
Momentos para Inventar o Amor, de Carlos Alberto Correia0 (0)
21 de Abril, 2018
Na última conversa com Carlos Alberto Correia, falamos sobre o seu Concerto Para Sanca João, uma obra grandiosa, de uma certa literatura ficcional, que é ao mesmo tempo histórica, já que o que tem de ficcional é quase cosmética ou uma forma de unir pontas de “um entrelaçado de histórias que são memórias reais e imaginárias sinceramente verdadeiras”, como eu escrevi na altura.
Desta vez lemos e absorvemos Momentos para Inventar o Amor, uma obra enganadoramente simples, de tão complexa. O autor fala a várias vozes, através de personagens que por sua vez falam através de outras, e mais, desmultiplicando-se num exercício quase decadentista.
Um casal de titereiros, com as suas idiossincrasias, cria o texto para as suas marionetas, um casal também, em jogos de sedução, aproximação e afastamento. Uma das marionetas escreve uma história, não de um casal, mas de um triangulo amoroso. E pronto, aqui, o domínio das personagens, o seu “texto”, as suas ações e pensamentos, parecem ter resvalado e saído do controlo do criador que já ficara para trás, esquecido. Estas ondas de choque atingem o ponto de reflexo e retornam, aparentemente até ao autor, que fica sem muitas opções, já que as ações das personagens começam a refletir-se umas nas outras, retroativamente. Eles ou ele, falam sobretudo de amor e de afetos; de encontros e desencontros, muitos desencontros sublimados e traições conformadas; discutem a sociedade, a política, o valor da vida e a premência da morte, o suicídio; as desigualdades, as quotas, o sexo, os sexos e os géneros; falam de deuses, do Andrógino e de Deus, Yahweh, que morreu cansado no fim da criação, mais cedo do que estimara Nietzsche; falam por enigmas, por metáforas, por imagens, poeticamente, o “poeta-deus” a lembrar o rei-filósofo de Platão. Discordam em tudo, em tudo se desafiam, ele e eles e os outros dois, mais os outros dois que aparecem mais tarde…
São várias histórias de amor que poderiam caber numa só ou é uma só história contada a diversas vozes e conduzida por presumíveis éticas e abordagens filosóficas distintas?
Mas afinal o que é que uma história de amor, terreno, humano, vulgar como os das vidas reais, dos romances e das novelas tem de filosófico? Tem tudo.
Na harmonia, desencontros e peculiaridades de cada relação, as personagens dão largas aos seus fantasmas pessoais e às suas interpretações, refletindo sobre a forma como cada opção ética se reflete no eu íntimo da cada uma, envolve os outros e condiciona as relações. Como a vida assume direções ao sabor das contingências do amor.
“As palavras saem do arquivo da memória, passam no coador do gosto, juntam-se na epiderme da sensibilidade, prontas quase à recusa ou ao conceito do conhecimento.”
(do livro, por Cursino)
Artes & contextos – Este livro sai completamente do trilho do Concerto e no entanto estava “prometido”, pelo menos, desde essa nossa conversa. Isto significa que o foste criando ao longo do tempo, ou tinhas apenas a ideia e é fruto de uma nova sementeira?
Carlos Alberto Coreia – O Concerto para Sanca João é um romance épico, portanto tem um estilo de saga. Conta-se o percurso de um improvável “herói”. O presente, para lhe arranjar uma caixinha onde nunca caberá por completo, arriscarei classificá-lo com cínico/dramático. Conforme o ponto de vista poderemos considerá-lo de fermentação lenta ou muito rápida. Não é contradição. Enquanto o Concerto foi pensado a longo prazo, escrito de fio a pavio no decorrer de cinco anos, o Momentos apenas levou seis meses a completar.
Como bem notas o livro é uma sequência de histórias contadas, na sua maioria, por Cursino, personagem de uma peça de marionetes a ser montada por Kismet e Oblata. Muitas dessas histórias já estavam escritas e algumas publicadas. Se optasse por um livro de contos – uma das decisões possíveis – alguns textos ficariam de fora e o projeto a que me propunha estaria prejudicado, não atingiria os objetivos pretendidos, chegaria coartado ao leitor. Por isso, e é o que se faz na escrita de um romance, criei uma cosmogonia onde as personagens fossem, ao mesmo tempo e em planos distintos, ativas e/ou passivas, isto é, onde se contam e são contadas.
