É impossível abordar a estética tanto sonora, quanto visual de Heilung sem recorrer ao cliché “viagem no tempo”, até porque, por isso mesmo, passa a sua própria filosofia.
O primeiro contacto que tive com este grupo, o qual tenho algum pudor em tratar por banda, foi, tal como aconteceu com milhões de outras pessoas, através do YouTube e do seu concerto gravado para esse efeito na Holanda, no festival Castlefest.
Depois, ao saber que eles iriam estar no magnífico Extramuralhas, o Festival Gótico de Leiria, (exemplarmente organizado por Carlos Matos/FadeIn), fiquei também a saber onde eu iria estar naquele dia 23 de agosto.
Acorri às plataformas de streaming da ordem e ouvi, ouvi, ouvi, mas faltava algo; algo que, por enquanto, apenas o YouTube me dava e era mais, muito mais. Aquele som era órfão, sem o espetáculo visual que lhe dá cobertura em face do qual facilmente se percebe que ambos, som e imagem, são um só. Quando terminava o concerto e eu tinha tempo, reiniciava-o e a cada vez que tudo recomeçava, parecia novo. A cada passagem, parecia notar coisas que lá não estavam antes. Imagens, sons, sonoridades, vestimentas, instrumentos, acessórios, passos e coreografias, linguagem corporal, diálogos mudos e iconografia.
Eram sessões de uma terapia para a purga de “males” de que eu não sabia que padecia. Estou a extrapolar? Talvez, mas Heilung é a palavra alemã para cura e embora faça todo o sentido, é um termo, para o caso, ainda restritivo.
Numa abordagem romanceada poderíamos dizer que Brági, deus nórdico da sabedoria, da poesia e da música, conduziu três personagens ao encontro umas das outras com um objetivo claro e pré-definido. Esse destino realizou-se com a formação em 2014 do grupo Heilung.
Kai Uwe Faust, conhecido entre os amigos como Dr. Faustus, alemão, foi um adolescente rebelde. Consumidor do Heavy Metal mais puro e duro, acabou, nas suas divagações de fuga e rejeição da educação e da religiosidade cristã radical, imposta pelo pai, por, depois do satanismo que praticou muito jovem, descobrir e mergulhar fundo no xamanismo Viking. Por entre um mundo fascinante em mitologia pagã e com uma “teogonia” rica e complexa, Kai deixou-se arrebatar pela sua iconografia, que viria a aplicar na tatuagem a que passou a dedicar-se, a par do desenvolvimento musical. Interessado nos estudos antigos, descobriu fascinado, o Canto Gutural Tibetano, uma variante antiga do canto difónico, praticado no Leste Asiático e dedicou-se a estudá-lo até ser capaz de o executar.
Considera que esta vocalização chega mais fundo do que aquilo que qualquer cantor de heavy metal alcança. Ocorrem-me Max Cavalera, vocalista de então, da banda sua referência Sepultura e Corey Taylor, vocalista da banda trash/death metal Slipknot e dos Stone Sour, este, talvez a mais grave e poderosa voz de todos estes vocalistas. E Kai chega, de facto, mais fundo.
Christopher Juul, dinamarquês é produtor musical, multi-instrumentista e tinha em Copenhaga o seu próprio estúdio de gravação, quando conheceu e se tornou admirador do trabalho visual de Kai. Acabaram por se aproximar e descobertos os interesses comuns, passaram alguns meses no estúdio de Christopher, em experiências sonoras originais e únicas, sem categorização possível, mas na esteira cultural e simbólica Viking e na exploração do canto gutural, por Kai. O que criavam, até a eles, parecia demasiado louco.
Christopher integra com a namorada Maria Franz a banda de rock eletrónico progressivo Euzen.
