Luiza de Jesus
Luiza de Jesus de 23 anos, foi, no dia 1 de julho de 1772, condenada a que:
“com baraço e pregão pelas ruas públicas, e costumadas, seja atenazada, e levada ao lugar da forca; e nelle lhe sejão decepadas suas mãos: Depois do que, morra morte natural de garrote: E dado este, seja o seu corpo queimado, e reduzido a cinzas, para que nunca mais haja memoria de semelhante Monstro”.

Ao som deste pregão, como mandara a sentença da Casa de Suplicação (atual Tribunal de Relação), sob uma túnica branco-sujo, e um manto escuro, cambaleante e com aspeto miserável, entra em cena Maria Henrique, encarnando Luíza de Jesus, a assassina de 33 bebés, (34, nalguns documentos, mas apenas 28 confessados).
Luíza recolhia as crianças na Real Casa dos Expostos, (Casa da Roda) da Misericórdia de Coimbra pelo valor de 600 reis, (aproximdamente 11 euros atuais) (1) com o compromisso de as sustentar e criar até aos sete anos de idade. Este sistema de compensação foi instituído em 1673 pelo príncipe Pedro, precisamente para combater o infanticídio e o abandono de crianças indesejadas ou impossíveis de sustento por parte das progenitoras.
A partir da obra de Rute de Carvalho Serra, adaptado pela própria autora, Maria Henrique encenou Luíza de Jesus – A Assassina da Roda, onde representa a protagonista e única personagem em cena.
Artes & contextos – O que mexeu em si ao ler esta obra para a levar a sentir a necessidade tomar a si a responsabilidade de a contar?
Maria Henrique – Em primeiro lugar, ser uma história tão forte da potencial serial killer europeia, mulher e ter sido uma coisa tão brutal, na forma como a própria foi tratada, portanto, quer o comportamento que alegadamente a Luíza de Jesus teve, quer o comportamento de quem, supostamente a terá julgado e torturado. Para além disso o facto de ser uma história verídica e se ter passado em Lisboa e ter a ver com o nosso passado, porque muitas vezes esquecemo-nos de onde vimos e eu acho que é muito importante lembrarmos a nossa História.
A&c – Como é que este livro lhe chegou às mãos? foi ocasionalmente, foi mais um livro ou foi um interesse particular que o título lhe despertou?”
M.H. – Eu sou sedenta de cultura, sou sedenta de informação, estou sempre a ouvir coisas a ver documentários, a ouvir rádio, boas entrevistas e apanhei por acaso, ia a caminho do trabalho, uma entrevista da Rute Carvalho Serra a falar do lançamento do seu livro que era fruto de pesquisa durante anos na Torre do Tombo, sobre factos verídicos e eu pensei logo, “pesquisa, factos verídicos, em Portugal, este tema fascina-me”. Comecei a investigar, a investigar e fiquei cada vez mais com a certeza que teria de entrar em contacto com a autora. Foi assim.
A exemplo do que fazem consigo, quando alguém lhe quer falar ou pedir conselhos e usam as redes sociais, Maria assim fez. Sem outra forma de contacto recorreu a este meio a que a autora respondeu com toda a amabilidade.
Ficou curiosa com fascínio de Maria pela obra, combinaram encontrar-se para conversar e assim se deram a conhecer mutuamente. Maria sente-se – diz – “um veículo de mensagens, com a função de informar o público através de entretenimento, de alimentar a cultura constantemente”. Partilharam a afinidade de interesses e descobriram uma cumplicidade que facilmente as levou a um compromisso mútuo: a atriz e encenadora programaria o agendamento da peça e ao mesmo tempo a autora ficava disponível para a adaptação dramática da obra literária.
Para além dos anos de experiência como investigadora criminal de Rute de Carvalho Serra, da sua pronta disponibilidade e do seu gosto por teatro, considera a Maria que: “o segredo é o facto se calhar de sermos, nós as duas, pessoas modestas, com a capacidade de dizer, “eu sei até aqui, a partir daqui preciso da sua ajuda” e vice-versa. Nesse sentido eu acho que formámos e formamos uma boa equipa”.
A&c – Agora, vamos voltar ao palco, ou ao camarim, e a pergunta é a seguinte: Como é que 30 anos de carreira a prepararam para este momento? Para a Luíza de Jesus?