Para complicar um pouco mais a situação, um dos eixos que sustenta o Momentos (que se pretende um livro sobre o amor) é a escrita da escrita. O que é escrever? Porque e como se escreve quem escreve ou se descreve? E, para além do que se escreve quando se escreve, o que pretende transmitir-se nesse ato? Para mim, o reconto de uma história não termina na narração. Há sempre a exsudação, não direi de uma moral, mas de um sentimento crítico não só sobre a escrita, também sobre a atuação do escrevente e das suas personagens. A mensagem raramente é explícita. Está lá, embutida na razão da história e cabe ao leitor, na sua liberdade interpretativa, traduzi-la e recriá-la.
O livro é uma sequência de contos enleados num fio condutor que os transforma numa só história. Cada conto acaba por ser quase uma declaração de princípios, cada história foca-se num assunto base de importância social ou humana profunda e que são integrantes das preocupações do dia a dia do autor. Assuntos que lhe são caros discutir.

Carlos Alberto Correia
A&c – Estamos perante um manual do Carlos Alberto Correia?
C.A.C. – Para responder a esta questão obrigas-me a fazer um périplo, a revisitar histórias e personagens. Antes da pergunta enunciada nunca se me pôs tal problema. Depois, tive de reunir-me comigo, observar as ações praticadas pelas personagens, perceber aquilo que por detrás delas, sob a capa da movimentação e opções, existiria.
A primeira ponderação, após o incómodo sentido pela palavra “manual”, isto é, um livro de receitas, um breviário de comportamentos, levou-me à recusa dessa classificação. Ofende-me o espírito “democrático”, coloca-me em desagradável posição autoritária. Depois, mais serenamente, saltou-me à vista que o livro escrito pelo autor não é necessariamente o apercebido pelo(s) leitor(es).
É claro que, não me propondo estabelecer um catecismo dos meus valores, torná-los únicos e obrigatórios para os outros sou, em qualquer caso, porta-voz dos mesmos e eles transparecerão, necessariamente, ao leitor atento. Por isso, quem lê, pode sentir, através das ações das personagens, as linhas éticas que conformam o código de vida do autor.
Escrever é refletir sobre o humano, o social. Se não tiver uma perspetiva da minha sociedade, do meu tempo, ou me faltar a vontade de sobre tais assuntos emitir o meu parecer, escreverei para quê? Para comprazimento próprio? Mas eu sou um preguiçoso ativo. Só faço o que é imperioso executar. Se puder manter-me no “nirvana” não bulirei uma palha. Portanto escrever é incómodo, dá muito trabalho. Assim, terá de ser um imperativo inultrapassável – individual ou coletivo – a tirar-me da inatividade. Tenho de sentir que alguém terá de apresentar a questão. E esse alguém, poderei ter de ser eu. Porquê? Porque estou no sítio, conheço ou reconheço o problema, tenho ou penso ter uma possível solução, ou, pelo menos, uma perspetiva. Uso as palavras como utensílio mais que para comprazimento. Por vezes acontece a delícia da escrita. É sentimento muito procurado, raramente conseguido. Fica o trabalho, a carpintaria e, depois, o vago prazer de ter, de algum modo, feito frutificar esse labor em algo de possível aceitação pelos outros. O que escrevo, mesmo quando perentoriamente afirmado, vale, na sua facialidade, apenas para mim. Não pretendo impor. Suponho e proponho. É-me, porém, impossível assistir ao espetáculo do mundo e ficar calado ante o bem e o mal ou o que não sendo nada disto, poderá ser qualquer destas coisas, dependendo dos sentimentos e efeitos produzidos. Exemplificando. Dois homens estão apaixonados pela mesma mulher. Supostamente ela escolherá um deles. O ato de escolha é simultaneamente bom e mau. Bom para o escolhido, mau para o perdedor. Para ela? Talvez não possa ser classificado em nenhuma destas categorias. Terá sido, simplesmente, uma escolha. Tenho, para mim, que tudo na vida é causa e consequência. Cada escolha define um futuro e descarta todos quantos eram possíveis antes dela ser feita. É na escolha que reside o que de bem ou mal possa vir a acontecer.
