
Róisín Murphy sobre a música que a “criou”0 (0)
19 de Novembro, 2019
Róisín Murphy
A favorita do culto dance-pop de 46 anos de idade com uma vida passada em clubes, tocando com Sonic Youth, Little Sister e muitos DJs do Reino Unido.
A relação de Róisín Murphy com a música é indissociável do “seu” local. Enquanto crescia na pequena cidade de Arklow, na costa leste da Irlanda, a luminária electropop observava a família, que cantavam juntos em reuniões álcoólicas. Em 1985 ficou obcecada com a famosa e estranha capa do álbum Island Life de Grace Jones, desse ano, e por essa altura vagueava de braço dado com as suas namoradas, cantando Like a Virgin a plenos pulmões. “Quando éramos todos virgens! Lembra Murphy, rindo à gargalhada.
Sentada num clube de membros privado no Soho de Londres, Murphy conta-me a história musical da sua vida com um estilo bawdy. O seu sotaque irlandês é marcado pela sua atribulada adolescência passada em Manchester, onde encontrou os seus companheiros “esquisitos” em clubes psicadélicos, ao som de Jesus e Mary Chain, dos Stooges e de My Bloody Valentine. Depois os clubes começaram a tocar bandas de rock mais antigas como os Stone Roses, “e do nada apareceram esses tipos vestidos à hooligans do futebol”, diz ela. O êxtase tinha chegado. “Eram tipos que normalmente nos teriam espancado, mas entraram e abraçaram-nos!
Lançou-se na cena musical de Manchester, como front element de uma banda barulhenta, And Turquoise Car Crash The, onde fingia gritar ao telefone para os serviços de emergência. “O primeiro concerto foi lendário”, recorda. “Foi inacreditável a quantidade de pessoas que apareceu lá! Toda a gente do público subia para o palco e toda a malta da banda passava para a plateia numa espécie de disputa. O segundo concerto não teve o mesmo burburinho, então a banda separou-se. “Assustada” não é uma palavra que se aplique a mim como adolescente”, diz ela, “apenas muito curiosa e aberta. Fui a todos os tipos de lugares loucos e fantásticos”.

Louis Prima and Phil Harris: “I Wan’na Be Like You” (1988)
Louis Prima and Phil Harris: “I Wan’na Be Like You”
Murphy seguiu um namorado até Sheffield, que tinha uma cena electrónica igualmente fértil, e rapidamente conheceu o músico Mark Brydon. Naquela primeira noite, foram ao estúdio dele, onde ela “falou mal” da sua música – um comportamento recorrente quando se envolveram românticamente.
Brydon, que tinha feito trabalho de produção para Boy George, Cabaret Voltaire e outros, recebeu uma oferta para seis álbuns e perguntou a Murphy se queria participar com ele. Ela ficou espantada, pensando que ele estava a gozar. “Mas era uma maneira de estarmos juntos”, diz ela. Passaram por quatro álbuns como Moloko, cujo sucesso atingiu o seu máximo em 1998 com Sing It Back e novamente em 2000 com The Time Is Now, combinando o fascínio da época pelas ilhas Baleares com a clássica arte pop dos anos 70. Brydon e Murphy acabaram por separaram-se, com um álbum final, 2003’s Statues.
Ela começou a sua carreira solo com duas apostas certeiras de Ruby Blue (2005) e Overpowered (2007), discos pop idiossincráticos feitos vários anos antes das grandes gravadoras fazerem a menor ideia do que fazer com o pop de esquerda. Depois de ter tido o seu primeiro filho em 2009, via-se frequentemente sozinha (“Eu precisava da minha mãe”, diz ela). Assim, voltou para a Irlanda e não fez outro álbum durante oito anos. Trabalhava muito como DJ, e levava a mãe e o bebé com ela. Depois, em 2012, teve um segundo filho com o seu atual parceiro e colaborador, o produtor italiano Sebastiano Properzi.
Depois de outros dois álbuns solo, Murphy voltou a cuidar da sua fantástica coleção de singles únicos. Ela tweetou a certa altura afirmando sentir-se exausta, “a bater com a cabeça na parede” de uma indústria musical indiferente. Essa situação foi resolvida, diz ela agora, permanecendo vaga sobre o que mudou exatamente. “Simplesmente é não sentir que carregas tudo nos teus próprios ombros”, diz ela. “É ter pessoas que te amam ao pé de ti”. Embora sejam desconfortáveis de ler, os tweets de Murphy enfatizam sua disposição de pedir o que precisa e exigir crédito pelo seu trabalho. Murphy tem uma carreira de 24 anos e um catálogo que está cada vez melhor: este verão, lançou o impecável diva-house Incapable, seguido do lançamento do contundente Narcissus, com um inconfundível groove disco, na semana passada.
“Houve alturas em que eu disse: ‘Não gosto de recuar, quero fazer o que quero fazer’, e alguém dizia: ‘És tão arrogante'”. Suspira. “Eu não teria energia suficiente, se não me sentisse dessa maneira. E não poderia fazer o que faço sem paixão, teria desistido há muitos anos. Nem sequer teria começado.”
Murphy fala-nos então de de algumas das músicas que alimentaram a sua curiosidade pelo caminho, cinco anos de cada vez.