Maria Henrique transfigura-se e reconfigura-se vezes sem conta, sob o domínio de Luíza de Jesus que a possui; é a condenada a caminho da forca, enquanto é atenazada (queimada com uma tenaz em brasa), um rosto perdido sem uma expressão identificável, mas não só. Ela é Luíza criança de 10 anos a tentar perceber porque a mãe a abandona, ela é a mãe de Luíza a abandoná-la, é o advogado, é o boticário que a viola e Antónia a outra menina cativa do verdugo.
Arrasta-se, cai e levanta-se, arroja-se pelo chão, sempre com um rosto e um corpo para cada voz, vozes que não deveriam estar ali. São máscaras que lhe saem do interior, para dar rostos à miséria, ao assombro incontável. Tudo vem do fundo do mesmo ser, do mesmo corpo da mesma face, da mesma garganta. Um só. Tudo e todos, todas, estão sozinhas no palco negro e sombrio, tudo e todos, todas ao mesmo tempo em Maria Henrique.

M.H. – Eu penso que nunca estamos preparados. Podemos é ter mais ferramentas do que outras pessoas com menos experiência e eu tentei ir utilizando todas as ferramentas que tinha e ir continuando a pesquisar, para durante o processo ir adquirindo mais ferramentas, porque para mim a arte é uma constante evolução e acho que enquanto estivermos vivos estaremos constantemente a aprender. Trinta anosa de carreira, com certeza que a experiência e as ferramentas, ajudam, mas o que eu já cresci e o que eu aprendi com este processo, é inimaginável.
A&c – Ok. Então, voltando ainda mais para dentro, se me dá licença, para lá do trabalho habitual de preparação que requer qualquer personagem, como é que um a atriz se prepara para deixar entrar em si e dominá-la durante uma hora, uma mulher que assassinou barbara e friamente 34 bebés?
M.H. – (Humm) é verdade… eu gosto muito de ter o cuidado de – somos humanos, nem sempre conseguimos, mas – eu tento fazer um tipo de trabalho que é o seguinte: é quase como aquela expressão inglesa: “in somebody’s shoes”, que nós em português utilizamos “na pele de outrem”, eu penso que a forma mais saudável de um artista se por na pele de outrem, é ter consciência de si próprio, para quê, para depois de ter estado na pele de alguém tão difícil, conseguir voltar à sua própria pele. Eu penso que esse é sempre o meu trabalho e aquilo em que eu tenho que ter muita atenção, porque se não, imaginemos que, tanto temo de pesquisa sobre personagens tão duras, poderiam vir a afetar-me, a mim pessoalmente e à minha relação para com os outros. Portanto, eu tento muito fazer este trabalho de “agora estou eu” … “agora sou a Luíza”, mas “agora voltei à Maria”. Isto não é fácil de fazer, parece muito bonito de dizer, não é fácil, mas eu também tento partilhar o que eu faço, com os meus alunos e até com os meus atores, quando dirijo os meus colegas, porque penso que é a forma de nos mantermos o mais saudável possível, porque nós – como dizia há um bocado – sendo veículos transportadores de mensagens, se nos deixarmos contaminar demais, podemos ficar doentes e não pode ser, se não, ficamos sem ferramentas.
A&c – Acabou por me responder a uma pergunta que eu tinha a seguir, que era um pouco mais elaborada, se calhar que era: como é que, sendo a Maria, como penso que é, uma pessoa positiva, e assumindo que encarna tão profundamente aquela personagem malvada, passe a expressão, aquela assassina cruel, como é que consegue libertar-se dela e voltar a ser a Maria, quais são os processos para que garanta que, quando vai jantar, seja a Maria que está a jantar, a Maria Henrique que está a jantar e não a Luíza de Jesus?
M.H. – Digo-lhe que não é fácil. Eu penso que utilizo, algum pragmatismo e uma tomada de consciência de “agora acabou, eu entrei aqui, mas agora, preciso de voltar a mim, para, a qualquer momento poder estalar os dedos e conseguir ir lá”.

Luíza de Jesus, que tinha amizade com uma ama da instituição, recolhia crianças, para receber o dinheiro, usando diversos nomes, e a pedido de famílias da região, conforme afirmava. Nenhum destes pedidos foi confirmado pela investigação.
Depois, bem, depois matava-as cruelmente e enterrava-as num campo ainda próximo da instituição ou desmembrava-as depois de mortas para as guardar em frascos e potes enterrados no chão da sua habitação, e seguia a sua vida.
Luíza de Jesus, nunca deu qualquer explicação, qualquer que fosse, por absurda ou irracional, qualquer explicação para os seus atos. Nunca, nenhuma.