Este romance tem, como sabes, vários níveis e instâncias narrativas, o que lhe confere, provavelmente mais que a outros de estrutura menos complexa, a possibilidade de pôr em confronto comportamentos, situações e carateres diversos. Cada um transportará uma vivência, um código muito próprio. A minha intenção é que, a partir das atitudes, recontros e recontos das personagens, seja visível a diversidade de escolhas, pretendendo apresentar as mesmas como consequência e motivadas por interesses próprios, interações e inserções sociais. Reconheço, porém, que a voz autoral, possa transparecer como mapeamento daquilo que para ela é bom ou mau, aceitável ou não, independentemente de a mesma se querer equidistante, pretender somente apresentar – não julgar – e, no final, o intento falhe e a sua marca seja apercebida como o sentido obrigatório dos actantes.
Não posso, porém, deixar de sublinhar que a minha escrita – aliás, toda a escrita – tem por fim entregar uma mensagem. É isso que eu faço, no entanto, repiso, uma mensagem é apenas a transmissão de um saber, de uma notícia. Não envolverá o recetor noutra obrigação além daquela a que se sentir impelido, nem, em último caso, poderá supor-se que o emissor pretenda, mais que informar, desviar os caminhos de quem a recebe. Pode acontecer, mas é escolha de cada um. Dá-se-lhe, comummente, o nome de liberdade.
O autor, através das personagens, aprofunda temas em confronto com um contraditório imaginário e que pretende deixar-nos na incerteza quanto ao seu lado da barreira.
A&c – As personagens têm personalidade própria, como o Cursino e a Valéria discutem repetidamente?
C.A.C. – Estamos perante o problema do criador. Engendra por um motivo, com uma intenção. Por vezes, como se diz nos Momentos, é apanhado na “esquina das palavras”. Significa tal que ao preferir um termo a outro poderá estar a introduzir um novo rumo na história, no caráter das personagens. Está a transformá-las fora das intenções primárias. O texto é uma construção, a bissetriz entre o pensado e o transposto para a narrativa. Dificilmente serão coincidentes. Há um termo que está mesmo a ser necessário e não ocorre. Substitui-se por outro, mas a armadilha está montada. A partir dali a história enviesa pelo caminho aberto pela palavra conseguida, pelo conceito inerente. Já está tramado o escritor. Vai ter de percorrer sendas imprevistas, induzidas pela escolha feita. Subtilmente a trama transmuta-se e lá vamos percorrendo o trilho vislumbrado até à próxima encruzilhada, à escolha seguinte.
Se notares bem, não é só o Cursino e a Valéria que mantém tal discussão. Ela perpassa igualmente nas falas de Kismet e Oblata. Todos estão inseguros sobre a questão do “querer” das personagens. É um pouco a metafísica do quem sou eu? Do ser ou não ser! Do nosso reconhecimento no espelho e da especularidade da imagem a contradizer, muitas vezes, a perceção que se tem de si próprio. É a procura do singular, da transcendência que se pode subsumir, nunca declarar.
A&c – E livre arbítrio?
C.A.C. – Se eu pudesse responder cabalmente a esta questão, se calhar não escreveria romances. Como sabes esta controvérsia percorre toda a história das civilizações. O homem é livre ou determinado? Pode escolher ou fará o que o seu destino traça? Várias épocas e culturas responderam de forma diversificada a este problema. No entanto tudo depende do ponto de vista. É inegável que possuímos um certo grau de liberdade nas escolhas, também não é mentira que temos condicionantes a limitar o nosso poder de decisão. Posso escolher ser o campeão olímpico de velocidade, porém se o meu corpo não possuir as características necessárias estará determinado que nunca o serei. Aqui encontramos um argumento a favor do determinismo, mas supõe, por absurdo, que apesar disso consigo participar nesses jogos e, por uma série de causas extrínsecas à competição em si, sou o único a chegar à meta. Logo tive liberdade de escolha e a minha determinação ilidiu o que de determinístico havia na impossibilidade de alcançar o meu desejo.
O problema, suponho, é pormos os termos em absoluto. Está determinado que a minha vida terá um fim, no entanto o que farei com ela dependerá, embora não totalmente, bastante de mim. Voltamos ao plano das escolhas e dos muitos futuros realizáveis, modificados em cada opção tomada.
No entanto, nesse aspeto, o tom geral do livro parece decetivo. Como se afirma logo na entrada, tudo caminha para a entropia. A desordem, a queda, o fim, parecem ser estados para onde se marcha, dos quais não poderemos fugir. Porém, tal é ter a visão curta. O fim de um caminho, uma relação, por mais importantes que sejam, são apenas isso. Do caos ficante nascerá uma nova ordem, um novo devir. Por isso, em muitas religiões o deus que destrói é também o deus criador e vice-versa.
