
John Zorn em 10 discos0 (0)
29 de Julho, 2018
De: Jazz.pt
Guia para os que desejam conhecer John Zorn no seu melhor e já gastaram o subsídio de férias – parte dele para assistir à Special Edition do Jazz em Agosto dedicada ao saxofonista, que tem início já esta sexta-feira, 27 de Julho – e não pode torrar 2500 euros em discos só de uma vez.
Como é que se reduz um músico com mais de 200 discos publicados a dez essenciais? É impossível. Mas é precisamente por ser impossível que a jazz.pt se mete nisso. Serão muito poucos no planeta os que ouviram com atenção todos os discos do saxofonista e os que o fizeram repararam em dezenas de repetições do mesmo tema: 42 edições de Masada ou 32 do “Book of Angels” só na Tzadik (a editora que fundou e dirige). Na prática conseguimos reduzir estes 200 a 100, mas mesmo assim é muito para se conseguir fazer um sumário sem falhas. Reconhecida assim a impossibilidade da tarefa, aqui fica a lista dos 10 indispensáveis, na opinião de um vosso criado. Sabemos que os nossos leitores não são milionários e não podem comprar 212 discos de uma vez só e por isso fomos aos arquivos e desenterrámos a dezena imperdível: é só a primeira escavadela num campo arqueológico vastíssimo.
10. John Zorn / George Lewis / Bill Frisell: “News For Lulu” (Hat Art, 1990)
A questão com este caso é simples: o disco não tem nenhum factor de inovação que o alcavale para o olimpo… mas é lindíssimo. Um trio de saxofone, guitarra e trombone a tocar uma selecção de hard bop do melhor: Kenny Dorham, Hank Mobley, Sonny Clark, Frddie Redd. Está tudo aqui. Os tiques expressivos de John Zorn também já cá estão todos: os gritos, o sopro de quem se finda com dor. Os perdigotos de saxofone. É uma maravilha e por isso tem um lugar nos 10.
9. Pat Metheny: “Tap: The Book of Angels, Vol. 20” (Tzadik / Nonesuch, 2013)
Desde que começou a viver profundamente a sua ancestralidade musical judaica, John Zorn saturou o mercado com edições de Masadas e “Book of Angels”: relatos da sua leitura da tradição israelita. A longa peregrinação (penitência?) por quinhentas canções judaicas começou em 1994 e o compositor organizou-a em dois livros. O primeiro, com 200 canções, foi entregue pelo grupo Masada. O segundo, “Book of Angels”, com 300 canções, é tocado por diversos grupos e formações, estando neste momento na 32ª edição. Assim, com 32 CDs a carregarem este fardo, seria impensável não escolher um para estar presente nesta lista, representando um formato a que o músico entregou tanta energia criativa.
“Tap” é uma surpresa, pois reúne Zorn a Pat Metheny (que nunca se encontraram pessoalmente, o disco foi gravado à distância). Metheny é um guitarrista descomunal, com grandes oscilações de gosto, mas que já provou ser capaz de se inserir na perfeição no papel de intérprete (Steve Reich) ou de improvisador (“Zero Tolerance for Silence”, de 1992, ou “The Sign of Four”, de 1994). Apesar de um começo desastroso (“Masthena” em guitarra sintetizada soando a sitar…), o resto do disco dá-nos a guitarra acústica de Metheny em estado quase puro e o jazz tingido de “yiddish” de Zorn.
8. The Dreamers:“O’o” (Tzadik, 2009)
Este é mais um disco que não acrescenta nada ao mundo do jazz, a não ser temas belíssimos e estupidamente bem tocados. E isso é muito. “O’o” é uma sebenta de toda a aprendizagem de Zorn a arranjar os temas de cinema dos melhores compositores. Aqui encontramos uma escrita melódica levada ao extremo, em que cada canção ecoa a beleza dos grandes temas de Morricone, Goldsmith e Mancini, tocadas por um grupo que tem a particularidade mágica de conseguir ser coeso e descontraído ao mesmo tempo. A capa do disco está povoada de desenhos de pássaros (aparecem em gravações no terceiro tema, “Po’o’uli”) e parece ser esse o sentido – a beleza crua do canto dos três solistas, juntado o piano e o órgão de Jamie Saft, o vibrafone de Kenny Wollesen e a guitarra de Marc Ribot –, suportada por uma massa rítmica de excelência. Lindeza pura, tocada na perfeição.