A&c – Um monólogo acaba por ser também um exercício introspetivo, a atriz acaba, ao fim e ao cabo a falar de si para si. Em algum momento a atriz sente, ainda que uma réstia, alguma compaixão por tal personagem? Algo semelhante ao que uma mãe sente por um filho, mesmo que seja o mais cruel dos criminosos?
M.H. – Sim, sim… se calhar a minha resposta poderá ser estranha, mas sim. Eu penso que…
A&c – se calhar estranha é a minha pergunta…
M.H. – … não, não, não. Essa pergunta é muito pertinente, porque provavelmente será difícil de imaginar como é que eu posso sentir empatia… empatia com esta mulher. Eu penso que uma personagem só ganha três dimensões, quando nós conseguimos imaginar que ela poderá ser um ser humano. Um ser humano tem várias camadas, qualquer ser humano, se calhar em situações extremas de sobrevivência, poderá precisar – e nunca, nunca será o meu intuito poder justificar uma Luíza de Jesus. Até os homicidas mais hediondos já poderão ter gostado de alguém e alguém gostará deles e até a princesa mais pura terá os seus pensamentos e terá feito alguma coisa de difícil… eu tentei trabalhar a Luíza, quer para mim, quer também para deixar o espectador a sair de lá a pensar, sobre o que é que sente em relação a esta Luíza. Se a compreende, se faria a mesma coisa se estivesse no lugar dela para sobreviver da miséria que ela vivia, se acabou por ser levada a isso depois de um passado de abusos, se – nunca justificando, mas – E se? E se? E a minha função é por o público a pensar “E se?”. Nesse sentido, sim, é verdade que consegui e consigo ter momentos em que tenho alguma empatia, por esta mulher e é a partir daí que ela passa a existir.
A&c – Eu arrisco-me a adiantar que sem isso não conseguiria representá-la na sua totalidade, não é? Porque ela própria não se odiava a si própria, não é verdade?
M.H. – Exatamente. É mesmo isso, as pessoas têm sempre as suas razões, podem ser erradas as razões, mas têm-nas.
A&c – Pensa que conseguiu isso, esse distanciamento, esse seu esforço, para evitar juízos de valor, por deixar transparecer juízos de valor, quer em relação à criminosa, quer em relação à aplicação da lei, aos julgadores, à forma como foi escolhida a punição dela, o castigo; que foi torturada, mutilada, queimada, enfim, fizeram-lhe trinta por uma linha, acha que conseguiu distanciar-se o suficiente para não deixar transparecer a sua opinião em relação ao que sucedeu?
M.H. – Acho que sim. Sinceramente acho que sim, porque há momentos na peça, que eu sei… que já me incomodaram e eu habituei-me a eles, mas que sei que são capazes de incomodar, em que ela faz algumas coisas que são perturbadoras.
A&c – É claro que esses juízos de valor, o criativo deixa-os para o público, como já referiu. Quem vê, fará os seus juízos de valor e por muito que nós tentemos distanciar-nos, não conseguimos comandar isso. Receia que nesse seu esforço, tenha produzido em algum momento uma imagem ambígua? Ou desejou mesmo que essa imagem fosse ambígua?
É uma peça que nos faz questionar os limites da justiça, pensar os valores Humanistas; provoca-nos o desconforto de encararmos a miséria humana no seu limite extremo, confrontada com os nossos princípios morais e éticos, com as nossas convicções sobre culpa e castigo, vítima e carrasco. Até onde pode ir o castigo?

M.H. – Eu gostava que o público saísse sem saber muito bem o que pensar desta mulher.
Maria Henrique fez a sua primeira encenação com a peça Corações de Papel
A&c – Como é dirigir-se a si própria?
Diz-me que é um exercício de disciplina muito grande, de foco muito grande. Recorda um momento, num espetáculo, uma comédia da Rosa Lobato de Faria, com o Heitor Lourenço, em que, acabava o espetáculo e ela, a encenadora, sentava-se a tomar notas para si, a atriz e só se apercebeu da “estranheza” quando o Heitor desatou a rir, “reclamando” que não tinha recebido as notas dela, da encenadora. Mas a Maria encenadora, precisava mesmo de fazer notar à Maria atriz, o que possa ter feito menos bem e como o melhorar para o ensaio seguinte.
Quando está sozinha em cena, é a mesma coisa – diz – o espetáculo acaba, senta-se a olhar para o texto, toma umas notas, fica a matutar e, ou resolve no momento ou vai para casa matutar. Assim que acaba o ensaio como atriz, é a vez da encenadora fazer um balanço.