Maria nasceu em Borre, na Noruega. É estudiosa da cultura e folclore Vikings, para as quais despertou aos 11 anos, após uma encenação Viking na sua cidade. Como diz numa entrevista ao site Revolver, sentia-se deslocada da sociedade, mas aquele evento teve um impacto tão forte que a mudou definitivamente. Ela desejou viver naquela época: tocar tambores, manejar arcos e sentar-se à volta de uma fogueira a ouvir histórias. As influências de toda esta simbologia e envolvência levaram-na à música e a formar com o namorado, em 2008 a banda Euzen, o que ainda sem o saber, era o estender a passadeira celestial em direção aos Heilung.
O namorado é Christopher Juul que, quando em conjunto com o amigo Kai, sentiram que faltava algo ao ambiente sonoro que conseguiam, a “convocação” de Maria foi quase um passo inevitável. A voz de Maria, trouxe ao projeto a componente melódica e transcendental, que consideravam faltar-lhe.
Em 2 de junho de 2015 lançaram Ofnir e em 2017 filmaram para o YouTube o já referido concerto no festival holandês Castlefest perante 10000 pessoas e que viria a dar origem ao álbum (ao vivo, claro) Lifa. O concerto no YouTube já foi nesta data, visualizado por mais de 2M de pessoas.
Fruto de uma necessidade obsessiva de tudo etiquetar e enquadrar, para distribuir em prateleiras com separadores, muitos géneros se têm atribuído aos Heilung.
Neo-folk, Neo-medieval, Folk Experimental, Folk Metal Experimental, Folk Pagão, Doom-Tronica, Viking Metal, são algumas das barbaridades que constam do rico catálogo, enquanto que eles próprios recusam uma etiqueta e chamam àquilo que fazem História Amplificada e isto sim, leva-nos a algum lado.
Os espetáculos, a que os próprios chamam rituais, desenvolvem-se como tal, numa sequência cerimonial.
“Para te ligares ao que era antes, tens que te desligar do que é hoje”, diz Christopher.
Seria na sala do Teatro José Lúcio da Silva que viria a deixar de ser exagero esta minha visão catalítica, mágica e hipnótica prévia, do espetáculo que estas três pessoas, de três nacionalidades diferentes e os seus sete ou oito coadjuvantes, mais do que exibirem, comungam com uma mole de estranhos.
Após apagadas as luzes da sala e ao fim de alguns instantes, torna-se notório, que não seria também desajustado, chamar ao espetáculo sensorial que se desenvolve diante de nós, uma mudança de dimensão. Sem darmos por isso, esquecemos algures as maravilhas da eletrónica e da nossa civilização; esquecemos os écrans LED, os semáforos ou os relógios digitais. Somos sumaria e mentalmente engolidos pelos sons e pela cenografia que daquele palco transbordam para todo o espaço e nos absorvem e nos consomem.
Naquilo que tanto poderia ser considerado uma performance teatral como uma ópera, mistura-se com a música uma coreografia, riquíssima em adereços e guarda-roupa, ambientados por um desenho de luz de uma simplicidade e eficácia fascinantes que resultam numa performance cénica impressionante.
A riqueza coreográfica é orientada, por estudos profundos e apaixonados que os elementos do grupo desenvolvem, a partir das suas origens culturais.
A busca para a sua História Amplificada nas origens dos seus povos, os Vikings e as tribos germânicas que emigraram para Norte para se lhes juntarem, não têm limites.
Na primeira peça, Open Ceremony, é feita a exaltação dos espíritos para que participem nos ritos que se iniciam e na última, Hamrer Hippyer, os espíritos são dispensados e a energia acumulada e libertada dissipa-se. Pelo meio há toda uma liturgia xamânica de interiorização, de estímulo à meditação, de exaltação guerreira, de luto e homenagem, até ao encontro com o eu mais íntimo e livre de cada um. Heilung assim o desejam e os estranhos que partilham a sala percebem ou não, que estão unidos por uma força imensa irradiada daquele palco.
Pelo meio, os temas sucedem-se naturalmente, sem quebras nem solavancos, independentemente do ritmo, do tom, do vigor e da impedância. Há uma completude insinuada, provocada pelo envolvimento, primeiro emocional, e depois, total da assembleia, concretizado na entrega e participação do público insaciável.
