três pessoas com quem gostasses de te sentar a uma esplanada.
R.S. – Jobim, Beethoven e Debussy.
A&c – Obrigado e felicidades.
Tradução e retroversão: Bruno Freitas
Para além do já referido, Richard Sorce é um autor publicado, com livros e artigos em diversas publicações da especialidade; é arranjista, produtor, e compositor referenciado na tabela da Billboard.
É doutorado em Teoria Musical e Composição pela Universidade de Nova Iorque, mestrado também pela Universidade de Nova Iorque em Composição; tem uma licenciatura da Escola de Música de Manhattan e da Faculdade de Música de Nova Iorque, e estudou piano no Conservatório de Música de Shenandoah.
Website de Richard Sorce
Richard Sorce no Facebook
Talvez seja do seu interesse: The Richard Sorce Project: Closer Than Before
Ajuda-nos a manter viva e disponível a todos esta biblioteca.
0
Musico, entusiasta de cordofones que gosta de falar de música, da sua alquimia e do seu indelével sentido cultural.
Jornalista, Diretor. Licenciado em Estudos Artísticos. Escreve poesia e conto, pinta com quase tudo e divaga sobre as artes. É um diletante irrecuperável.