A&c – Não é fácil gerir essa dupla personalidade quase em espelho…
M.H. – Não é. Por isso é que eu digo que é preciso muita disciplina.
A&c – Voltando a esta peça, quando é que deixou de ter medo dela? Se é que em algum momento deixou de ter medo dela?
M.H. – Da Luíza?
A&c – Da peça, do papel, da sua entrega, da sua assunção, o ser possuída pela Luíza de Jesus?
M.H. –Eu penso que existe sempre um “E se?”. Eu sou tão exigente comigo própria, tão exigente comigo própria, que penso constantemente “e se eu pudesse melhorar em qualquer sítio?” Por isso nenhum processo criativo está completamente fechado, nunca. Pode estar no bom caminho, bem direcionado.
A&c – Ainda não sofreu o choque do público, ainda não fez a prova de choque, ainda só foram algumas pessoas que tiveram o privilégio de assistir à peça, o que é que acha que a Luíza de Jesus pode ter mudado na Maria Henrique?
M.H. – Eu acho que cresci muito, amadureci ainda mais neste processo de busca, de procura, porque é uma personagem tão intensa, um texto tão intenso, que eu acho que cresci muito mais rápido do que estes meses de trabalho. Em relação ao público, eu sinto que quando o espetáculo acabar, vai haver um grande silêncio. Cheira-me que existirá um pequeno murro no estômago, que as pessoas não saberão muito bem se vão aplaudir, se não vão aplaudir …
A&c – pela minha parte posso confirmar isso.
M.H. – Pronto, exatamente, mas acho que se isso acontecer, pode ser bom sinal. Não é o normal para mim como atriz, que haja um grande silêncio quando o espetáculo acaba.
A&c – … desculpe interrompê-la, mas quando eu disse que confirmo por mim, referia-me ao murro no estômago e não ao silêncio.
M.H. – Pois, um murro no estômago porque realmente é muito intenso, mas eu sinto que esse murro no estômago, pode fazer com que as pessoas fiquem ali uns segundos sem saber como reagir.
A&c – Dá-lhe uma sensação de… embora a expressão não seja a mais correta, mas tendo em conta a forma como encara este papel em particular, uma espécie de dever cumprido? Mostrou algo que achava importante mostrar, um pequeno item da nossa história, que estava quase escondido, e que a Maria trouxe à luz… primeiro a Rute e depois a Maria reforçou-a, ampliou esse efeito, sente que fez um bom trabalho com esta “revelação”?
M.H. – Honestamente sim. Em primeiro lugar fiz sempre o meu melhor e continuarei a fazê-lo, em segundo lugar, acho que cumpro uma função de passar mensagem para que não nos esqueçamos das coisas, em terceiro, vou querer andar pelo país e ilhas com este espetáculo, levar este espetáculo a mais pessoas. Ainda, alertar mentalidades, dar voz, através de outra forma sem ser o livro e é muito pertinente ler o livro, porque é maravilhoso dar voz através da arte do teatro, da arte dramática a uma personagem verídica, portuguesa e sobre a nossa História tão conturbada este século XVIII, que foi e que ainda nos influencia muito mais do que aquilo que nós pensamos.
A&c – É na minha opinião um trabalho notável fazer arte, sem necessariamente ter de inventar nada de novo, simplesmente agarrar em algo que existe e interpretá-lo com uma mensagem nova e é isso que a Maria consegue neste trabalho e muito bem, penso eu e felicito-a por isso, porque de facto está um trabalho excelente.
Muito obrigado, Maria.
M.H. – Muito obrigada pela sua gentileza, parabéns pela vossa entrega à Arte, parabéns pelo vosso trabalho, porque realmente são únicos e gostava que existissem muito mais pessoas assim. Muito obrigada eu.
A&c – Muito obrigado, boa noite.
Luíza de Jesus – A Assassina da Roda, estreia hoje, 29 de abril de 2021, no Teatro da Trindade – INATEL
De Rute Carvalho Serra, com interpretação e encenação de Maria Henrique
Ouça o áudio desta conversa no nosso Podcast, aqui
(1) Fonte: http://www.geneall.net/P/forum_msg.php?id=182722#lista
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Jornalista, Diretor. Licenciado em Estudos Artísticos. Escreve poesia e conto, pinta com quase tudo e divaga sobre as artes. É um diletante irrecuperável.