O público, ele próprio formando um todo aparentemente homogéneo, recebe a mensagem projetada e responde ao que lhe é pedido e entrando em comunhão, tornando-se parte do todo que tem no palco o seu núcleo. O público proporciona um retorno, que realiza a fraternidade e a partilha, tal como se espera que uma congregação responda ao seu sacerdote.
“Nós humanos, temos que viver em união e procurar na música as forças boas que nos unem como espécie na luta pela sobrevivência”, diz Maria.
Esta união ao longo do rito, afirma-se pois indispensável ao equilíbrio, e nasce naturalmente, por força da energia irradiada do palco – ou altar? – sem cuja concretização, aquela se perderia no éter, ou teria sido partilhada em vão. Espera-se uma conexão via meditação ou transe.
Nada deste todo teria razão de ser se isolado. Toda a performance é sensorial, e faz tão pouco sentido ouvir a música sem a envolvente cénica e coreográfica, como assistir ao espetáculo visual sem som.
Os poemas cantados, são traduções, relatos de guerras e eventos históricos, recolhidos em pedras rúnicas e em textos antigos. Usam o alemão arcaico gótico e outras línguas germânicas antigas, para além das suas línguas modernas. Usam formas de rima muito particulares e métricas bastante complexas.
Os cânticos são suaves e iluminados pela voz soprano cristalina de Maria; são harmónicos coloridos pelo canto grave e gutural de Kai e pelas teclas de Christopher, são bélicos e brutais batidos a tambores de todas as origens, reforçados pelos coros de vozes masculinas maioritariamente graves ou são tudo isto, iniciando-se de uma forma, e descambando em crescendo enérgico até à apoteose, como afinal, todo o espetáculo.
São cânticos guerreiros, orações, homenagem aos mortos, apelo aos deuses, submissão, encantamento, magia, a que faz falta, mas não é sequer indispensável, entender as diversas línguas em que são cantados. Não é, porque a mensagem de Heilung manifesta-se em diversas linguagens visuais e sonoras num todo que remete à arte total (Gesamtkunstwerk) de Richard Wagner e recebe-se com o espírito, tanto como com os sentidos.
Othan, é um cântico à fertilidade de inspiração Viking, cantado em islandês (fornnorræna), um dos idiomas do nórdico antigo e faz parte da Edda Poética, uma coleção de poemas reunidos no manuscrito medieval islandês do século XIII, Codex Regius. Pode não passar de uma alegoria, mas é sem dúvida libertadora.
A complexidade destes poemas, umas vezes traduzidos, outras apresentados no original, bem como a sua origem tornam problemática em alguns casos, a perceção do seu propósito e alimentam diversas discussões académicas na web, contraditórias, mas igualmente bem fundamentadas.
É o caso de Hakkerskaldyr, uma canção cujo texto foi retirado da pedra de Eggja ou Eggum, uma pedra sepulcral encontrada em Sogndal na Noruega, que contém cerca de 200 runas. Cantada em nórdico antigo, é causa de aberta discussão já que alguns afirmam tratar-se de um epitáfio ou um rito funerário e outros um canto guerreiro. Ao mesmo tempo, a ninguém passa despercebida a similaridade rítmica e vocal/tonal desta peça com os cânticos do povo Maori, indígena da Nova Zelândia.
Fylgija Ear (que em palco é ligado a Futhorck e transformados num só), é um poema rúnico cantado por Maria e Kai em duas línguas, a primeira uma tradução para o alemão moderno da letra original e a segunda em anglo-saxónico ou inglês antigo.
A homenagem à sua herança e o esforço de aproximação ao que é genuíno passa incontornavelmente pelos instrumentos utilizados, em boa parte construídos pelos próprios. Entre eles, há tambores com pele de veado, outros com pele de cabra e um outro, o Blot com pele de cavalo, pintado com sangue dos três elementos; um antebraço humano; há um chocalho de chifre de búfalo, outro de argila com cinzas humanas; um Ravanahatha – um antigo instrumento de cordas indiano, visto como o percursor do violino; um sino ritual hindu, uma taça de prata reconstruida, diversos apitos e inúmeros instrumentos de percussão.