As afirmações perentórias escondem o pedido desesperado de uma resposta, mesmo se contrária àquilo que se afirma. É o terror da incomunicabilidade. Dos meus sentimentos não se transmitirem exatamente naquilo e no como digo. Do que ouves ser incapaz de traduzir o que quero dizer-te, da quase impossibilidade de percecionares, profundamente, o significado, a força, do que quero transmitir.
Posto isto, que julgo necessário para enquadrar o problema sem cair na tua armadilha, falemos do “livre arbítrio” das personagens.
A literatura é, como bem sabes, um jogo de máscaras. O autor despe-se de si para pôr na boca de outros quanto pretende afirmar e o seu contrário. É uma das prerrogativas do ofício. É possível afirmar uma coisa e o seu oposto, porque os bonecos literários existem para isso mesmo. Uma personagem é, sem dúvida, aquilo que o autor faz dela. Neste caso é destituída de vontade. Porém, o autor usa a língua como matéria prima. Como refere, creio que Kismet, no “Momentos”, as palavras têm esquinas e armadilhas. Conjugando-as com a necessidade de verosimilhança do escrito, podem – e muitas vezes acontece – obrigar a desvios do “destino” traçado para a personagem. Parece estarmos perante uma possibilidade de “livre arbítrio”. Porém essas escolhas apenas se passam no universo do romance, fora do qual a personagem não existe e, sem existência não disporá de qualquer arbítrio. Por isso (apanhaste-me) só possui a liberdade que a voz autoral concede, mesmo quando se desvia das identidades previamente escolhidas.
Com isto desmontaste parte do meu jogo. Fizeste-me cair máscaras. É imperdoável!

Carlos Alberto Correia
As personagens têm opiniões muito firmes acerca dos assuntos que discutem; não há espaço a incertezas ou divagações, tão pouco a maiêutica elas afirmam as suas convicções quase declarativamente.
A&c – É fácil por duas personagens a contrariarem-se, em alguns pontos, profundamente?
C.A.C. – Tão fácil como qualquer personagem se contrariar a si própria no desenvolvimento do tema. São aliás essas contradições que estabelecem, muitas vezes, a tensão dramática. Repara como Oblata e Kismet, ambos empenhados em escreverem, em conjunto, uma peça sobre o amor, a entendem de formas tão diferenciadas. Confrontam-se nas opiniões, perspetivas de vida, modos de encarar o ofício etc… No entanto continuam ligadas, lutando pelo mesmo objetivo, cada um a seu modo. E, como na vida, nem sempre são coerentes nas afirmações e atos. Mudam quando os contextos se alteram.
A&c – Discutes com as tuas personagens?
C.A.C. – Tive grandes discussões com Cursino quando ele decidia escrever as suas histórias. Além disso, o sujeito é um pretensioso que pensa conhecer e dominar tudo. Repara como ele, enquanto Cursino, escreve quase sempre no futuro e em negrito. O tipo chega a ser insuportável no seu pretenso saber. Valéria também, várias vezes se opôs ao que sobre ela queria contar. Nem calculas a guerra que foi conseguir a história do pai. De qualquer maneira “o autor é um oportunista” – diz-se no livro – quase sempre lhes consigo dar a volta.
A&c – E contigo?
C.A.C. – Pergunta retórica, Rui. Tu, como escritor, sabe-lo bem. Mas claro, estás no papel de entrevistador e terás de fazer tua a ignorância de um possível leitor. Pois bem! Quanto de nós há em cada personagem? Quanto permitimos que elas de nós revelem? Que imagens pretendemos passar?
Essa é a perene discussão do autor consigo, do autor com as personagens e das personagens umas com as outras (com o autor escondido por detrás das afirmações que lhes permite fazer). Enfim, o tão comentado jogo das máscaras. “O poeta é um fingidor…).
Em meu entender as personagens do “Concerto” serão diferentes destas porquanto encarnam uma temporalidade a fluir – embora com ressaltos – numa linha cronológica, de quando, em vez a par com a História.
Nos Momentos, com exceção dos pares Oblata/Kismet, Valéria/Cursino, elas estão enquadradas numa parcela de tempo e lugar, num recado que vêm trazer-nos. Passada a mensagem não têm qualquer razão para ultrapassar a demarcação da história comunicada. No entanto são a estrutura em que o livro assenta, a ficção da ficção. Os dois pares serão a cobertura, o cimento, que os liga.