7. John Zorn: “The Big Gundown: John Zorn Plays the Music of Ennio Morricone” (Nonesuch, 1986)
Uma obra-prima absoluta de bom gosto, arranjos e saxofonização. Zorn usa a música de Morricone, numa visão provocadora entre cultura alta e cultura baixa, tão precursora na altura (recordo que o ensaio “A Condição Pós-Moderna”, de Lyotard, fora lançado em 1984). Não que o jazz não tivesse já feito ou interpretado música para cinema, mas este disco usa a música do compositor de origem italiana que tinha ficado presa em filmes e dá-lhe uma leitura nova, extremamente inteligente e elegante. Percebemos finalmente o génio melódico de Morricone neste disco tocado pela nata da “downtown” nova-iorquina da altura: Fred Frith, Anton Fier, Bill Frisell, Christian Marclay, Bobby Previte, Arto Lindsay, Tim Berne e tantos outros, com alguns elementos inesperados como Toots Thielemans, Big John Patton ou Diamanda Galás. O disco começa com um arranjo superior para o “spaghetti western” de 1966 “La Resa dei Conti” (na versão americana mal traduzido para “The Big Gundown”), escrito por Sergio Leone e Sergio Donati e realizado por Sergio Sollima. Só este tema vale o disco. Aparecem as colagens, as sobreposições de referências estranhas (samba, diálogos em Português do Brasil).
6. Masada: “Three” (DIW, 1994)
Masada é um planalto perto do Mar Morto. Pela sua natureza geológica, assemelha-se a uma fortaleza, com penhascos inexpugnáveis. Terá sido primitivamente ocupado pelo rei Herodes, deposto pelos romanos (70 d.C.) e depois sacralizado como ortodoxo no Séc. V. Não se conhece a data do abandono ortodoxo, mas assim permaneceu até à criação do Estado de Israel. A Montanha dá nome ao grupo e ao primeiro projecto zorniano de introdução das escalas e melodias klezmer no jazz. Klezmer é a música de dança tradicional dos judeus Ashkenazi, uma das diásporas que se estabeleceram no Norte da Europa a partir da Idade Média, resultado da miscigenação da memória babilónica com a vida no novo território. A música mistura os modos musicais das orações judaicas com melodias dos folclores ucraniano e romeno, o “zest” cigano e outras influências das culturas locais onde as comunidades se foram estabelecendo.
A melodia é a chave e também um problema no que respeita a transformá-la num processo jazzístico: como qualquer música folclórica, é limitada em modos e melodias e repetitiva. É por isso que este álbum entra para os 10 mais, pois o trabalho de Zorn neste campo é brilhante. Não só é pioneiro na introdução deste mundo no universo jazzístico como inventa processos desconstrutivos e rítmicos que permitem que ela sobreviva perfeitamente num ambiente mais exigente. Este primeiro grupo introduz o então desconhecido Dave Douglas no trompete e percebemos que estamos perante um quarteto de altíssimo nível. Joey Baron toca incrivelmente, usando baquetas e mãos. Cohen, no contrabaixo (outro ignorado em 1994), é incrível a manter a estrutura unida. Escolhemos o terceiro disco e não o primeiro porque aqui a música soa mais experimentada e solta.
5. John Zorn: “Music Romance, Vol. 2: Taboo and Exile” (Tzadik, 1999)
Um disco tenso, em que a música se desenrola sempre num clima de beleza cruel. Zorn compõe, arranja e produz, mas só toca saxofone brevemente num solo de um dos temas do CD. A música, executada pela nata da “downtown” nova-iorquina, desenrola-se num passo apressado, ansioso, com a beleza da escrita a ser cortada por alguma acidez no uso do violino, do órgão e das guitarras. São 12 peças, todas magnificamente escritas e arranjadas, criando diversos ambientes e situações musicais, com a percussão a ter um papel importante, pois constrói um fio condutor entre os 12 pequenos audio-filmes. Entre ambientes pesados, cruéis e de dor fininha, encontramos aqui um dos temas impulsionadores da criatividade do saxofonista.