Julie Covington: “Don’t Cry for Me Argentina” (1988)
Julie Covington: “Don’t Cry for Me Argentina”
Róisín Murphy: Eu fui criada com a música ao vivo na Irlanda. O meu tio tinha muitas bandas, era um cantor brilhante e multi-instrumentista. No verão tinha uma sessão ao domingo o dia inteiro, e esta era a música que eles faziam para que as crianças dançassem uma boa e velha dança. Eu acho que era bastante óbvio para as pessoas, que eu tinha música em mim porque reagia claramente à música desde muito cedo. Mas isso não era invulgar naquela época em que a música era um verdadeiro agente congelador entre as gerações na Irlanda. Agora é menos assim, e é uma coisa triste, honestamente. As pessoas já não querem cantar umas para as outras.
A minha mãe e o meu pai compravam e vendiam todo o tipo de coisas, desde [pinturas dos] mestres holandeses a camiões carregados de sucata de chumbo. Tínhamos coisas malucas a entrar e a sair de casa a toda a hora. Depois de venderem dois mestres holandeses na Christie’s em Londres, foram ver a Evita. Trouxeram o álbum para casa, e foi a sua cena favorita durante algum tempo. A minha mãe foi de férias para a América com os amigos dela, e eu fiquei em casa com o meu pai e o meu irmão. Enquanto ela estava fora, eu aprendi o Don’t Cry for Me Argentina. Todo a gente tem uma música, e esta foi a primeira música que eu aprendi a cantar.
Quando ela voltou, houve bebidas em casa da minha tia Linda; eu cantei Don’t Cry for Me Argentina e minha vida mudou. A minha família percebeu que eu sabia cantar. A partir daí, foram muito chatos o resto da minha vida! Foi horrível para o meu tio também, porque todos lhe diziam: “Tens de lhe mostrar! Ela tem muito talento! Eu odiava aquilo. Quando bebiam uns copos, diziam-me que a minha avó estava prestes a morrer e que eu precisava de cantar, e que eu lamentaria se não o fizesse. Na verdade, ainda ganhei algum dinheiro com isso. Houve algumas vezes em que me pagaram bem para cantar aquela canção.

Róisín Murphy aos 11; provided photo.

Sonic Youth: “The Sprawl” (1988)
Sonic Youth: “The Sprawl”
Tive várias situações difíceis na escola. Nunca senti a sensação de ser intimidada; sempre senti que intimidava as pessoas, e foi por isso que me meti em sarilhos. Houve alturas, depois de nos mudarmos para Manchester, em que voltou a acontecer. Mas eu tinha uma ligação estranha com o Duncan, que era um esquisito. Fomos apenas eu e ele durante algum tempo, mas aos poucos foram surgindo outros rapazes que estavam numa de “Jesus and Mary Chain”. Eu comecei a identificar-me como uma esquisita. Fomos a alguns concertos, que não me disseram nada – como Systers of Mercy – mas quando vimos Sonic Youth, eu pensei: “Isto é o que eu quero para a minha vida. Eu e o Duncan éramos os mais novos no concerto. À porta, a mãe dele mandou-nos sair do seu Škoda, com a sua permanente de caracóis. E ele disse: “Por favor, não nos deixes mesmo aqui à frente! Não nos apanhes à saída!
Sentei-me ao lado do palco – eles devem ter percebido que eu era muito jovem, porque não me retiraram de lá. Eu via o grupo agarrar e Kim Gordon e atirá-la para cima do público, e ela voltava e começava a tocar baixo de novo, então eles voltavam a mandá-la para lá. Foi quando comecei a aproveitar toda aquela base musical incrível que tinha da Irlanda e transformá-la em algo que me tornou realmente independente. Comecei a viver sozinha logo a seguir e isso pode ter tido muito a ver com música, porque eu podia ter voltado para a Irlanda com minha mãe [quando os meus pais se divorciaram], mas a música que ouviam em Arklow não era do mesmo tipo que a minha. Eles curtiam heavy metal. Foi um anátema para mim voltar atrás.

Jhelisa: “Friendly Pressure” (1995)
Jhelisa: “Friendly Pressure”
Tinha seguido um namorado, um estudante de arquitectura, até Sheffield. Este teria sido um grande disco para os DJs que conheci em Sheffield, onde havia um enorme cruzamento entre o acid jazz e o jazz funk, em house, hip-hop, soul e R&B. Foi em Sheffield que eu comecei a pensar em grooves raros. E este foi um disco brilhante que saiu por volta dessa época. Tem um groove fantástico. E eu adoro o conteúdo lírico: “Don’t wanna make you uncomfortable/When every time you’re wrong/I’m not gonna get rough”, (Não quero deixar-te desconfortável/Quando de cada vez que estiveres errada, eu não vou ficar bruto). Estas declarações invulgares na verdade tiveram muta influência.

Murphy and Mark Brydon, her partner in Moloko, circa 1996; photo by Gie Knaeps/Getty Images.

