Yann Lacroix
Naomi Melville e Yann Lacroix foram residentes na Casa de Velázquez em Madrid. Mudaram-se em 2019. No ano que passaram juntos nestes ateliês ao fundo das escadas, junto a uma piscina, com vista para luxo, estrada, portão e bosque, nasceu uma proximidade. A pergunta que lhes fiz: “O que é que uma instalação como la Casa faz a uma prática? “não obtive resposta. Naomi optou, em vez disso, por dar conta da sua opinião sobre a pintura de Yann nessa altura.
No ateliê de Yann Lacroix alinham-se uma série de pequenos formatos, mais pequenos que uma folha A4. Dispostas na borda de uma enorme janela ou contra uma parede, numa mesa onde se misturam gesso e frascos de aglutinantes, não têm medo de serem manchadas. De facto, se estas telas fazem uma imagem, elas também desempenham o papel de amostragem, de calibragem das ferramentas que se seguirão. Uma delas é atravessada por sulcos regulares, onde se pode distinguir o natural ao lado do artificial, e cuja origem me é revelada por Yann: um objecto, um estranho pincel de plástico rígido utilizado por pintores decorativos para imitar da melhor forma possível a ideia de nervuras da madeira. Amostras, miniaturas de materiais, portanto, mas também das qualidades específicas das imagens, fragmentos e concentrados das grandes telas que estão para vir. (1)
A perspetiva também está, aqui, sujeita a transposições. O gosto do artista por certos lugares ou objetos de desenho geométrico (campos de ténis, molduras de portas ou azulejos de vidro, cercas, piscinas, a silhueta maciça de um dispensário visto ao longe) leva-o a achatá-los, esticá-los, ou mesmo verticalizá-los ou horizontalizá-los, como o faria o prisma dos sonhos ou das memórias. Mas esta mudança de referencial também ocorre ao nível da própria natureza do que nos é dado a ver: a pintura torna-se por sua vez um objeto exterior a nós, manipulável pelo olhar, e cujas dimensões e fatias percebemos como um espaço a percorrer (tendo atravessado uma superfície aquosa e reflexiva, ocupando dois terços do Sunday Afternoon (2019), encontramo-nos projetados entre as silhuetas duras das cadeiras e cadeiras de praia, cuja presença é inabalável), ou ainda como uma tela – caixa onde uma forma poderia descansar: a iridescência hiper-realista de uma folha cujo de cujo resto do bosque se retirou para trás das sucessivas camadas pictóricas da tela.
As pinturas de Yann são construídas a partir de uma multiplicidade de pontos de vista. Como se – mesmo que tecnicamente não seja exatamente o caso – cada um deles tomasse vários pontos de fuga como ponto de referência, ou uma perspetiva tão abrangente que não poderia pertencer a um único ponto de vista, mas sim aos de toda uma assembleia. E é como consequência radical disto que se pode perceber estas faixas arquitetónicas coloridas e estruturadas – a geometria do chão de um parque infantil (Southern Entrance, 2018), uma trama apertada de casca e folhas – que forçam o seu caminho para a imagem, como o fariam numa retina que tivesse olhado durante demasiado tempo, demasiado diretamente, um horizonte demasiado vasto. Pelo contrário, os formatos mais pequenos, colocados lado a lado, poderiam ser comparados a dois olhos que não poderiam ser observados ao mesmo tempo, com a mesma intensidade, e que exigiriam então o esforço de cair para a frente, motivada por texturas desfocadas, levemente sublinhadas pela costura cinzenta de uma linha do horizonte que evoca o granito (Persistance, 2019).
Falámos sobre as fontes interdependentes que alimentam este quadro. Das contribuições externas, imediatamente percetíveis, que trazem referências literárias (L’Invention de Morel, de Adolfo Bioy Casares, 1940, é um bom exemplo disso, na medida em que também trata de questões relacionadas com a reprodutibilidade de uma figura, ainda que numa questão de rostos), uma coleção permanente de imagens (quer tenham sido capturadas por Yann ou recolhidas noutro local, impressas ou fotocopiadas), e impressões mais largamente sensoriais; a segunda, de um desejo próprio, reavivado pela construção, peça a peça, deste sistema de imagens, das ligações estabelecidas entre elas, da sua aparência fugaz na tela, uma dando lugar à outra, concedendo, ao mesmo tempo, a liberdade de não apagar totalmente a sua passagem. Assim, sob a ferrugem que incendeia uma das muitas florestas representadas, pode-se detetar a presença de uma grelha que previamente estruturou o espaço, luminoso e nervoso, próprio da tela (Sem título, 2019, 185 x 160 cm).
A presença reminiscente de um material espesso, o resquício de uma mancha colorida, compõem os arquivos de uma memória impessoal; através deles, o artista mostra-nos uma sucessão infinita de objetos ou motivos que, se não coabitassem no mesmo suporte, se empilhariam perpetuamente sob o esmalte fino, mas extremamente complexo da tela. Em termos espaciais, lembra-nos uma viagem cujos destinos sucessivos estão fora de um lugar definido, desprovidos de fronteiras tangíveis. Esse lugar pode, portanto, ser encenado no espaço do estúdio, que, aqui, está despido de mobília, à exceção de uma pequena mesa redonda e algumas cadeiras. Os muros, por sua vez, deixam espaço para que as paisagens se sigam umas às outras. Compreendemos, assim, que alguns deles (o dispensário, a evocação de um jardim árabe-andaluz) ainda não foram visitados, sendo a temporalidade futura do seu fantasma necessária para a continuidade deste friso temporal.
Um formato médio (Scratch Marks, 2019) mostra palmeiras cortadas de uma massa vegetal mais densa, cujos troncos, que atravessam o bordo superior da tela, recordam os estratagemas que Yann pode utilizar para confundir suporte e superfície (por exemplo, deixando a lona, embebida em óleo, aderir à armação para revelar a sua estrutura). Uma trama clara, riscada sobre a paisagem, agarra-a como uma catarata, recriando um material tão específico que só depois de o ver é que percebi que não se tratava de um óleo sobre tela, mas de um óleo sobre madeira. Assim, é possível examinar esta paisagem numa tentativa de alargar os seus limites, ou descobrir, através do seu desgaste, um motivo que emana da nostalgia de um colecionador orientalista, abrindo as possibilidades de outros espaços. Finalmente, podemos também deixar o nosso olhar vaguear entre as linhas brancas, e para além delas, numa distante memória, talvez a dele, talvez a nossa.
(1) Embora estes esboços tenham o estatuto de obras totalmente concluídas, eles dão também um vislumbre das contínuas mudanças que terão lugar entre o natural e o artificial, entre este assunto e este outro assunto, o que se deve entender e o que cria ilusão. Un Sans Titre, 2018, 27 x 35 cm, apresenta um friso de duas imagens, um motivo vegetal vivo e contrastante e uma superfície verde, terna, mas orgânica, “posta” sobre um fundo mais neutro, castanho-ocre, que as realça e corta. Devido ao facto do estúdio de Yann Lacroix se situar a menos de uma hora do Museu do Prado, não se pode deixar de fazer a ligação com as “pinturas de pinturas” de certos artistas neoclássicos espanhóis, que reúnem na mesma tela várias miniaturas de obras que virão. Trece bocetos para cartones de tapices, uma pintura de médio formato do espanhol Francisco Bayeu y Subias (1786), sublinha ainda mais esta noção de deslocamento, ao pintar a óleo com grande precisão treze miniaturas de tapeçarias.
Este artigo foi traduzido do original em francês por Constança Costa Saantos
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