4. John Zorn / Fred Frith: “The Art of Memory” (Incus, 1994)
Tivemos já oportunidade de ver ao vivo, no Jazz em Agosto, este duo de improvisadores que é um dos melhores exemplos de virtuosismo na improvisação. Zorn e Frith colaboram regularmente em inúmeros projectos, mas este disco a dois, em que aparecem nus, sem rede e a construir uma música extraordinária e criativa, em permanente renovação, é seminal na improvisação total e imprescindível para se perceber a beleza desta linguagem musical. O álbum teve uma sequela em 2006, editada pela ReR de Chris Cutler, que, sendo tão interessante quanto o primeiro, não tem a sua novidade. Em 2004, por ocasião do aniversário do saxofonista e incluído na série “John Zorn 50th Birthday Celebration, Vol. 5”, saiu outra gravação da dupla, igualmente excelente, com a última actualização deste diálogo de décadas, um dos mais interessantes do jazz actual, a acontecer em 2010 com “Late Works”.
3. John Zorn: “Redbird” (Tzadik, 1995)
Começando a assumir claramente a sua dimensão de compositor e produtor, Zorn edita um dos seus mais belos trabalhos, “Redbird”, que agrupa duas composições de música minimal e concreta. O primeiro tema, todo escrito para bombo e interpretado por Jim Pugliese, é uma obra deslumbrante que mostra a capacidade de abstracção de Zorn, nunca perdendo um sentido intrínseco de beleza. O segundo, para viola, violoncelo, harpa e percussão, é ainda mais claro na mostra de uma dimensão permanente da música do saxofonista: mesmo quando explora territórios abstractos ou abrasivos, a música consegue sempre manter uma coerência interna e um sentido lógico – ou de beleza, se preferirmos – que a faz chegar aos ouvidos do receptor com agrado, dando pistas para a sua descodificação. Para usar uma expressão muito apropriada do guitarrista e compositor português Vítor Rua: «Tem moldura.»
2. John Zorn: “Cobra” (Hat Art, 1991)
“Cobra” é um marco fundamental na história da música improvisada e, consequentemente, do jazz. A sua grande inovação é o facto de ter introduzido processos de condução interna da improvisação. Trocando por miúdos, o que isto quer dizer é que, até 1991, a improvisação conhecia dois processos para se desenrolar: um livre, sem condução, baseado na intuição dos músicos, e outro conduzido, através de um maestro que dava indicações gestuais. “Cobra” introduz outra hipótese, por meio de sinais e cartões que permitem realizar várias operações músicais: silenciar outros músicos, criar subgrupos, realizart jogos de imitação, etc. Baseado nos jogos de computador, mais do que um disco “Cobra” é a invenção de uma metodologia que pode ser utilizada por quaisquer músicos que queiram tocar juntos.
1. Naked City: “Naked City”(Elektra Nonesuch, 1990)
Esta é a obra-prima indispensável de John Zorn. Neste disco, Zorn sedimenta muitas das invenções que já tinha anunciado e que aqui ganham uma coerência desconcertante: o “zapping” e a compressão. Acrescenta ainda o uso de múltiplas referências (das culturas alta e baixa), ambientes sexuais pesados e fronteiriços (foi-se a masculinidade do “jazzman”), introduz o “hardcore” asiático e substitui a ideia de “cantor” pela de “shouter” (foi-se o “jazz vocal”). O álbum é inclassificável e tem 26 temas (mesmo a edição em vinil) porque o processo de compressão faz com que algumas músicas tenham 20 ou 30 segundos.
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Foquemo-nos no “zapping”, o novo processo introduzido por este disco. “N.Y. Flat Top Box” é a peça mais extraordinária a este nível. Ouvida ao vivo no Fórum Picoas pela primeira vez, tivemos todos a sensação de que era ficção científica. Hoje é difícil reconstruir esta sensação de ouvir uma música que nunca tinha sido ouvida antes. E aquilo que parecia um processo de colagem em estúdio era, na verdade, um tema tocado ao vivo (daí que a compra deste CD possa e deva ser acompanhada de “Naked City Live, Vol. 1”, Tzadik, 2002). Inclui alguns temas de filmes com arranjos fantásticos (Mancini, Morricone, Barry e Mandel): a versão de “A Shot in the Dark”, de Henry Mancini, é incrível… Bem como a compressão de “Lonely Woman” (já ouvida em 1989 em “Spy Versus Spy”). Os temas de 30 segundos são lambadas brutas na cara, com o interveniente japonês (Yamatsuka Eye) a gritar como se fosse a última coisa que fazia na vida. “Naked City” é a afirmação de um músico único que vai marcar a história do jazz para sempre.
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