No Concerto as personagens podem ser encaradas como representativas, compósitas, como lhe chamas e sendo ou não personagens reais, são modelos, chamemos-lhe assim, de muitas pessoas que naquelas circunstâncias terão vivido histórias similares. Aqui as personagens são muito específicas e construídas com um fim pré-determinado, como uma missão.
A&c – Tal como o Cursino, o Carlos Alberto Correia retrata personagens, mais ou menos “arredondadas”, plasmadas de pessoas reais?
C.A.C. – Pela forma, conteúdo e tema estas personagens foram de mais fácil conceção. Quase todas nascidas da imaginação ou consubstanciadas em meros frutos de observação distanciada, pude fazer delas o que me deu na gana. No Concerto havia a necessidade de modificá-las, torná-las compósitas, para não deixar ninguém desconfortável, bem como para “ajeitar” a realidade à ficção. Aqui tive a possibilidade de moldá-las aos meus desígnios, desobrigado do receio de ferir alguém. É verdade e volto a referir – “o autor é um oportunista” – que nalgumas personagens afloram leves traços de pessoas com quem me dou. São apenas apontamentos.
A&c – Esperas que algumas se reconheçam?
C.A.C. – Será quase impossível alguém referenciar-se no descrito. Já quanto às situações muita gente pode ter passado por coisas semelhantes, mas isso é problema do social, não meu.
A&c – Quando, no último capítulo justificas o Cursino, estás a fazê-lo por ti?
C.A.C. – Em minha opinião, no “Cais das Colunas”, o Cursino não pretende justificar-se. Revela-se! Desmonta o jogo. Convida a perceber o que se passa por detrás do écran que é o espetáculo da vida atual e enceta um caminho possível para fugir à disforia. Faz o que nunca fez. Abre uma porta à esperança. Apesar do visto e percebido não desiste da procura. Alerta para o grande saber sociológico que nos diz: – se uma coisa parece tão verdadeira que não pode ser senão aquilo que aparenta é porque, de certeza, é outra coisa. Acautela-nos contra as ilusões e ensina-nos que nada é, em princípio, inultrapassável.
A&c – A epopeia do Cursino para publicar o livro retrata a tua com a publicação do Concerto?
C.A.C. – Infelizmente não só a minha. Presumo que nunca se tenham editado tantos livros como agora. Tal é positivo porquanto abre um leque de escolhas assinalável e permite que obras valiosas venham à luz do dia. Já, por outro lado cria uma cacofonia onde é difícil descortinar o durável do passageiro. Também não é de fazer grandes lamentos. Vivemos no tempo acelerado. Escrever ou ler exigem o tempo lento, de encontro interior, reflexão. Ora isto é tudo o que a moderna sociedade aponta como detestável, improdutivo.
Dizia-me um amigo que há editoras que se lá formos, levarmos a lista telefónica, pagarmos o exigido, eles a publicam com a sua chancela e o nosso nome como autor. Passe a piada, mas o panorama é um pouco esse. Nada tenho contra o facto de qualquer escritor pagar parte dos custos de edição. É decisão que cabe a cada um. Aliás, como Cursino refere, Joyce e Proust também tiveram de suportar os custos dos seus livros. No entanto o problema não é esse. É o de terem acabado os “Editores”.
Lembro-me de, ao lançar o meu primeiro livro, “Silêncio Mordido”, uma pequena brochura de umas dezenas de páginas, o editor ao aceitar o livro, sempre em consonância comigo, ter tratado de tudo. Revisão, divulgação, distribuição, acompanhamento, foi tudo trabalho seu, não me exigiu qualquer pagamento e ainda recebi a percentagem acordada sobre os livros vendidos. Onde estamos agora? Uma empresa de serviços, intitulando-se editora, produz o livro com baixa tiragem. As menos más apostam no lançamento e depois o autor que se vire. Não há as prometidas divulgações, nem distribuições. Aconteceu-me isso com o “Concerto”. Após mais de um ano de negociações e cerca de oitenta mails trocados, chegámos a acordo. Foi uma grande desilusão. Quase nada do que constava do contrato, dos mails e reuniões foi cumprido. Por isso mudei e este livro, experiencialmente, foi produzido como e-book.
Os próximos, estou a estudar o mercado, serão lançados como livro eletrónico e impressos a pedido. Parece-me ser o futuro e corresponderá aos interesses de quem quer gastar pouco num livro e não se importa, ou mesmo gosta, de o ler num suporte eletrónico, assim como permitirá, a quem não dispensa o livro físico, poder adquiri-lo, por preço superior, a qualquer momento.