Artefactos como espadas reconstruidas, arcos, escudos e lanças, anéis de bronze ou água corrente através de ossos humanos e diversos amuletos, enriquecem a sonoridade e também a coreografia.
Apetece-me, com riscos de exagero por má interpretação, falar em hipnótico, porque cura, é o que os Heilung pretendem proporcionar. Um encontro com o eu mais elementar, pelo recurso aos saberes antigos, a libertação, a limpeza interior, dos reflexos no espírito provocados pelo frenesim e pelo estrepito audiovisual do mundo urbano de hoje.
Paradoxalmente “têm” que usar a eletrónica nas suas performances, para aperfeiçoamento sonoro de acordo com os espaços, mas é-me impossível não desejar vir a assistir a este espetáculo num auditório apropriado, se calhar ao ar livre e umpluged. Porque realmente, imaginando-me sentado num chão de terra, sob um céu estrelado, julgo que facilmente me sentiria transportado para uma qualquer clareira na idade média nórdica, pré-cristã (o Cristianismo chegou a estes povos a partir do sec. XIII).
A perspetiva de cura pode ser induzida por introspeção como em Krigsgaldr, um tema ritmicamente mais lento e sonicamente menos “bárbaro” do que a maioria.
Em In Maidjan um tema lento, que nos transporta até às danças tribais dos nativos norte americanos e à sua simplicidade desmentida, como aqui, por uma profunda solenidade.
Alfadhirhaiti inicia com uma imitação de uivos, assinalando a ligação à natureza, parte fundamental desta busca do primordial.
Nos temas mais vivos, a audiência vê-se, em alguns momentos possuída por uma liberdade que, a leva a saltar, patear e berrar a plenos pulmões, qualquer coisa que não certamente (pelo menos para a maioria) expressões nórdicas antigas, nem góticas alemãs, porque é impelida a isso por tudo e todos os que os envolvem e porque pode fazê-lo, precisa de fazê-lo.
A apoteose chega com Hamrer Hippyer, o tema que fecha a sessão.
O que ouvimos nos primeiros cinco minutos desta canção são o segundo dos feitiços ou encantamentos de Merseburg, (nome da Catedral onde foram encontrados) duas peças medievais escritas em alemão antigo entre os secs. IX e X. São os mais antigos documentos da literatura alemã e os únicos textos conhecidos da crença pagã escritos naquela língua.
Segue-se um crescendo em força e intensidade, que leva a audiência a explodir num êxtase glorioso de simbiose total gerada pela energia que irradia do palco e a libertar-se, espera-se, ultimando a comunhão com aquelas pessoas que parecem ter vindo de Asgard.
O ritmo acelerado é marcado por vários instrumentos de percussão, com dez elementos em palco e por movimentos tribais executados pelos quatro guerreiros na boca de cena, enquanto as vozes, agora em coro, se limitam a vocalizar repetições rítmicas.
Os espetáculos têm um alinhamento rigoroso. Terminam assim, sem encores, porque o processo está concluído, a sessão é selada.
É um momento de cumplicidade, de gratidão, até ao qual todo o espetáculo conduziu e que faz aceitar e sentir o seu fim sem qualquer desencanto. Sentimo-nos exaustos talvez, mas plenos de energia vital; vazios, transparentes, mas enormes.
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Voltamos para o mundo como vitoriosos na última das batalhas, como os sobreviventes do Ragnarök.
Montagem audiovisual de Heilung no Festival Extramuralhas 2018. Canal YouTube Artes & contextos.
Produção: Rui Manuel Sousa/Artes & contextos.
Jornalista, Diretor. Licenciado em Estudos Artísticos. Escreve poesia e conto, pinta com quase tudo e divaga sobre as artes. É um diletante irrecuperável.