All Seeing I: “The Beat Goes On” (1997)
All Seeing I: “The Beat Goes On”
Este é apenas um disco brilhante, porra. Eu ainda me lembro de tê-lo passado em Londres numa festa onde havia uma data de malta fixe. Eu disse ao DJ: “sai da frente!” e passei-o. Toda a gente ficou tipo, [gasps] “que merda é esta!” Foi um bom momento! Pensei: “É de Sheffield”. De vez em quando, o Parrot [DJ Richard Barratt do All Seeing I] faz uma música que tu sabes que vai ser um sucesso. E ele fá-lo quase a dormir, com essa pureza de visão incomparável. Este disco foi um grande momento para ele e também para nós em Sheffield, vê-lo renascer depois de tanto tempo de silêncio.

Little Sister: “You’re the One” (2001)
Little Sister: “You’re the One”
Fui para Nova York nos primeiros dias [de Moloko], tipo em ’97, e fui a um clube chamado Body and Soul durante toda semana. Isso mudou tudo para mim. Entrei na house music, na história da música de dança em que já tinha entrado em Manchester, e contra a qual eu” mais ou menos” reagi no início do Moloko. Danny Krivit era DJ do Body and Soul e lançou uma compilação chamada Grass Roots. Tornou-se um dos meus CDs favoritos, e uma grande parte do que influenciou Ruby Blue. Eu estava realmente na onda dessa música – ela é a irmã mais nova de Sly Stone (de Sly & the Family Stone), e ele fez uma grande parte da montagem. É apenas uma música muito bizarra.

Murphy performing live in 2007, at age 34; photo by Simone Joyner/Getty Images

The Commodores: “Still” (1979)
The Commodores: “Still”
Eu estava mais fora do circuito do que alguma vez estivera. Estava na Irlanda, tinha acabado de ter um bebé, e tudo o que eu tinha eram alguns CDs que comprava na loja local. Podia até tê-lo comprado numa maldita bomba de gasolina. E havia alturas em que estava com a minha mãe, bebia uns copos, e passava este disco e cantava no máximo da minha voz. Praticar a minha coisa de “vamos envergonhar as crianças ao dançar muito mal”!
Eu interessei-me muito por este tipo de “conversa cantada”. E este é um clássico: “You said you never needed me/I wonder if you need me now” (Disseste que nunca precisaste de mim/Pergunto se precisas de mim agora).É simplesmente brilhante. Mesmo agora estou a ficar arrepiada! Há uma alegria louca e muito melancólica. E também adoro a voz dele, aquela voz conversacional.

Mina: “Non Credere” (1969)
Mina: “Non Credere”
Não sei por que é que tenho tanta afinidade com a música italiana. Eu tive um namorado italiano alguns anos atrás, por pouco tempo, que me “apresentou” a Mina. Por essa altura conheci o Sebastiano [Properzi] e tive o meu segundo filho com ele – criámos uma família juntos. Foi a época mais bonita da minha vida, honestamente, porque foi a maior surpresa. Eu pensava que não iria ter a cena da família normal e depois tive-a com ele. Ele é músico, eu conheci-o no estúdio e cantei num dos seus projectos, uma música chamada Flash of Light.
Ficamos juntos algum tempo e ele tocou-me a canção, Non Credere, que o seu tio escreveu. Eu já conhecia a Mina e estava totalmente louca por ela. O vídeo é apenas o rosto da Mina, então podemos ver a boca, a dicção. Quando ele saiu, comecei a pensar, vou tentar. Escrevi a canção foneticamente, estudando a sua boca e os sons, e pouco a pouco, quando ele regressou, tinha praticamente aprendido tudo. Pensei: “vamos lá, vamos gravar! Uma coisa levou a outra e gravamos um EP em italiano [Mi Senti de 2014] – principalmente covers, e um original. Eu memorizei aquelas músicas foneticamente. Agora já sei bastante italiano; naquela altura sabia pouquíssimo.

Tolouse Low Trax: “Rushing Into Water” (2016)
Tolouse Low Trax: “Rushing Into Water”
É nisto que eu penso quando penso no ano passado. Tocamos em vários feriados e é muito ressonante. Esse conceito de “chug” na dance music – diminuindo a velocidade – está realmente na vanguarda e não apenas como uma piada ou uma novidade. Tu ficarias surpreendido com o quão lento “Incapable” é também.
A cultura dos clubes está a ressurgir no meu trabalho? Eu não acho que ela tenha desaparecido, mas eu também não quero ficar encurralada nessa cultura. Eu gosto de fazer música em que tu não sabes o que é que isso vai fazer às pessoas. Eu gosto da liberdade. Há coisas que acontecem na dance music que são realmente chatas e entorpecedoras e que dariam cabo de mim m se eu tivesse que fazê-las o tempo todo, mas há coisas que são verdadeiramente pensar à frente e emocionalmente complexas, pelas quais eu me sentirei sempre atraída.
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Traduzido do original em inglês por: Redação Artes & contextos
O artigo original: Róisín Murphy on the Music That Made Her, foi publicado @ Pitchfork
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