O desenrolar da história com todos os seus enlaces e novelos faz-me lembrar algumas coisas de Kundera ou até Calvino, estou a lembrar-me, deste último de, por exemplo de “Se numa noite de Inverno um viajante”.
A&c – Quais são os autores que admites de algum modo te influenciarem ou inspirarem?
C.A.C. – Como já tive ocasião de te dizer vou buscar raízes a Camus, Sartre, Vargas Llosa e, em Portugal, a Virgílio Ferreira. No entanto, como todos, esforço-me por atingir a minha voz própria
A&c – Voltando ao Concerto e aos temas musicais que ilustram os pontos chave da narrativa, faço-te um desafio: imagina a leitura desta obra como uma experiência multimédia e não uma música para cada capítulo, mas antes um álbum que colocasses como fundo à leitura deste Momentos para inventar o amor.
C.A.C. – Esta deu-me que pensar. Enquanto no Concerto para Sanca João a música ia acompanhando o andamento da escrita, e muitas vezes era ela a suscitá-la, o Momentos foi escrito no silêncio. Mas, já que pões a questão, dei uma volta pelos discos, outra pela cabeça e surgiu-me – se calhar para me desenvencilhar desta – o Dark Side of the Moon, dos Pink Floyd.
A&c – Sem querer levantar o véu ou fazer spoiling, o fim do livro, leva-nos inevitavelmente ao início e a revermos tudo o que acabamos de ler. Aquele fim sempre esteve lá ou surgiu como resposta ao que foi acontecendo?
C.A.C. – Pois, o livro foi composto pelo fim. Sabia como queria que acabasse, embora a ideia fosse um tanto ou quanto nebulosa, e ganhasse corpo com o crescer do romance. Precisamente o contrário do Concerto em que, como sabes, cheguei ao fim com três epílogos possíveis. Por isso foi um trabalho de desvio e retoma do caminho pretendido. Por vezes tive de forçar as personagens a fazer coisas que não queriam… olha, lá volta o jogo…
A&c – Faço-te, de outra forma, a pergunta que já fiz na nossa anterior conversa sobre o Concerto: Foi fácil dar este livro como concluído, ou tiveste a tentação de voltar ao início, para mostrares às tuas personagens que a história afinal é tua? Ou não é?
C.A.C. – Nunca é fácil dar um livro por concluído. Andando este pelo mundo, já o reli várias vezes, detetando em cada uma delas pequenas coisas a melhorar. Uma palavra que se repete em excessiva proximidade, uma vírgula mal colocada, uma frase menos explícita, uma detestável gralha que passou a toda a gente. Mas, sim. Percebi claramente quando cheguei ao fim da jornada. Aliás, no Momentos mais facilmente porquanto tinha o encerramento delineado.
A&c – O que se segue? O próximo já está escrito na tua cabeça?
C.A.C. – Bem, acabei este ano o Com o cheiro das glicínias. Em estilo semelhante ao do Concerto. Posso dizer que é um livro paralelo. Nasce no local onde decorre boa parte do “Concerto”, a Obras de Arte, só que o narrador é um administrador dessa empresa que vai relatar uma parte do outro lado das coisas. Acabei também uma peça de teatro Nem Romeu nem Julieta e, para além de outras coisas já escritas, vou começar um novo romance A caneta infeliz. Mas deste não digo nada, porque ainda não faço grande ideia do que irá sair.
A&c – Aguardamos então, paciente, as matizes desse aroma floral e um motivo para irmos ao teatro.
“(…) na cidade junto ao mar, passou a fome, a guerra, a doença. Nada tocou o poeta. De nada se apercebeu. A obra enche-o por completo. É o trabalho mais importante do mundo.”
(do livro, por Cursino)
Ajuda-nos a manter viva e disponível a todos esta biblioteca.

Publicado em eBook por Porto Alegre: Revolução eBooks-Simplíssimo, 2017
Além deste Momentos para inventar o amor, Carlos Alberto Correia publicou em 1974 Silêncio Mordido e em 1982 Penélope e outras esperas, obras poéticas, e o romance Concerto Para Sanca João em 2015.
Jornalista, Diretor. Licenciado em Estudos Artísticos. Escreve poesia e conto, pinta com quase tudo e divaga sobre as artes. É um diletante irrecuperável.